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Boletim - Academia Paulista de Psicologia

Print version ISSN 1415-711X

Bol. - Acad. Paul. Psicol. vol.40 no.99 São Paulo July/Dec. 2020

 

I. TEORIAS, PESQUISAS E ESTUDOS DE CASO

 

Stress e transtornos mentais durante a pandemia da COVID-19 no Brasil

 

Stress and mental disorders during the COVID-19 epidemics in Brazil

 

Estrés y transtornos mentales durante la pandemia del COVID-19 en Brasil

 

 

Marilda Emmanuel Novaes LippI; Louis Mario Novaes LippII

IPhD em Psicologia pela George Washington University, Pós doutorado pelo National Institute of Health in stress social, membro da Academia Paulista de Psicologia (Cadeira número 7 Oscar Freire). ORCID: 0000-0002-9118-3169
IIMaster of Science em Administração de Empresas pela Rochville University, EUA, Farmacêutico pela Universidade São Francisco, Biomédico pela Faculdade Integrada Metropolitana de Campinas. Docente e Diretor do Instituto de Psicologia e Controle do Stress. ORCID: 0000-0002-7188-8001

Contato

 

 


RESUMO

A pesquisa averiguou em uma amostra transversal espontânea de 3.223 brasileiros adultos que responderam a um questionário on-line: (1) a prevalência de stress, depressão, ansiedade e doenças físicas presentes, (2) as estratégias de enfrentamento utilizadas, (3) os estressores presentes, (4) o nível de confiança nas decisões das autoridades e (5) o quê de positivo a quarentena estava trazendo para os respondentes. Os resultados indicaram altos índices de stress (60%), ansiedade (57,5%), depressão (26%) e pânico (14%) bem como grande incerteza quanto ao futuro. Verificou-se uma associação significativa entre ter stress e ansiedade (X2 =739,40, gl=1,p=0,001); stress e depressão (X2=286,94, gl=1,p=0,001) e stress e pânico (X2=209,06, gl=1,p=0,001). O estressor mais mencionado foi a incerteza quanto a se as autoridades estavam tomando as ações corretas para o controle da pandemia, seguida de preocupação com possível contaminação de familiares e com as finanças. Resultados indicaram a necessidade de ações governamentais e corporativas de apoio aos indivíduos com dificuldades emocionais visando impedir o estabelecimento de uma pandemia de transtornos mentais no futuro.

Palavras-chave: COVID-19 pandemia; transtornos mentais; stress.


ABSTRACT

The survey found in a spontaneous cross-sectional sample of 3,223 Brazilian adults who answered an online questionnaire: (1) stress, depression, anxiety and physical illnesses present, (2) the coping strategies used, (3) the stressors present, (4) the level of confidence in the authorities decisions and (5) what positive issues the quarantine was bringing to the respondents. The results indicated high levels of stress (60%), anxiety (57.5%), depression (26%) and panic (14%) as well as great uncertainty about the future. It was observed that there was a significant association between having stress and anxiety (X2 = 739.40, gl = 1, p = 0.001); stress and depression (X2 = 286.94, gl = 1, p = 0.001) and stress and panic (X2 = 209.06, gl = 1, p = 0.001). The most mentioned stressor was uncertainty as to whether the authorities were taking the right actions to control the pandemic, followed by concern about possible contamination of family members and finances. Results indicate the need for governmental and corporate actions to support individuals with emotional difficulties to prevent the establishment of a pandemic of mental disorders in the future.

Keywords: COVID-19 pandemic; mental disorders; stress.


RESUMEN

La investigación averiguó en una muestra transversal espontánea de 3.223 adultos brasileños que respondieron un cuestionario en línea: (1) la prevalencia de estrés, depresión, ansiedady enfermedades físicas presentes, (2) las estrategias de enfrentamiento utilizadas, (3) los factores estresantes presentes, (4) el nivel de confianza en las decisiones de las autoridades, y (5) lo que de positivo que trajo la cuarentena a los investigados. Los resultados indicaron altos niveles de estrés (60%), ansiedad (57,5%), depresión (26%) y pánico (14%), así como una gran incertidumbre sobre el futuro. Hubo una asociación significativa entre tener estrés y ansiedad (X2=739,40, gl=1, p=0,001); estrés y depresión (X2=286,94, gl=1, p=0,001); y estrés y pánico (X2=209,06, gl=1, p=0,001). El factor estresante más mencionado fue la incertidumbre sobre si las autoridades estaban tomando las medidas adecuadas para controlar la pandemia, seguido de la preocupación por la posible contaminación de los integrantes de la familia, y las finanzas. Los resultados indicaron la necesidad de acciones gubernamentales y corporativas para apoyar a las personas con dificultades emocionales a fin de prevenir el establecimiento de una pandemia de trastornos mentales en el futuro.

Palabras clave: pandemia de COVID-19; trastornos mentales; estrés.


 

 

Introdução

Pesquisa recentemente publicada na revista Internacional Psychiatry Research (Lipp, M., Lopes, Lipp, L., & Falsetti, 2020) mostrou que, em 2017, 52% de uma amostra de 2.592 respondentes adultos se diziam muito estressados, dando notas de entre 8 e 10 ao seu nível de stress, em uma escala de 1 a 10. A mesma pesquisa revelou que o índice de depressão e ansiedade auto relatados foram 29% e 21%, respectivamente. Os dados foram coletados durante o ano de 2017, em levantamento on-line, portanto, antes da pandemia do Coronavírus. Surge a questão de como estão estes índices durante a pandemia. Quando a primeira morte causada pela COVID-19 foi anunciada na China e a mídia mundial começou a relatar o escalonamento de casos de óbitos no mundo inteiro, a ansiedade passou a se manifestar em todos os cantos do mundo, em todas as faixas etárias, conforme relatado por vários pesquisadores, como Bao, Sun, Meng, Shi e Lu (2020), na China; Bettinsoli, et al (2020) na Itália; Burki ( 2000), na America Latina); Serafim, Gonçalves, Rocca e Lotufo Neto, (2020), no Brasil e Shigemura, Ursano, Morganstein, Kurosawa e Benedek (2020) no Japão, entre outros. Sabe-se que durante épocas de pandemia não é somente o perigo de contaminação e morte que deixa marcas profundas na sociedade, mas também os efeitos na saúde mental conforme mencionado por Reardon (2015). Zhang, J, Wu, Zhao e Zhang, W. (2020) relatam que epidemias, de qualquer natureza, geram um impacto negativo no bem-estar físico, cognitivo e psicológico dos indivíduos (Ornell, Schuch, Sordi, & Kessler , 2020) e Yao,Chen, & Xu (2020), entre outros autores, enfatizam que o medo e ansiedade têm o poder de criar uma epidemia paralela e aumentam o risco de contaminação.

Shigemura, Ursano, Morganstein, Kurosawa e Benedek (2020) relatam que tragédias anteriores mostram que as consequências para a saúde mental duram mais do que a pandemia em si e que o impacto psicossocial e econômico é incalculável, se forem levados em consideração todos os prejuízos no conteúdo global de uma nação. Infelizmente, de acordo com Shigemura, Ursano, Morganstein, Kurosawa e Benedek (2020), em épocas de pandemia o número de pessoas que desenvolvem transtornos mentais , muitas vezes, supera o número de afetados pela doença em si. No Brasil, Filgueiras e Stults-Kolehmainen (2020) conduziram um levantamento on-line durante o mês de março deste ano, portanto, no início da pandemia da COVID-19, com 1.468 adultos que mostrou altos níveis de stress relatados por pessoas que precisavam trabalhar de forma presencial, viviam com pessoas mais idosas ou pertenciam a um grupo de risco percebido. Outros estudos brasileiros mostram também essa realidade (Filgueiras, & Stults-Kolehmainen, 2020; Ornell, Schuch, Sordi, & Kessler, 2020; Serafim, Gonçalves, Rocca, & Lotufo Neto, 2020). O objetivo da pesquisa de Filgueiras e Stults-Kolehmainen (2020) foi investigar a relação entre stress, depressão e ansiedade com um número de variáveis sociodemográficas e comportamentais de modo a assistir as autoridades quanto a onde e como investir recursos destinados à saúde. Os autores utilizaram instrumentos de mensuração de stress, depressão e ansiedade, além de um questionário sociodemográfico. Os resultados mostraram que os níveis de stress, depressão e ansiedade estavam relacionados significativamente com gênero (sendo que mulheres tinham um nível mais alto de stress), nutrição, estar fazendo ou não psicoterapia on-line, fazer ou não exercício físico e a presença de idosos morando junto. Adicionalmente, encontraram uma correlação entre estar trabalhando presencialmente, nível de educação formal (quanto menor o nível educacional mais stress) e idade (os mais novos com maior nível de stress). Os dados revelaram também uma associação entre a percepção de estar em um grupo de risco e níveis de depressão e ansiedade.

Níveis altos de ansiedade e depressão em brasileiros já haviam sido relatados por Lipp, M., Lopes, Lipp, L., Falsetti (2020) em pesquisa on-line com 2.592 adultos, que responderam ao levantamento sobre Stress no Brasil em 2017. A pesquisa, aprovada pelo comitê de ética da Faculdade Leopoldo Mandic, apresentava um formulário para consentimento esclarecido e , quando aceito pelo respondente, era aplicado de um questionário sociodemográfico , seguido de uma série de questões que tinham por objetivo levantar o nível de stress, depressão, ansiedade, ataques de pânico e um número de doenças físicas, como problemas dermatológicos, cardiovasculares, digestivos etc. Os respondentes foram solicitados a indicarem em uma escala de 1 a 10 (sendo um mínimo e 10 extremo), seu nível de stress no presente. Foi questionado também os mecanismos de enfrentamento que a pessoa utilizava para lidar com o stress. Os dados analisados estatisticamente mostraram que 52% dos respondentes alegaram se sentirem estressados, com 44% deles afirmando que o nível do stress presente se situava entre 8 e 10 e 7% disseram que seu nível de tensão chegava a 10 (extremo). No que se refere aos índices de problemas psicológicos, 29% alegaram um autodiagnóstico de ansiedade e 21% declararam estar sofrendo de depressão. São índices altos inspiradores de cuidados que já em 2017, mesmo antes da pandemia da COVID-19, clamavam por ações voltadas para análise de causas e a implantação de medidas preventivas dos transtornos mentais. Os dados obtidos foram baseados em autodiagnostico e de muito ultrapassam os da The World Health Organization (2017) que relatou uma associação significativa entre stress e transtornos mentais e revelou que o Brasil é o país com maior índice de ansiedade no mundo e o quinto em depressão, com respectivamente 9,3% e 5,8% de brasileiros com diagnóstico formal desses transtornos. O termo stress se refere ao transtorno de adaptação conforme descrito na quinta edição do Manual Estatístico e Diagnóstico dos Transtornos Mentais (DSM-5 (APA, 2013). Stress é uma reação adaptativa do organismo frente a desafios de grande magnitude que envolve mudanças físicas, mentais e emocionais necessárias para o enfrentamento de ameaças à sobrevivência ou ao bem-estar da pessoa. Esta reação produz um estado de desequilíbrio que leva o organismo a utilizar seus recursos psicobiológicos para lidar com eventos que exijam uma ação mobilizadora. É uma tentativa de sobreviver a uma ameaça, real ou imaginária. Essencialmente, possui em sua gênese, a necessidade de o organismo lidar com algo que ameaça sua homeostase ou equilíbrio interno. Quando os recursos do momento são insuficientes devido à vulnerabilidade pessoal, ou à ausência de estratégia de enfrentamento, ou ainda pela gravidade ou intensidade do estressor presente o organismo pode ser afetado em sua plenitude com consequências graves para sua saúde física ou mental Lipp, 2017). As alterações psicofisiológicas que ocorrem como parte da reação do stress envolvem o sistema nervoso central, incluindo os sistemas neuroendócrino, autonômico e imune (McEwen, & Gianakos, 2011). Como alguns órgãos têm seu funcionamento acelerado (sistema cardiovascular) e em outros ele é desacelerado (sistema digestivo), um desequilíbrio orgânico ocorre exigindo do organismo um grande esforço psicobiológico para lidar com o desafio presente. A produção de adrenalina, cortisol e outros hormônios frente a percepção de um estressor é de utilidade na preservação da vida em certos momentos, pois energiza o organismo e o motiva para a ação. O ser humano, por uma questão de defesa geneticamente programada, tenta sempre reequilibrar suas funções orgânicas, para reestabelecer a homeostase interna, ou seja, tenta assegurar a manutenção da estabilidade do meio interno.

O esforço que dispende para recalibrar seu funcionamento, adaptando-o ä realidade presente, é parte da reação do stress e é chamado de alostase (Sousa, Silva, & Galvão-Coelho, 2015). Assim, por meio de uma ação alostática o organismo obtém adaptação ao que está ocorrendo, reequilibrando ou mudando um pouco o seu funcionamento próprio para sobreviver ao estressor, ou seja, ao desafio presente. A habilidade de todos os seres vivos se adaptarem às mudanças e aos estressores é de fundamental importância para garantir a sobrevivência, portanto doses pequenas ou moderadas de desafios podem ser positivas e motivam para a ação.

Quando existe uma hipossuficiência de recursos ou porque a pessoa é muito vulnerável geneticamente devido à ausência de estratégia de enfrentamento, ou ainda pela gravidade ou intensidade do estressor presente, o organismo pode ser afetado em sua plenitude com consequências graves para sua saúde física ou mental. Episódios frequentes ou intensos de stress podem levar a consequências graves na função e na estrutura do cérebro, especialmente no sistema límbico que coordena a reação do stress (Lucassen, Fitzsimons, Salta, & Maletic-Savatic (2020).

Levando-se em consideração as possíveis implicações da pandemia do coronavírus para a saúde mental do povo brasileiro, a presente pesquisa visou averiguar, no geral, como o povo brasileiro estava reagindo ao isolamento e a pandemia. A pesquisa ocorreu no terceiro mês de quarentena obrigatória , de 13 de maio a 13 de junho de 2020, quando o desânimo já estava se instalando entre os usuários da mídia social. No momento em que os dados foram coletados, o Brasil se situava como o segundo do mundo com maior número de vítimas, atrás somente dos EUA.

Os objetivos da pesquisa foram:

- Conduzir um levantamento da prevalência de stress na quarentena de acordo com auto percepção dos brasileiros;

- Levantar prevalência de depressão, crises de pânico e ansiedade nos respondentes

- Identificar as doenças físicas mais presentes na amostra;

- Verificar se os brasileiros achavam que o stress diminuiu, aumentou ou continuou igual, comparando-se o período antes e durante a quarentena;

- Mapear as maiores fontes de stress do momento, verificando o que mais estava causando stress no trabalho e na vida pessoal;

- Verificar o nível de confiança nas medidas governamentais que estavam sendo tomadas;

- Mapear as estratégias de enfrentamento a que o brasileiro utilizava para lidar com seus desafios.

 

Método

Participantes

Foram incluídos neste levantamento 3.223 adultos que responderam a um convite colocado no site/face/instagram dos autores e do Instituto de Psicologia e Controle do Stress que promoveu a pesquisa e concordaram em responder a um questionário on-line sobre stress no Brasil. A amostra foi, portanto, de conveniência com as limitações inerentes ao caso. Os critérios de inclusão foram ter mais de 18 anos, ser brasileiro e residir no Brasil. Os critérios de exclusão estipularam não ter selecionado "concordo" no termo de consentimento livre e esclarecido, constante da primeira folha do instrumento on-line ou não responder a todos os itens do questionário.

Instrumento

Para o presente levantamento foi realizada uma adaptação do questionário usado anteriormente na pesquisa 2017 Stress in Brazil (Lipp, M. Lopes, Lipp, L., & Falsetti, 2020) procedendo-se ao acréscimo de itens relacionados com a pandemia atual. O Quadro 1 mostra o que foi acrescentado ao questionário original.

 

 

Após a adaptação, o instrumento apresentado incluiu inicialmente um termo de consentimento livre e esclarecido (aprovado pelo Comité de Ética da Faculdade São Leopoldo Mandic, #2.402.053) que continha uma explicação sucinta sobre stress, os objetivo das pesquisa e os critérios de inclusão e de exclusão.

No caso de acordo, seguia-se a apresentação de um questionário sociodemográfico sobre sexo, idade, estado civil, nível educacional e ocupação exercida. A segunda parte versou sobre questões referentes à saúde física e mental. O respondente era solicitado a assinalar as que eram pertinentes ao seu caso, conforme pode ser visto no exemplo de item no Quadro 2.

 

 

Os demais quesitos do instrumento foram idênticos aos de 2017 Stress no Brasil (Lipp, M, Lopes, Lipp, L, & Falsetti 2020). Exemplos dos itens usados na presente pesquisa podem ser vistos no Quadro 3.

 

 

Análise de dados

Para descrever o perfil da amostra segundo as variáveis em estudo foram feitas tabelas de frequência das variáveis categóricas (sexo, faixa etária, profissão, estado, stress, fontes de stress, doenças), com valores de frequência absoluta e percentual, e estatísticas descritivas das variáveis contínuas (idade, nível de stress), com valores de média, desvio padrão, valores mínimo e máximo. Para comparar o nível de stress entre os gêneros, as fontes de stress e as doenças foi utilizado o teste de Mann-Whitney ou o Qui Quadrado, devido à ausência de distribuição Norma da variável. Para comparar o nível de stress entre as faixas etárias, os estados e as profissões, foi utilizado o teste de Kruskal-Wallis, devido à ausência de distribuição Normal da variável. O nível de significância adotado para os testes estatísticos foi de 5%, ou seja, p<0.05.

 

Resultados e discussão

Análise dos dados mostrou que a amostra voluntária se constituiu de 3.223 adultos com idade variando entre 18 e 85 anos (M= 45, DP=13,90), sendo 83% do sexo feminino e 17% do masculino. Sessenta e dois por cento dos respondentes eram casados/ união estável, 26 % eram solteiros e 12 % divorciados. O nível educacional era alto, com 84% dos respondentes assinalando que tinham nível superior e /ou pós graduação. Os demais 16% se distribuíram em níveis fundamental, técnico e médio. No que se refere a profissão exercida, a amostra variou, incluindo advogados, magistrados, psicólogos, médicos, pesquisadores/docentes, "do lar", manicures, auxiliar de escritórios e motoristas. Quanto a procedência regional, todos os estados do Brasil foram representados na amostra, sendo que o sul-sudeste teve o maior percentual de participantes (75%). Embora esta pesquisa tenha limitações quanto ao tipo de amostra transversal utilizada, em que usou uma coleta única de dados para cada participante e também devido ao fato de ser de conveniência em que o convite para participar foi feito por meio da mídia social, sem direcionamento especifico para grupos determinados, sendo possível inferir, com as devidas cautelas, que a mesma represente uma parcela significativa do povo brasileiro, no meio da pandemia da COVID-19. Foi realizada uma análise dos dados referente a possíveis doenças físicas e distúrbios mentais da amostra. Encontrou-se diferença significativa entre pessoas com stress e sem stress e prevalências de doenças físicas ou mentais, sendo que quem tinha doenças tinha também um maior nível de stress (p=0,001). A Tabela 1 mostra que gastrite (34,5%) foi a doença física mais citada seguida de obesidade (23,5%), doenças respiratórias (19%) e dermatológicas (17,50%). Na Tabela 1 pode-se também verificar os índices de stress, ansiedade, depressão e pânico encontrados.

 

 

Stress: A prevalência de stress encontrada foi muito alta com 60% da amostra relatando este autodiagnóstico. Comparando-se essa prevalência com a verificada no grupo de 2.592 brasileiros da pesquisa 2017 Stress in Brazil (Lipp, M., Lopes, Lipp, M.N., & Falsetti, 2020) que foi 52%, observa-se uma diferença que, por inferência, pode ser atribuída à situação de pandemia atual. Não houve diferença em índice de stress por cidade ou estado dos respondentes. Porém, a diferença entre homens e mulheres foi significativa, com estas apresentando uma maior frequência (p<0,001). Este dado confirma os obtidos por Filgueiras e Stults- Kolehmainen (2020), que encontraram uma maior incidência de stress no sexo feminino no início da pandemia. Como era de se esperar, o autodiagnostico de stress foi prevalente entre as pessoas que se diziam desempregadas (p<0,001). Encontrou-se também diferenças significativas quanto a presença de stress nos grupos que apresentaram obesidade, doenças de pele, doenças respiratórias e gastrite quando comparados com os que não assinalaram essas doenças. O teste de Mann-Whitney mostrou uma diferença significativa entre o número de respondentes que tinham ou não depressão, ansiedade ou pânico e o autodiagnóstico de stress no nível de p=0,001 para todas as comparações, sendo que os que apontaram ter stress relataram com maior frequência terem depressão, ansiedade e pânico. As análises mostraram uma associação significativa entre o autodiagnóstico de stress e ansiedade (X2 =739,40, gl=1, p=0,001); stress e depressão (X2=286,94, gl=1,p=0,001) bem como entre stress e pânico (X2=209,06, gl=1,p=0,001). Diferenças significativas foram encontradas entre os respondentes que tinham stress e os que não tinham no que se refere a preocupação quanto a ter que quebrar a quarentena por alguma razão (p=0,001), finanças (p=0,002), impacto do isolamento nas relações amorosas (p=0,002), alguém da família contrair o vírus (p=0,001),medo de perder o emprego (p=0,001). Quando questionados quanto a como classificariam seu nível de stress, indo de saudável a excessivo, 25% dos respondentes assinalaram "excessivo" e 47,5% afirmaram que seu nível atual de stress estava "maior ou muito maior" do que antes da pandemia. Foi perguntado também como estavam lidando com a tensão da pandemia. Cinquenta e dois por cento da amostra alegaram conseguir lidar parcialmente com a situação, 46% disseram lidar bem e 2% declararam que não estavam conseguindo. Mesmo antes da crise da COVID-19, o stress já se encontrava elevado em nosso meio com 52% de pessoas indicando altos níveis de tensão (Lipp, M., Lopes, Lipp, L.M.N., & Falcetti, 2020). O presente estudo foi realizado durante o terceiro mês de isolamento social imposto pelo governo na tentativa de reduzir o ritmo da contaminação. Interessante comparar os dados obtidos por Filgueiras e Stults-Kolehmainen (2020). A pesquisa desses autores foi realizada logo após a decretação da quarentena por causa da pandemia de Covid-19. Nele a prevalência de pessoas com stress agudo na primeira coleta de dados (20 a 25 de março) foi de 6,9% contra 9,7%, na segunda (15-20 de abril). Os estudos não podem ser completamente comparados porque utilizaram instrumentos diferentes para proceder a avaliação, mesmo assim é fácil ver que os resultados sugerem um agravamento preocupante através do tempo. Os dados apontam para uma situação de grande stress em nosso meio e é possível que este índice se agrave com o prolongamento da quarentena imposta como proteção do povo.

Ansiedade: A prevalência de ansiedade foi de 57,50% revelando uma sociedade extremamente abalada pelo medo, pelas expectativas negativas de futuro, pelas incertezas, pela falta de contato presencial de amigos e parentes, pela necessidade de home office e pela necessidade abrupta de adaptação a um "novo normal" totalmente imprevisto cujo acontecimento nenhuma mente humana poderia prever. A quarentena horizontal em que todos foram levados ao isolamento social teve um efeito psicológico de criar medo, entre outras razões, porque o povo sentiu que as próprias autoridades estavam julgando que a situação era grave, com tendência a piorar. O índice de pessoas com ansiedade no levantamento 2017 Stress in Brazil foi de 29%, já muito acima do levantado pela OMS que era de 9,3% ( WHO,2017). Há que se apontar aqui que esses índices se referiram a pessoas diagnosticadas por equipes de saúde, e os discutidos aqui se referem a um autodiagnóstico de ansiedade, o que pode explicar parte da diferença entre os dados reportados. Analisando o que estava gerando ansiedade nos respondentes, apurou--se que 66% da amostra relatou estar muito ou extremamente preocupados com o possível impacto do coronavírus em si mesmo, 30% sentiam medo por não ter controle sobre o futuro e não saber o que esperar e 10% se preocupavam com uma possível perda do emprego.

Depressão: Vinte e seis por cento da amostra disse estar sofrendo de depressão. A prevalência deste transtorno no Brasil, de acordo com a WHO (2017), era 5,8%. No estudo de Lipp, M. Lopes, Lipp,L. M. N.,& Falcetti (2020) o autodiagnóstico era de 21%. O presente levantamento foi realizado no período de maio a junho de 2020, portanto dentro de 3 meses de isolamento determinado pelo Governo. Considerando-se a associação entre stress, ansiedade e depressão há que se levantar a hipótese de que com o passar dos dias em quarentena, o número de pessoas com depressão aumente ainda mais.

Pânico: 14% da amostra revelou ter tido crise de pânico, o que representa um sofrimento significativo e uma grande ameaça à saúde mental dos respondentes.

Fontes de Stress: A Tabela 2 revela as cinco fontes de stress mais mencionadas pelos participantes como afetando suas vidas no momento do isolamento social. Interessante que o estressor mais mencionado foi a instabilidade política. Adicionalmente, indicaram como fonte de preocupação "ter que disponibilizar um espaço físico em casa para o home office" e a "falta de contato social direto com familiares e colegas de trabalho". Muitos alegaram que a falta de barreira entre o ambiente familiar e de trabalho representava um fator de preocupação, pois sentiam que estavam trabalhando muito mais do que no presencial. Trinta e um por cento da amostra tinha preocupação financeira, com 17% temendo faltar dinheiro caso a crise continuasse por muito tempo. A Tabela 2 mostra as percentagens de participantes com preocupações diversas referentes ao momento da pesquisa.

 

 

A preocupação com instabilidade política é refletida também nas respostas dadas ao questionamento quanto a "em que medida você se sente confiante de que o Governo tomará as decisões certas para administrar essa crise ?" (Tabela 3).

 

 

A Tabela 4 mostra como os participantes indicaram estarem tentando lidar com o stress emocional no momento. Pode se verificar que a estratégia mais comumente utilizada é "conversar com amigos ou familiares" revelando a importância dos contatos sociais e do apoio de pessoas próximas. Este dado aponta para a força da união familiar na crise.

 

 

A segunda estratégia de coping mais utilizada foi "rezar, orar, ou fazer irradiações" o que mostra o nível de angústia dos respondentes e a importância da espiritualidade em momentos pandemias e epidemias. Interessante é notar que a prática de exercício físico e a leitura são também muito utilizados como um meio de lidar com o stress.

O percentual de pessoas que dizem usar a leitura para lidar com o stress é bem mais alto do que a média de leitura do povo brasileiro, que é 5 livros por ano (Instituto Pró Livro, 2020), indicando um efeito benéfico do isolamento social. Talvez esse dado seja devido ao fato da amostra contar com 84% dos respondentes com nível superior e /ou pós graduação.

Um diferencial da presente pesquisa foi incluir uma questão sobre "que aspectos positivos você vê na quarentena?" As respostas prevalentes encontram-se na Tabela 5.

 

 

Verificou-se que na pandemia atual existe um cenário de grande preocupação pela segurança da sociedade. Os dados vão ao encontro do mencionado por Serafim, Gonçalves, Rocca e Lotufo Neto (2020) quanto a que pandemias afetam a saúde física e comprometem a integridade psicossocial, o que resulta em altos níveis de sofrimento para o povo. Os índices de transtornos mentais no Brasil, mesmo antes da pandemia do coronavírus, já eram preocupantes. Agregando-se aos fatores pré existentes, a pandemia veio acrescentar mais peso a uma situação que fazia do Brasil o país em primeiro lugar na prevalência de pessoas com diagnóstico de ansiedade e quinto de depressão (WHO,2017). Esta pesquisa ocorreu no terceiro mês de isolamento social determinado pelo Governo, há de se esperar que os índices de transtornos mentais aumentem ainda mais à medida que o isolamento se prolongue. Isto significa uma enorme necessidade de atenção à saúde mental do povo, com disponibilização de recursos em termos de cuidados psicológicos e psiquiátricos para apoio de uma população muito necessitada. A pandemia da coronavírus se caracteriza pela incerteza, em que há dúvidas sobre tudo, seja sobre o processo de contaminação, seja sobre como o vírus se manifesta em grupos específicos da população, seja sobre a prevenção ou ainda sobre protocolos de tratamento. Quanto mais incerteza se tem sobre um fato, maior é o dano psicológico que dele se origina. Não há dúvida de que a pandemia do coronavírus será o desastre psicológico que mais marcas deixará em quem o está vivenciando. Como Reardon (2015) aponta, durante epidemias o número de pessoas que tem a saúde mental afetada tende a ser maior do que o número de pessoas infectadas pelo vírus porque elas são confrontadas com condições estressantes sem treino prévio e com muito pouco tempo para se prepararem para uma nova rotina. Na mesma linha de raciocínio, Shigemura, Ursano, Morganstein, Kurosawa e Benedek (2020) assinalam que tragédias passadas mostram que as implicações para a saúde mental do povo podem durar muito mais tempo do que a pandemia em si. Com base nas pesquisas de vários autores sobre esta e outras pandemias do passado, é de se prever que o mundo venha a presenciar uma epidemia de transtornos mentais no futuro próximo. Assim, atenção especial deve ser dada à sociedade para proteção de consequências, talvez até mais negativas do que o próprio vírus, conforme mencionado por Bao, Sun, Meng, Shi e Lu (2020). Esta atenção necessária e mandatória para garantir a qualidade de vida do povo é de responsabilidade não só do próprio indivíduo e das autoridades governamentais. Compete também às organizações do trabalho que congregam um número grande de empregados, tomarem medidas de alento para receberem os colaboradores que ao voltarem ao trabalho estarão ainda sob o impactante efeito da pandemia. Os colaboradores precisarão quebrar o silencio e terem a coragem de mencionarem qualquer transtorno mental que tenham desenvolvido, sem medo do estigma que muitas vezes existe no ambiente corporativo. Para tanto, compete aos líderes organizacionais promoverem campanhas de esclarecimento e aceitação do número substancial de empregados que talvez venham a necessitar de apoio para os males da mente prejudicada.

 

Conclusão

Os dados obtidos levam à conclusão de que este é um momento de grande fragilidade emocional, com um número significativo de pessoas com medo do futuro, sem confiança nas medidas governamentais e preocupadas não só com as consequências de uma possível contaminação sua ou de membros da família, mas também quanto a se sua condição financeira sofrerá abalos caso a pandemia se prolongue por muito tempo. A pesquisa foi realizada no terceiro mês de isolamento social que, na escrita deste artigo, já perdura há sete meses, e mesmo assim os índices de pessoas autodiagnosticadas com stress (60%), ansiedade (57,5%) e pânico (14%) eram excessivamente altos, levando à conclusão de que medidas de apoio psicológico são absolutamente mandatórias para que se possa evitar uma pandemia de transtornos mentais na população brasileira. Embora haja limitações no presente estudo devido ao fato de se ter feito uso de uma amostra de conveniência e se tratar de um trabalho on-line no qual não seria possível utilizar os testes psicológicos protegidos por normas do Conselho Federal de Psicologia, sua contribuição pode ser relevante, pois colabora para se examinar o estado físico e mental do povo brasileiro e entender o impacto que o stress tem em suas vidas.

Considerando-se a associação significativa do stress com transtornos mentais, documentada na literatura nacional e internacional, é importante que se tome medidas urgentes para reduzir o stress emocional no povo brasileiro. Recomenda-se que não só o governo, mas também as organizações corporativas assumam um papel ativo na promoção de medidas de profilaxia e tratamento das disfunções psicológicas associadas ao stress da pandemia da COVID-19. Embora haja limitações no presente estudo devido ao fato de se ter feito uso de uma amostra de conveniência e se tratar de um trabalho on-line no qual não seria possível utilizar os testes psicológicos protegidos por normas do CFP, sua contribuição pode ser relevante pois colabora para se examinar o estado físico e mental do povo brasileiro e entender o impacto que o stress tem em suas vidas.

 

Referências

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Contato:
Marilda Emmanuel Novaes Lipp
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Louis Mario Novaes Lipp
louis.lipp@gmail.com

Recebido: 06.10.2020
Corrigido: 27.10.2020
Aprovado: 10.11.2020

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