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Boletim - Academia Paulista de Psicologia

versión impresa ISSN 1415-711X

Bol. - Acad. Paul. Psicol. vol.41 no.100 São Paulo ene./jun. 2021

 

I. TEORIAS, PESQUISAS E ESTUDOS DE CASO

 

Estudo psicológico do processo diagnóstico e da psicoterapia na depressão e na ansiedade por meio da análise fenômeno-estrutural: estudos de caso

 

Psychological study of the diagnostic process and psychotherapy in depression and anxiety through structural-phenomenon analysis: case studies

 

Estudio psicológico del proceso diagnóstico y psicoterapia en la depresión y la ansiedad a través del análisis fenómeno-estructural: estudios de caso

 

 

Tatiana Hoffmann Palmieri PerchesI; Andrés Eduardo Aguirre AntúnezII

IPós-doutora pelo Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP) e Doutora e Mestre em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação da PUC-Campinas. ORCID https://orcid.org/0000-0002-6812-4013
IIProfessor Associado do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo - IPUSP e Coordenador do Escritório de Saúde Mental da Pró-Reitoria de Graduação da USP. E-mail: antunez@usp.br. ORCID http://orcid.org/0000-0001-5317-4459

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O método fenômeno-estrutural tem suas origens em Eugène Minkowski e dirige-se à análise dos dados imediatos da consciência, temporalidade e espacialidade vividos e ao dinamismo ou falta dele no contato com a realidade. O objetivo desta pesquisa qualitativa, derivada de uma pesquisa de pós-doutorado, foi investigar as contribuições do método fenômeno-estrutural ao diagnóstico de uma pessoa com depressão e outra com ansiedade, e como ocorrem os acontecimentos e a linguagem na psicoterapia individual ao longo de um ano. Os resultados apontam que o processo psicoterapêutico com ambos resultaram num maior fortalecimento nos relacionamentos intra e interpessoais, aumento da capacidade de tolerar as frustrações e alcance de maior independência, limite, vinculo e diálogo para lidar com as pressões e exigências inerentes à vida relacional que enfrentavam. A linguagem verbal mostrou que os mecanismos de ligação e corte coexistem e se alternam, se aproximando da possibilidade de integração. O mecanismo de cisão foi a marca principal de sofrimento, apresentando uma temporalidade adoecida, em um caso para o passado e noutro para o futuro – o que os distanciavam do encontro (lien), mas ao fim do processo puderam usufruir da vivencia atual e presente, permitindo que os mesmos encontrem potencialidades para transformações.

Palavras-chave: método fenômeno-estrutural; ansiedade; depressão; estudo de casos.


ABSTRACT

Thestructural-phenomenonmethodhasitsoriginsinEugèneMinkowskiandisdriventothe analysis of the immediate data of consciousness, temporality and spatiality lived and to the dynamism or its absence in contact with reality. The objective of this qualitative research, derived from a postdoctoral research, was to investigate the contributions of the structural-phenomenon method to the diagnosis of a person with depression and another one with anxiety, and how events and language occur in individual psychotherapy throughout one year. The results showed that the psychotherapeutic process with both resulted in greater strengthening in intra and interpersonal relationships, increased ability to tolerate frustrations and reach greater independence, limit, bonding and dialogue to deal with the pressures and demands inherent to the relational life they faced. Verbal language showed that the mechanisms of linking and cutting coexist and alternate themselves, approaching the possibility of integration. The splitting mechanism was the main sign of suffering, presenting a sick temporality, in one case for the past and another one for the future - which distanced them from the rediscover (lien), but at the end of the process they were able to benefit from the current and present experience, allowing them to find potential for transformation.

Keywords: structural-phenomenon method; anxiety; depression; case study.


RESUMEN

El método fenómeno-estructural tiene sus orígenes en Eugène Minkowski y direcciona el análisis de los datos inmediatos de la conciencia, la temporalidad y la espacialidad y el dinamismo o su falta en el contacto con la realidad. El objetivo de esta investigación cualitativa, derivada de una investigación postdoctoral, fue investigar las contribuciones del método fenómeno-estructural al diagnóstico de una persona con depresión y otra con ansiedad, y cómo se dan los eventos y el lenguaje en la psicoterapia individual a lo largo de un año. Los resultados muestran que el proceso psicoterapéutico con ambos sujetos resultaron en un mayor fortalecimiento en las relaciones intra e interpersonales, una mayor capacidad para tolerar frustraciones y alcanzar una mayor independencia, límite, vinculación y diálogo para enfrentar las presiones y demandas inherentes a la vida relacional. El lenguaje verbal mostró que los mecanismos esenciales de vinculación y corte coexisten y se alternan, acercándose a la posibilidad de integración. El mecanismo de corte era la principal señal de sufrimiento, presentando una temporalidad fragilizada, en un caso para el pasado y en el otro para el futuro, lo que los distanciaba del encuentro, pero al final del proceso pudieron disfrutar de la experiencia actual y presente, permitiéndoles encontrar potencial para la transformación.

Palabras clave: método fenómeno-estructural; ansiedad; depresión, estudio de caso.


 

 

1. Introdução teórica

Este artigo tem o intuito de apresentar a análise fenômeno-estrutural em relação ao diagnóstico psiquiátrico. Trata-se de uma compreensão fenomenológica da psicopatologia, na qual o ser humano não é visto como resultado de múltiplas influências externas, mas como transformador e como um ser desafiado pela vida e chamado a responder criativamente (Merleau-Ponty, 1996). Assim, o objetivo é contribuir para uma perspectiva do psicodiagnóstico que oferece compreensões e intervenções diante dos problemas humanos depressivos e ansiógenos. Assim, pode-se ampliar o uso desta abordagem como recurso para a compreensão e o cuidado com pessoas que apresentam determinadas psicopatologias e até mesmo auxiliar com tais compreensões fenômeno-estruturais na atuação de diversos profissionais da área da saúde. Resgatando uma atuação humanista, compreensiva e rigorosa. Os principais interlocutores de Eugène Minkowski, o criador do método, foram o fenomenólogo Edmund Husserl, o filósofo Henri Bergson, o psicopatologista Karl Jaspers e seu amigo, o psiquiatra Ludwig Binswanger. Para Minkowski (1966, p.456), "a fenomenologia se detém sobre os fenômenos a fim de precisar os caracteres fundamentais; antes de conhecer a origem, busca-se saber o que são, quais são os elementos que aportam a estrutura geral da existência". Nessa perspectiva, o estudo psicológico e fenomenológico de um caso ajuda na compreensão de outros. Ao invés de estudarmos vários casos que nos ajudariam a compreender uma situação específica, a partir de um caso ampliamos o conhecimento para muitos, já que toda pessoa, independente de sua cultura, tem aspectos universais, como sentimentos, emoções, comportamentos, amor, ódio, raiva, alegria, medo e seus aspectos peculiares. Ao nos aprofundarmos em cada história e na linguagem utilizada por cada pessoa, a ênfase dá-se na subjetividade e na apreensão da totalidade da experiência interpessoal. Para isso, nos detemos sobre os fenômenos de forma ampliada e sem pressa (Jaspers, 1979). Minkowski (1923, 1970, 2019) valoriza o contato direto com o paciente como foco de suas investigações, pois entende que o contato pessoal é indispensável, porque é nele que se revela a presença da essência do outro. Para o autor, o sofrimento coloca-nos em presença do destino humano, atravessa-nos e aproxima-nos do vivido. Psicopatologia Fenômeno-Estrutural, compreende o tempo a partir de uma concepção dinâmica (Costa e Medeiros, 2009), na qual ele e sua noção de futuro sempre são impulsionados pelo élan vital (ímpeto vital), que é definido como o ímpeto original que direciona a evolução das pessoas (Minkowski, 1923, 1970, 2019). O tempo vivido (Minkowski, 1933/1995), priorizado na perspectiva da Psicopatologia Fenômeno-Estrutural, existe na consciência. O passado existe na memória e o futuro na expectativa; o presente, por sua vez, seria uma consciência corporal de caráter sensório-motor, que experimenta sensações e projeta-se em direção ao futuro. Baseando-se nessa perspectiva, Minkowski (1933/1995) pesquisou os déficits temporais como um fenômeno primário que está nas origens dos distúrbios psíquicos. O contato vital com a realidade nas suas diversas configurações ocupa papel central na Psicopatologia Fenômeno-Estrutural e seu funcionamento deficiente é um fator importante no transtorno mental (Minkowski, 1966). Num funcionamento saudável e adaptativo, o ímpeto vital, com estreita ligação com a percepção de futuro, mantém contato com a realidade de maneira dinâmica, está plenamente vigente (Martinez, 2006). A análise fenômeno-estrutural não tem seu enfoque no conteúdo, mas sua ênfase se dirige à forma, que pode ser apreendida em sua mobilidade e dinamismo vivo (Yazigi & Villemor-Amaral, 2010). O conceito de inconsciente não é utilizado, pois pressupõe no consciente as forças criativas que se afirmam por elas mesmas. Sendo assim, não busca interpretações com auxílio de simbolizações, mas recorre à riqueza e força expressiva da linguagem humana (Barthélémy, 1997). Françoise Minkowska iniciou a análise da linguagem no estudo de casos de pessoas com epilepsia e esquizofrenia (Minkowska, 1956/1978) e Zéna Helman ampliou tal análise da linguagem a outros quadros psicopatológicos (Helman, 1959a, 1959b, 1971, 1983, 1984). Outras avaliações psicológicas, como o Teste de Apercepção Temática – TAT e a Escala de Inteligência Wechsler – WAIS-III (Santoantonio & Antúnez, 2008), as pirâmides coloridas de pfister (Villemor-Amaral e Franco, 2010), o sonho acordado dirigido (Delaunay, 1977), as relações com obras poéticas (Wawrzyniak, M, 1982; Barthélémy, J.M, 1987), em desenhos (Minkowska, 1959), na pintura (Ternoy, 1998; Yazigi, 2002) podem ser analisadas e compreendidas à luz da análise fenômeno-estrutural.

O método de Rorschach revela ora o predomínio de uma estrutura sensorial de personalidade, ora uma estrutura mais racional, elementos de oposição e contradição, qualidades mórbidas, desvitalização da percepção humana e dificuldade em perceber aspectos da realidade ou elementos de ligação, qualidades vivas, vitalizadas e dinâmicas na relação com o ambiente (Yazigi & Villemor-Amaral, 2010). Ao se elaborar um psicodiagnóstico a partir da análise fenômeno-estrutural podemos compreender as características perceptivas, imaginativas e cognitivas a partir da linguagem, da expressão e dos comportamentos (Helman, 1983) tais como aparecem durante as provas, na relação com o psicólogo/a abarcando como as pessoas avaliadas sentem e expressam as dificuldades que as afetam e quais as características que podem estar comprometidas (Santoantonio & Antúnez, 2008) e os recursos que dispõem para dar conta das mesmas. Minkowska (1978) estudou o método de Rorschach do ponto de vista clínico, não como um teste, valorizando o vivido na linguagem e no comportamento. Para isso, estudou os protocolos de Rorschach, analisando-os palavra por palavra. Enfatizou a análise dos mecanismos essenciais da linguagem, e nela apareceram de forma preponderante os mecanismos de ligação e os de ruptura que muitas vezes conviviam mutuamente.

Dessa forma, o método de Rorschach tornava-se um referencial e um coadjuvante para o trabalho clinico, pois completava e elucidava a observação clínica. Sob essa perspectiva o uso clínico do Rorschach e de desenhos não é explicado como sendo testes psicológicos ou testagem, pois apesar da triagem das respostas manterem-se, como propôs Hermann Rorschach, Minkowska (1978) distanciou-se do psicograma e das estatísticas para atribuir uma importância cada vez maior à linguagem e às suas expressões de base. Minkowska (1978) aponta que diante do Rorschach, a linguagem que o sujeito apresenta-nos não é uma linguagem convencional e automatizada, mas espontânea e pessoal. A Psicopatologia Fenômeno-Estrutural considera a análise da linguagem no método Rorschach um meio eficaz para compreender e identificar limitações do tempo vivido e a consequente perda de contato vital com o mundo. Esse método de investigação é útil na prática clínica, pois ao captar respostas espontâneas do sujeito, depreendem-se as estruturas de funcionamento mental atuantes. Observa-se a fenomenologia da linguagem, que tem na análise palavra por palavra um proceder revelador da maneira como as pessoas se relacionam com o ambiente (Antúnez & Santoantonio, 2008). Dessa análise, identificam-se dois polos de funcionamento mental: o sensório-motor ou epileptoide, no qual há predominância de verbos de ligação (lien) com o ambiente; e o esquizorracional ou esquizoide, no qual predomina o corte (coupure). O sensório-motor, por meio dos sentidos, liga-se à realidade concreta, o contato tátil é preponderante. A expressão lingüística tem um estilo caracterizado pelo comum emprego de tempos verbais no gerúndio e elementos de conexão, o que evidencia uma integração entre a realidade concreta e o seu mundo subjetivo. Já no polo esquizorracional, percebe-se que os mecanismos de corte são preponderantes, a realidade concreta está mais distante, utiliza-se mais de processos racionais e o caráter emocional é secundário. Com relação à linguagem, as frases são mais esquemáticas, há uma incidência maior de substantivos e menor uso de verbos conectivos. Destaca-se que não se trata de tipos de indivíduos, mas sim dois modos de processamento mental, é certo que comumente há predominância de um deles, contudo, eles podem e coexistem comumente em configurações diversas tanto num desenvolvimento normal, quanto em um estado de patologia mental (Yazigi & Villemor-Amaral, 2010). A proposta de Minkowska não era de uma mudança radical do método tradicional criado por Hermann Rorschach, mas o desenvolvimento da análise da linguagem que Rorschach não teve tempo de fazer, dada sua morte prematura. Hermann Rorschach (1967) valorizava as respostas de movimento em conteúdo humano como um fator introversivo e criativo, Minkowska valorizava a expressão de uma visão de mundo em movimento, característica do pólo epilepto-sensorial da personalidade, observada em conteúdos humanos, animais ou inanimados. Além dos recursos, as deficiências podem aparecer nos fatores estereotipados, respostas neutras e sem cor (Santoantonio & Antúnez, 2008). A tipologia epilepto-sensorial representa pessoas que ao verem as imagens do teste, sentem, por isto, seu foco é nas áreas de cor vermelha e nas formas em movimento. A outra tipologia, esquizo-racional representa pessoas que expressam uma rigidez psíquica, pois ao invés de verem as imagens do teste, pensam sobre elas (Villemor-Amaral; Franco; Farah, 2008).

Independentemente do mecanismo empregado, a flexibilidade entre eles é um fator importante para o sucesso da experiência vivida (Franco, 2012). De acordo com Minkowska (1978), o método de análise da linguagem pressupõe uma expressão individual do modo como apreende e significa a realidade, o contato com os outros e consigo mesmo. Daí que, em nosso estudo procuramos transpor estas análises na compreensão do antes e depois de uma relação interpessoal em psicoterapia.

 

2. Objetivo e método

O objetivo desta pesquisa foi investigar as contribuições do método fenômeno-estrutural em uma pessoa diagnosticada por um médico psiquiatra com depressão e outra com ansiedade, e como ocorreram os acontecimentos e a linguagem na psicoterapia individual ao longo de um ano. O método utilizado para analisar a linguagem e os comportamentos no teste de Rorschach e na psicoterapia foi o método fenômeno-estrutural, no qual se enfatizam as qualidades expressivas do espaço e do tempo vividos para compreensão das características da personalidade da pessoa antes e após um ano de psicoterapia. Como procedimento foram realizados dois estudos de caso a partir da aplicação do Rorschach baseada no estudo de Zéna Helman e de Françoise Minkowska (Minkowski, 1965), que o utilizavam como meio para compreender as vivências e os modos de se relacionar com as realidades objetivas a partir dos fundamentos da semântica pessoal e não da análise do conteúdo concreto ou interpretativo. Enfatizou-se neste estudo elucidar os mecanismos essenciais da linguagem: o mecanismo de ligação (lien) e o mecanismo de corte ou ruptura (coupure); o dinamismo ou a falta dele no contato com a realidade (vitalização/desvitalização), tempo e espaço vividos e os aspectos da afetividade. Dessa forma, o método de Rorschach tornou-se um referencial e um coadjuvante para o trabalho clínico, pois completa e elucida a observação clínica. No processo do atendimento clínico voltamos a atenção à experiência vivida na interpessoalidade e os acontecimentos manifestados ao longo de um ano. Essa pesquisa é derivada de uma pesquisa de pós-doutorado que foi submetido e aprovado pelo comitê de ética em pesquisa com seres humanos do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, processo CAAE número 14889613.1.0000.5166.

 

3. Resultados

Foi realizada psicoterapia semanal com dois pacientes diagnosticados com transtorno de ansiedade e transtorno depressivo por um psiquiatra, respectivamente, Paulo3, de 26 anos, e João4, de 16 anos. Foram realizados com Paulo, 43 atendimentos e duas faltas. Com João foram realizadas 34 atendimentos, duas faltas e 8 sessões de orientação com os pais na Clínica Psicológica Durval Marcondes do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.

3.1 Compreensão psicológica do processo de psicoterapia pelo período de um ano com João: paciente com depressão

João iniciou os atendimentos com queixa de depressão moderada e por conta disso não estava mais conseguindo frequentar a escola. Como consequência repetiu o segundo colegial. Iniciou a psicoterapia e no ano seguinte se mostrou mais seguro e disposto a enfrentar o ano letivo. Com intuito de ajudá-lo nessa transição, os pais mudaram-no de escola, o que foi benéfico para todos. Percebeu-se que os pais são zelosos, de bons valores e conduta ética, e enfatizaram o lado prático da educação. A despeito de haver afeto, percebemos dificuldades no relacionamento entre os pais e o filho; havia um cuidado que era compreendido por parte do filho como invasivo a seu espaço. João se sentia pressionado e cobrado de forma que reativamente apresentava explosões de raiva e agressividade. Apresentava sentimento de solidão e incapacidade que o acompanha nessa fase da vida. Não conseguia expressar seus sentimentos, a impulsividade ainda era mais forte do que o alívio ou comunicação de afetos e desejos. Isso decorria em parte da imaturidade da idade e em parte por conta da baixa tolerância à frustração que ao longo da vida não foi devidamente estabelecida, tendo nesses momentos dificuldade de elaborar e aceitar situações controversas. Durante o processo de psicoterapia João fez vínculo com a psicoterapeuta e teve cuidado nas questões referentes à dinâmica familiar e aos relacionamentos amorosos que pela falta de experiência e idade geravam muita angústia e sentimentos difíceis para ele entender e nomear. Os pais e João afirmavam que conseguiam se expressar no espaço terapêutico, mas não em casa. Foram notáveis os cuidados dos pais com a situação que, por vezes, fugia ao controle, mas tiveram o cuidado de trazê-lo às sessões e mostraram um investimento emocional considerável para o amadurecimento do seu filho. Respeitaram o espaço da psicoterapia, sigilo e privacidade, colaboraram e auxiliaram na terapia seguindo as orientações que a terapeuta fazia quando necessário. Isso trouxe benefícios, todos ao seu modo tiveram uma intensidade de cuidado e sofrimento e buscavam cuidar disso do melhor modo possível. João apresentou recursos para desenvolver-se e apesar da passagem da adolescência mostrou que tem capacidade de enfrentar e superar vivências difíceis.

Durante este processo João retomou os estudos, o que compreendemos como um efeito do investimento, dele para si e dos pais que apoiaram a psicoterapia e voltou a se relacionar, o que antes parecia inacessível. O cuidado terapêutico pôde resultar num maior fortalecimento no relacionamento dele com seus pais, em decorrência disso João pôde aumentar a capacidade de tolerar as frustrações e sentir que em casa tinha um ambiente de maior apoio, compreensão e tolerância. Quando os pais foram ao atendimento isso parecia refletir na melhora de João, já que eles também recebiam cuidados e orientações. Esses dados foram repassados em um relatório elaborado para o psiquiatra que o acompanhava.

3.2 Aplicação do método de Rorschach, dados da psicoterapia e reavaliação em João

João foi objetivo nas repostas dadas, diferente do seu modo de ser na psicoterapia, onde era mais prolixo e de fala com muitas pausas, isso aconteceu tanto na primeira aplicação quanto na segunda. Não houve diferenças estruturais depois de um ano, João continuou apresentando respostas desvitalizadas e dificuldade de reconhecer suas respostas e associações nos inquéritos (segunda fase do Rorschach, na qual há um esclarecimento das localizações e determinantes das respostas/percepções), mas havia a percepção de serem uma representação, o que trazia após um ano um componente de maior contato com a realidade e mais respostas vitalizadas. Durante a psicoterapia percebemos maior contato visual com a psicóloga e maior abertura para os relacionamentos, corroborados por um aumento da capacidade de arriscar-se e de frustrar-se, antes impensável. Como exemplos, citaremos as respostas à prancha I. "Parece uma raposa, parece também um lobo, sei lá, um pássaro, ave. Acho que só isso". João apresenta uma certeza em duas imagens seguidas "parece uma raposa" e "parece também um lobo", mas em sequência a dúvida se impõe diante da realidade percebida: "sei lá" e traz uma imagem mais genérica "um pássaro, ave" e continua hesitando no que percebe desta realidade: "acho que é isso". Na segunda aplicação, um ano depois: "Parece um animal, um resto de um animal, sei lá, uma mulher com umas asas, um anjo, um monstro, não sei. Lembra uma aranha também e parece uma asa-delta. É isso".

Um anos depois, João vê o genérico "parece um animal" e segue o aparecimento do mecanismo de corte "um resto de um animal", não ele inteiro, "um resto", o que sobrou dele. A dúvida ou hesitação persiste: "sei lá" e segue a transformação da imagem em "uma mulher com umas asas, um anjo", o que culmina em uma figura para-humana, irreal, "um anjo", que se transforma em "um monstro" e mais uma vez o dúbio: "não sei". Por fim, termina a resposta recorrendo à memória, não mais à percepção do que está diante de si (a realidade): "lembra uma aranha", remete à memória. E conclui de forma que desvitaliza a imagem diante de si: "parece uma asa-delta", um objeto para voar e inclui uma expressão de certeza: "é isso".

Na prancha II ele diz "Dois elefantes, parece órgãos do corpo, parece o pulmão. Acho que só isso". João vê imagem no todo, global, para o parcial e desvitaliza as imagens, da imagem de animais "dois elefantes" para um órgão "parece o pulmão"; há uma afirmação dúbia quando diz "acho que só isso". O modo dele iniciar as respostas é pela duplicação "dois elefantes", o que se repete por quase todas as pranchas. Também reproduz elementos do corpo sem relação ao corpo íntegro (daí o mecanismo de ruptura), inanimados. A tendência de João é ir do concreto para o abstrato, verificado na prancha III da primeira aplicação: "Isso parece duas pessoas, parece também um caranguejo e também uma aranha. Só isso", demonstra um estilo racional, com pensamento e desconexão afetiva. Já na segunda aplicação responde para essa mesma prancha: "Parecem duas pessoas tentando levantar alguma coisa, também parece o resto de um inseto, parece o reflexo de um animal. Só vejo isso". Após um ano de psicoterapia ele traz uma imagem em movimento e o mecanismo de ligação: "pessoas tentando levantar alguma coisa", expressão mais sensorial. Em seguida o mecanismo de corte ou ruptura: "o resto de um inseto", fator mais racional e distante do humano.

Na prancha IV da primeira aplicação apresenta percepções sem movimento: "Essa parece um bicho, parece a cabeça de um bode, um bicho com chifre. Um inseto, sei lá, só isso" e na segunda aplicação mostra um vai-e-vem entre elementos inanimado e desvitalizado ("caveira") e elemento humano ("pessoa"): "Parece a caveira de um boi, parece também uma pessoa olhando de baixo para cima, parece um monstro. Parece também uma lagarta, um inseto, vi também uma taça, um troféu e uma santa. Acho que só". João transforma rapidamente a visão em imagens, ele vê várias imagens: desvitalizada ("caveira"), humana ("pessoa"), para-humano ("monstro"), animais ("boi", "lagarta", "inseto") e depois objetos sem vida ("taça", "troféu"), finalizando com uma imagem fantasiosa, sagrada ou religiosa ("santa").

Na prancha V da primeira aplicação descreve respostas globais e formais: "Parece um morcego, também um inseto, uma mariposa, uma borboleta. Um avião também, sei lá". A percepção formal predomina em uma sucessão de imagens de animal/inseto voadores até se transformar em um objeto científico, sem vida. Na segunda aplicação traz uma sucessão de imagens semelhantes (morcego/mariposa/borboleta), uma "lesma" e uma "asa delta", como um objeto criado pelo Homem, tal como o "avião" do Rorschach anterior. O que chama a atenção é a forma de animais e objetos voadores sem movimento e suas imagens finalizam com perceptos desvitalizados. Os primeiros perceptos têm em suas características um peso (morcego) maior que as imagens posteriores (inseto/mariposa/borboleta e mariposa/borboleta) e finaliza com objetos pesados e sem vida (avião e asa delta). Suas expressões finais "sei lá" e "acho que só" expressam uma incerteza na expressão das imagens que vê. João enfatiza a forma na primeira aplicação da prancha VI: "Parece a folha de uma árvore, sei lá, lembra um gato, não sei porquê. Parece um avião, sei lá." A primeira imagem é uma percepção ("Parece a..."), a segunda imagem uma lembrança, memória ("lembra um...") e em seguida outra percepção ("Parece um..."), após cada imagem vista traz a expressão de incerteza ("sei lá, não sei porquê, sei lá"). Na segunda aplicação revela perceptos vistos no todo e é remetido à memória: "Me lembrou um gato, também uma folha de uma árvore, uma estrela também e também um prédio, acho, acho que só". Da imagem de um animal, para objetos de natureza ("folha de árvores" e "estrela") e finaliza com um objeto inanimado ("prédio"), indica racionalidade, desvitalização na sucessão de imagens e incerteza ao final ("acho. Acho que só").

Na prancha VII apresenta um processo de desvitalização que nasce da imagem humana até uma pedra: "Uma mulher se olhando no espelho, parece aquela folha de árvore comida, sei lá, parece um monte de pedra. Só isso". Há uma pessoa, mas não se relaciona, está voltada para si mesma ("se olhando"), há um autocentramento, como ele se apresentava na vida. Na segunda aplicação, há um elemento de ligação (lien): "Parecem duas mãos, mas também duas mulheres se olhando, idênticas e só vejo isso", o que mostra um maior interesse pelo outro, como ocorreu no interesse pela psicoterapeuta e pelo mundo. Há uma perspectiva relacional que começa a se sobrepor aos aspectos desmotivadores de João.

Nas pranchas coloridas que estimulam as reações afetivas, ele responde na Prancha VIII: "Parece órgão, tipo coração, pulmão, parece dentro do corpo. Parece que é o reflexo do animal em cima de uma pedra." Ele fala da espacialidade na qual o contorno e a parte interna do corpo é vista no todo, com conteúdo sem vida, anatomias do corpo ("órgão, "coração", "pulmão") e a imagem seguinte é de um animal "em cima de" uma pedra com seu reflexo, assim, o mecanismo de ligação se faz presente, mas a imagem é desprovida de cinestesia. No inquérito esclarece por meio de fatores racionais da simetria e da forma, dos dois lados seria o reflexo no espelho. Na segunda aplicação relata: "Primeiro eu vi um animal, o reflexo de um animal também. Uma bandeira, duas bandeiras. Só isso", percebemos que a imagem de um ano atrás se mantém com o reflexo e traz a imagem de uma bandeira e por meio do sutil mecanismo de corte a divide em "duas bandeiras", objetos inanimados e simbólicos.

Na prancha IX a resposta é baseada na percepção da forma: "Essa aí parece também órgãos, parece máscara, também um bicho. Só isso aí". No inquérito esclarece apontando detalhes dos "olhos", "nariz" e "boca do bicho", também a "cabeça" e "boca da máscara" e "pulmão". Na segunda aplicação após um ano: "Parece uma caveira esquisita, um monstro também. Parece também um troféu e uma taça. Só isso". Na fase de esclarecimento descreve a percepção vista no todo, uma parte para-humana que se transforma em uma imagem desvitalizada da "caveira" e a sutileza do mecanismo de corte aparece na expressão: "tirando o verde", excluindo o determinante afetivo, a próxima imagem é de um "troféu e taça", mostrando percepção de forma e cor, mas esta não é integrada em seus perceptos, apenas nomeada.

Na última prancha X: "Essa parece um monte de planta, flor, parece um monte de inseto também. Uma máscara também, é, isso". E na segunda aplicação: "Parece flores, assim, planta. Pensei numa salada, numa comida. Parece também um mosquito, parece também gelo e parece também um homem com um chapéu, só isso", não fez referência à cor e no inquérito se dirige à forma, sem cor e sem movimento.

Percebe-se um modo racional que busca uma explicação, mas ele se distancia da realidade do mundo vivido. Para João os elementos não se aglutinam, são dissociativos na linguagem tanto do Rorschach quando na psicoterapia, não havia ligação no contato visual durante a aplicação do Rorschach e na psicoterapia. A narrativa nesta última era prolixa e desconexa, mas ao longo do tempo a perspectiva relacional se intensificou. De modo surpreendente se coloca num devir e numa ocupação com a própria vida e não mais numa melancolia que se referia ao passado e ao que não era realizado. Apropriou-se do processo de começar a conquista, já que antes só havia foco nos fins, sem considerar o processo e a responsabilidade que tinha pelo próprio caminho.

3.3 Compreensão psicológica do processo de psicoterapia pelo período de um ano com Paulo, diagnosticado com ansiedade

O motivo para Paulo procurar pela psicoterapia referia-se ao sofrimento de ansiedade crônica, chegava a vomitar várias vezes ao dia quando estava em crise. Quando fez os exames médicos indicou apenas uma leve gastrite, o que não justificava esses sintomas e foi encaminhado pelo médico para acompanhamento psicológico. Paulo comprometeu-se com o processo, sempre pontual e com disponibilidade emocional para se aprofundar em seus conteúdos psicológicos. Descreveu sua história em ordem cronológica, desde os 13 anos quando seus pais se separaram. Ele escolheu morar com sua mãe e o padrasto, mas descreveu conflitos de convivência com este. Ficou por três meses sem ver seu pai e quando iriam se reconciliar o pai faleceu, não houve tempo para o encontro. Ele tinha 14 anos nessa época e chorou muito ao relembrar disso e também quando relatou sobre sua família. A desestrutura que houve e o desamparo que sentia deixou uma marca profunda nele.

Nessa época já estava usando drogas e tinha amigos que também usavam, logo foi aumentando o uso e o tipo de droga, de maconha à cocaína e crack. Descreveu que na adolescência sentiu depressão a partir de alguns rompimentos afetivos, sensação de inadequação e solidão e, então, recorreu às drogas, na tentativa de fugir desses sofrimentos, bloquear os verdadeiros sentimentos que pareciam ser de desamparo, inconformismo, decepção pela perda da família conforme suas expectativas. Deu-se conta desses sentimentos profundos durante o processo e que o uso das drogas e a ansiedade o distanciavam disso.

Esse modo de evitar o desconforto psicológico e mesmo corporal não era consciente, tudo que o incomodava e quando necessitava relaxar ele recorria à maconha como forma de desligamento e ruptura com essa realidade. O crack ele havia parado de usar há sete anos, quando conheceu sua atual esposa. Ela o ajudou muito e se empenhou em cuidar do relacionamento. Usava maconha para enfrentar certas situações do cotidiano em que a ansiedade o dominava, bem como para se livrar do crack, pois quando sofria abstinência fumava maconha e sentia alívio. Em relação à maconha não tinha intenção de parar o uso, mas gostaria que fosse um uso recreativo, não da forma paliativa, um corte, em relação ao uso das drogas e da ansiedade. No meio do processo conseguiu aproximar-se desse distanciamento das drogas, usava nos finais de semana como uso recreativo, não mais frequentemente durante a semana no intuito de relaxar e amenizar a ansiedade excessiva. Ao se aproximar o término do processo de psicoterapia voltou a usar com mais frequência, mas não conseguia, como antes, a sensação de alivio, mesmo que quisesse – naturalmente a função que tinha o uso da maconha se desfez, começou a contar com recursos próprios, ainda que houvesse muita angústia e sofrimento, demonstrava conseguir suportá-los melhor do que antes. Compreendeu-se que as drogas, assim como a ansiedade excessiva, tinham como função protegê-lo de tantos sentimentos que não conseguia lidar e sentir quando foram acontecendo e emergindo, então, tentava bloquear a experiência de sentir, simbolizar e mobilizar uma ação. Durante o processo ele começou a refletir de modo mais verdadeiro e genuíno seu sofrimento e experiências, que começaram a ser conscientizadas e expressos com choros como expressão desse reconhecimento e de novas possibilidades. Também se dialogou sobre seu lado forte, determinado, capaz, inteligente e afetuoso. João era uma pessoa que buscava e necessitava de relações saudáveis e nelas, bons afetos (mecanismo de ligação) e também com o lado que tem sentimentos que considerava ruins, de insegurança, de baixa autoestima, de desânimo, de ressentimentos e culpas que por muito tempo evitava entrar em contato (mecanismo de corte), de modo que foi importante reconhecer essa dualidade existente, pois com o processo de psicoterapia pôde experimentar possibilidades de integração. A temporalidade também foi contraditória para ele, pois sentia que chegava longe demais para o que ele esperava de si, por outro lado, sentia que tinha mais potencial que imaginava, havendo nele sempre uma contradição. Isso se evidenciou quando num dado momento do processo um amigo faleceu de acidente de moto, isso o fez relativizar o tempo, pois no início do processo sentia que a idade de 26 anos já era avançada e que estava lutando contra o tempo e depois desse ocorrido pensava que havia muito ainda para se realizar e viver. O futuro se abriu, de modo que a esperança foi nele reativada. Também se percebeu "viciado em adrenalina" (SIC) e como não usava mais crack e outras drogas, a moto parece ter sido um substituto para essa sensação de adrenalina, liberdade e poder. Assim como o ciclismo, atividade na qual alcançou o desempenho de atleta (percorreu 80 km num percurso). Ele gostava de passear e se sentir longe da rotina, mas quando chegava no destino queria voltar, não havia mais prazer na parada e na rotina.

Paulo enfatizava que sempre evitou a monotonia, pois sentia que esta o desanimava e talvez isso levou-o ao outro extremo de não conseguir pensar a longo prazo, era imediatista na busca de satisfação e buscava rápido demais o retorno dos seus investimentos. No entanto, percebeu que esse movimento estava sendo vazio, não proporcionava um preenchimento realmente significativo, era centrado em obter aprovação dos outros e não a própria. Havia o medo de se confundir com as opiniões dos outros, de absorve-las como sendo a verdade a seu respeito, já que estava em dúvida a respeito de quem era e do seu valor. Por isso, no início do processo de psicoterapia, era mais importante ser admirado e elogiado do que seguir um caminho próprio, que o levasse a uma real satisfação. No final do processo reconheceu o quanto as sessões estavam sendo benéficas para ele, ansiava durante a semana falar sobre suas questões, contou que toda vez que vinha à terapia, deixava algo que não gostava de si mesmo e levava algo novo que incorporava à sua vida e que era "muito bom sentir isso, mudando e liberando sentimentos ruins que estavam guardados" (SIC). Sentia-se bem na psicoterapia pelo fato de que estava sem nenhuma crise de gastrite e vômito desde o início do processo, o que o confortava e ao mesmo tempo, o preocupava em relação ao término das sessões, já que havia o acordo de um ano por conta da pesquisa. Mesmo com a possibilidade de ser encaminhado para outro psicólogo na própria instituição, essa solução não o aliviava, por conta do vínculo formado nessa relação; para ele ainda era delicado o processo de fazer vínculos com as pessoas, pelo medo de perde-las, já que ao longo da vida isso sempre foi um "gatilho" para recaídas em relação ao uso de drogas. O vínculo (lien) o remete a possibilidade de perder (corte). Ao mesmo tempo que é afetuoso e valoriza as relações, precisaria se compreender mais, ser mais forte para cuidar de si, para, então, poder voltar-se ao cuidado do outro e das relações, numa troca mais horizontal, solidária e livre de expectativas que o aprisionava a si e ao outro. Por fim, a terapeuta pôde perceber melhoras consideráveis tanto no âmbito psicológico como no físico, ao longo do processo considerou-o como pessoa inteira, não apenas acolhendo suas angústias, mas todos os sentimentos trazidos como os de alegria e as realizações alcançadas e ofereceu sua presença e compreensão ao que ele apresentava em cada momento. A partir de todo esse investimento realizado, de empenho e dedicação, pôde assumir o seu próprio referencial de vida e não mais se perceber no mundo como entregue às circunstancias, como se fosse um destino o que lhe acontecia, sem ter como direcioná-lo.

3.4 Aplicação do método de Rorschach, dados da psicoterapia e reavaliação no paciente diagnosticado com ansiedade

A linguagem faz sentido a partir de um contexto, Paulo se apresentava em outro polo, no tipo sensorial, pois havia dependência e ligação afetiva. No entanto, na segunda aplicação do método de Rorschach houve uma mudança quanto aos elementos de impulsividade, que se evidenciaram diminuídos e aos de desvitalização, que mostraram-se exacerbados; isso refere-se talvez aos efeitos da abstinência que deixa a pulsão sensório-motora existente nele mais evidente (Helman, 1998). Pode-se observar esse movimento na prancha I quando na segunda aplicação Paulo respondeu depois de uma pequena hesitação: "me parece uma mariposa quando colecionadores de insetos pegam e colocam para exposição como nas escolas". Nesse momento há elementos de ligação na sua linguagem ao apresentar o verbo "pegar" e de desvitalização quando descreve insetos para exposição. Na primeira aplicação respondeu: "parece uma borboleta, daquelas mariposas, acho que parece com isso". A expressão "acho" revela sua insegurança, mas mais vitalizado e já apresentava um fator de racionalidade, pois baseou-se nos determinantes formais.

Já na prancha II da segunda aplicação respondeu: "me parece uma paisagem, uma cascata ao fundo, um lago largo em segundo plano e em primeiro plano uma cascata bem fina...como se fosse isso, uma obra de arte, uma pintura mesmo". Nessa prancha percebe-se a aproximação espacial dos planos, de uma "paisagem", "uma cascata ao fundo", distante, relação espacial de distanciamento, por fim reúne os pormenores e conclui como sendo "uma obra de arte". Há uma sutileza de desvitalização, pois apesar de parecer viva a descrição, ela finaliza sem movimento, pois a paisagem se encontra numa pintura, numa obra de arte. Essas características apareceram também nas sessões de psicoterapia, a sensação de estar preso, desvitalizado, busca uma vida diferente, no entanto, vive para ser apreciado, como uma obra de arte que parece ter vida, mas está ausente de movimento. Na primeira aplicação Paulo respondeu: "Isso parece ser um...vejo rio e uma montanha. Uma corredeira de um rio, um lago e uma cachoeira no final. Uma paisagem", o que demonstrava pela sua linguagem elementos de maior certeza, ao dizer "vejo" e apresentou um fator sensorial, pois baseou-se no movimento, além de apresentar uma vivencia de espacialidade (mais alto e longe) que distancia a realidade percebida de si mesmo.

Apresenta um aspecto de ligação na prancha III já na primeira aplicação: "Parecem duas pessoas sentadas, uma de frente para a outra. É... dois banquinhos, uma sentada de frente para o outra e umas coisas entre elas". E na segunda mantém o mecanismo de ligação, há um fator sensorial e acrescentou cor (cor vermelha - responde no inquérito - que é a luz das velas): "... me parecem duas pessoas, uma olhando para outra, como se estivessem sentadas num jantar, em cima da mesa tivessem duas velas sobre a mesa e algumas decorações, como se fosse um jantar, me parece." Já na prancha IV na primeira aplicação não descreveu movimento, somente forma: "...hum, parece uma mistura, essa parte parece os olhos do caramujo e essa parte as asas, complicado. Olhos salientes que vão para todos os lados, é isso" e na segunda o mesmo ocorre: "Deixa eu ver...parece para mim um inseto diferente que não consigo descrever direito o que é, parece aqueles insetos de mostruários, que se vê o bichinho, inseto esticado...complicado". A percepção da realidade é para ele complexa, ou em suas palavras, algo "complicado", difícil de descrever.

Paulo na prancha VIII retrata "dois animais de quatro patas, mamíferos, subindo em algo, uma árvore. Os dois subindo para lados opostos". A imagem é vista em movimento ("subindo em algo") com mecanismo de ligação ("numa árvore"). Paulo não se refere às cores desta prancha, que é totalmente colorida. Na segunda aplicação: "...difícil esse...me parece, essas partes vermelhas dos animais de quatro patas subindo alguma coisa que não me parece com nada também, que é esse negócio verde. Acho que isso, tá muito confuso esse, muitas cores, muitas misturas, muito complexo. Difícil esse". Difícil o contato com sua afetividade, mas desta vez aparece em uma nomeação da cor, para localizar, sem integrá-la ao conteúdo, o que não ocorreu no início da psicoterapia.

Na Prancha IX Paulo traz a imagem de "uma explosão solar, daquelas que passa nos canais de ciências. Aquelas mega explosões solares, aquelas simulações". E quando inquirido esclarece a sequência de cores e como estão dispostas. Aponta o formato da imagem e as cores vermelha, verde, amarelo e laranja, sem formas ou cores puras. O afeto sem contorno formal, o afeto como "explosão" que é seguida pelo interesse científico e racionalizado. Essa descrição de movimento e cor pura é, segundo Minkowska (1956) típica dos epileptoides. Paulo parece apresentar aspectos da própria agressividade, que não pode controlar, o que faz parte do dinâmica de seus afetos. Na segunda teve dificuldade para ver uma imagem: "Nossa, esse aqui...parece um desenho manchado, de desenho animado, uma figura de desenho animado que manchou... muito complexo, difícil de encontrar uma imagem, uma figura, me parece manchas de tinta, borradas". Diante da dificuldade afetiva ele ganha tempo, que denominamos "temporalização", ao dizer: "Nossa, esse aqui... parece um" e traz a imagem de um "desenho animado" e volta a se deparar com a complexidade diante de seus afetos e descreve o que vê "manchas de tinta, borradas", mas não consegue dizer com o que se parece a mancha.

Por fim, na Prancha X, Paulo especifica que "parecem flores, flores amarelas, detalhes alaranjados, essa parte parece diversos tipos de flores, vejo 3 ou 4 tipos de flores diferentes". Nesta última lâmina ele integra forma-cor e na segunda aplicação, após um ano: "Aqui parece a pintura de algumas flores, bem coloridas, amarelas, laranjas, folhas verdes e ao centro uma planta, uma flor vermelha, uma espécie de pintura abstrata...é isso mesmo, vejo flores", segue enfatizando forma e cor. Esse movimento parece indicar as possibilidades de integração dos seus afetos em perceptos que contemplam a natureza.

Paulo apresenta, em geral, um estilo sensorial, os elementos se aglutinam, há sempre a tentativa de religação na estrutura da narrativa. Há um aspecto sofrido de corte e uma busca incessante de ligação tanto nas respostas do Rorschach quanto nas sessões de psicoterapia. O tempo passado e o presente se confundem, o mecanismo de corte e ligação alternam-se e o paciente sentia um intenso desconforto subjetivo. O sentimento de desamparo, solidão e falta de continência marcavam o sentimento de abandono e rejeição presentes. O mecanismo de ligação é bem nítido e funciona de forma adaptada e conectada com a experiência da realidade. Os mecanismos de ligação e corte se encontram também nas vivências depressivas, não só nas vivências epilépticas e esquizofrênicas, mas em qualquer estrutura humana. Percebe-se que a cada ruptura ou cisão, o mecanismo de ligação aparece, coesão apreendida pela análise qualitativa (Minkowska, 1949). Assim, a análise fenômeno-estrutural mostra o dinamismo desses mecanismos, na relação de cada pessoa com o outro, com o mundo e com a realidade percebida. As rupturas, que se fizeram presentes na vida de Paulo (como morte do pai, independência financeira em relação à mãe, términos de relacionamentos) foram rejeitados, mas puderam ser resgatados pela palavra que juntou (pelo mecanismo de ligação) o que antes estava desconexo e em pedaços. Ele mescla uma lembrança positiva e vivida no presente com uma evocação desagradável do passado. Assim, tenta eliminar o desconforto do passado, aproximando as imagens a uma nova experiência vivida de conquista e superação. Sua linguagem verbal mostra que os mecanismos de ligação e corte coexistem e se alternam, se aproximando da possibilidade de integração. O mecanismo de cisão era sua marca principal de sofrimento, pois fazia parte de um intenso sofrimento vivido que o levou ao uso das drogas e com a ansiedade crônica, que adoece a temporalidade, pois o colocava permanente no futuro e em estado de medo. Isso o distanciava do encontro (e das ligações) como essencialmente era sua busca. Ele pôde se apropriar aos poucos, também se ocupando do presente e não mais se preocupando permanentemente pelo devir, como era seu modo predominante de ser.

 

4. Discussão

Como atingir a realidade profunda dos transtornos psíquicos, como preservá-los o mais proximamente possível de suas experiências íntimas admitindo cuidar apenas das suas exteriorizações? Uma das vias abre-se pela reflexão sobre o conceito de "duração", cunhado por Bergson, para quem um tempo cronológico, mensurável, métrico, deve ser distinguido de uma "duração" concebida como progresso, que não transcorre de modo mecânico, mas permanece em ligação íntima com a vida mesma, procedendo de uma inscrição fundamental na existência. Essa noção será tomada de empréstimo por Minkowski, mas somente à custa de sua libertação de uma outra ideia de Bergson que a psiquiatria não pode subscrever: a noção de que a linguagem, em razão da dimensão necessariamente espacial e fragmentada de suas atualizações, representa um obstáculo irredutível para a captura dos fenômenos essencialmente qualitativos da atividade psíquica, especialmente a duração vivida, sem a qual ela perde sua extensão, todo sentido e até mesmo sua definição. Em o "Tempo vivido" Minkowski (1995) descreve como a linguagem permite acessar traços específicos das organizações patológicas que se mostram particularmente sensíveis para a evocação das desordens da maneira de viver a temporalidade e sua continuidade subjetiva (Barthélémy, 2012). Minkowski define o conceito de contato vital como sendo de natureza dinâmica (Minkowski, 1995). Assim, o contato vital com a realidade é um fenômeno dinâmico: realidade material e individual fundem-se e cria-se uma significação única do que é a realidade. A realidade são as nossas significações, ela não existe separada de nós (Martinez, 2008). Carl Rogers afirma que na relação da pessoa com o mundo não se trata do 'eu', tal como existe em realidade, mas do 'eu' tal como é percebido pela própria pessoa (Rogers & Rosenberg, 1977).

A partir destes conceitos teóricos que se aproximam do vivido, pode-se pensar que mesmo sendo a realidade de difícil solução objetiva, a grande questão é não considerar apenas, ou mesmo, supervalorizar esses fatores ambientais, afinal a realidade é criada dentro de uma perspectiva individual e subjetiva. Rogers (1997) afirma que o organismo responde mediante uma realidade subjetiva (experiencial) percebida, e não mediante condições objetivas. Portanto, pode-se construir significações para as questões que enfrenta em sua vida e, assim, mediar o sofrimento diante de tudo que é inevitável. Contrário a qualquer reducionismo objetivista dos fenômenos psíquicos, o método fenômeno-estrutural baseia-se no encontro mais próximo possível do humano em relação. A partir daí, tal método não se limita a descrever a experiência vivida pelo indivíduo em sofrimento psíquico, mas pretende alcançar o conhecimento o mais próximo possível de uma estrutura que organiza as perturbações, a uma forma, a um fundo psíquico entendido de modo dinâmico numa perspectiva que pode ser, no plano fenomenológico, qualificada como uma estrutura organizada que encontra uma unidade, uma coerência e um sentido, segundo Beauchesne (1989). A psicopatologia exige um posicionamento entre o estudo da psicologia do patológico ou da patologia do psicológico, a visão de Minkowski é claramente junto à primeira proposição, pois entende que o verdadeiro objeto da psicopatologia não deve se limitar ao caráter mórbido ou doentio, mas como constituinte de uma outra forma de ser (Minkowski, 1966). Minkowski foi defensor de uma psiquiatria rigorosa em seu humanismo, crítica e aberta ao debate das diversas correntes que nela se encontram.

É preciso, enfatiza Costa (2003), descobrir a pessoa por detrás do sintoma, uma vez que o corpo fisiológico é apenas um segredo invisível, uma história que vive nesse corpo. O paciente não é apenas uma doença ou um caso, e sim uma pessoa, cuja linguagem da alma se expressa no corpo, não no tempo do relógio, mas no tempo vivido. Já na depressão melancólica, o tempo referente ao eu (subjetivo) parece para o doente estar mais lento que o tempo do mundo (objetivo) por meio da qual a inibição se instalava (Bastos, 2005).

Na narrativa de João, paciente com depressão, impregnou a ideia do trágico e do sofrimento, características intrínsecas da existência humana (Kierkegaard, 1947). Mas ele não aceitava como tolerável o sofrimento, era aceito somente o recebimento imediato, uma presentificação permanente, mas sem um passado construído. Minkowski (1999) esclarece que, em si mesmo, não há sentido no sofrimento humano, mas a partir dele se constroem sentidos para a vida, como ocorreu com esses dois pacientes. Para Bergson (1979), a direção que cria o futuro diante do indivíduo é fruto do "élan vital", entendido como o ímpeto original e criativo da vida, por meio do qual cada pessoa se desenvolve e evolui, escolhendo continuamente diante de suas possibilidades. Minkowski (1965) ressalta que quando o "élan vital" se "apaga", o Eu perde a capacidade do devir, do futuro, não conseguindo administrar suas exigências temporais e dinâmicas. Nessa perspectiva todo sentido da vida está ligado ao tempo e ao espaço vividos (Minkowski, 2000).

Permeando o mundo de solidão e revolta de João, muitas vezes a psicoterapeuta se percebeu imersa e também sem esperança junto ao paciente. Minkowski (2000) esclarece que há situações em que pouco resta para o ser humano, nem mesmo seus afetos, então, sente-se só. E talvez o outro em seu lugar não saberia fazer melhor, não há como julgá-lo. A ressonância e o eco são importantes nesse encontro humano, e não ajudaria consolar dizendo que, o que vive e sente deve ser diferente, um conselho dessa ordem seria inútil.

O sistema de referência se dá pelo papel da linguagem, a qual revela os caracteres essenciais das suas manifestações normais e patológicas (Minkowski, 1953). É, então, observada a fenomenologia da linguagem em sua função expressiva, a qualidade do espaço e do tempo vivido pelos pacientes, sua capacidade de empatia e ressonância no encontro com os outros. Assim, procurou desenvolver uma ciência antropológica, tendo como referência o homem e o relacionamento inter-humano, criticando os manuais de psicopatologia clássica, que consideravam apenas uma descrição sintomatológica, sem a compreensão dos significados dos fenômenos (Holanda, 2001). Minkowski (1965) esclarece que o sofrimento não é um bem para a pessoa, mas tampouco deve ser considerado um mal, pois a partir dele o homem depara-se com problemas que sua existência coloca diante de si e o reconhece. Em si mesmo e à priori o sofrimento não tem nenhum sentido, mas por meio dele coloca-se o problema do sentido da vida. Entende a ansiedade no sentido de causar agitação e perturbação à existência e não deve ser caracterizada como transtorno no sentido médico do termo. Mesmo denotando um "mal-estar", ela não é em absoluto uma doença, mas indica a capacidade de enfrentar adversidades, adaptar-se à mudanças, superar dificuldades ou resistir à pressão de situações adversas e sair fortalecido dessa experiencia, alcançando um crescimento pessoal (Brandão; Mahfoud; Gianordoli-Nascimento, 2011).

A ansiedade (ou a angústia) é um fenômeno incontestavelmente pático (do grego pathos), no entanto ela não é absolutamente patológica em suas origens. Assim, não a compreende como transtornos da ansiedade, mas apenas como ansiedade mórbida. Assim, faz-se importante o questionamento a respeito da ansiedade quando se encontra em presença do patológico, pois nem todas as manifestações psicopatológicas poderiam ser subordinadas ao termo genérico de desordens, como ocorre na patologia geral (Minkowski, 1965). Se para Paulo, o paciente com ansiedade, ocorresse um relato de futuro intimamente ligado a um elán vital inexistiria um quadro de ansiedade estabelecido, pois o futuro seria visto enquanto perspectiva, e aceito em sua atual configuração de algo ainda intangível, diante de limitações do presente. No entanto, o que prevalecia, na maior parte na narrativa era uma retomar de fatos passados intensos de dificuldades e impossibilidades, o que deixa em desvantagem o elán vital e o futuro e impede um estar, agir e pensar no seu presente vivido.

Essas manifestações dos afetos se refletem na questão da temporalidade, Minkowski (1995) ressalta que o élan vital está intimamente ligado ao conceito de futuro, pois lhe dá a esse uma significação própria. Também esclarece que a relação entre o passado e o futuro ocorre no presente vivido, o que oferece uma noção dinâmica à temporalidade, na qual o futuro se refere ao devir, ou seja, ao presente que pode vir a ser. Assim, o futuro é possibilidade vivencial e o passado ocorre da desvitalização do futuro que não pode ser presentificado.

A partir da análise do processo de Paulo, evidenciou-se na psicoterapeuta um sentimento empático da constatação de uma realidade desafiante, repleta de elementos trágicos, inevitáveis (a morte do pai, seu desamparo, a condição de dependência afetiva sendo obrigado a uma maturidade antecipada). Barthélémy (2013) esclarece que, se não há como fugir de certas situações de solidão e sofrimento, não caberia ao psicoterapeuta, portanto, amenizar tal vivência. No entanto, ele pode oferecer suporte para que um processo interior de redenção e de simbolização adequada ocorra no Self do paciente como foi feito ao longo do processo todo, a partir do encontro e da empatia. Segundo Brandão e outros (2011), os estudos de resiliência em nosso país estão relacionados aos fenômenos genéricos e de resistência ao estresse, mas também aos de recuperação e de superação. De acordo com Barthélémy (1997), o intuito não é se ater na descrição sintomatológica na qual se baseia a maioria dos estudos atuais, já que sabemos que o paciente, mesmo sem saber muitas vezes o nome do que sente, não se vê realmente compreendido em sua existência e subjetividade com a simples explicação diagnóstica. A proposta é se aproximar da pessoa que sofre a dor de uma tristeza que permanece, da falta de ânimo e vitalidade em sua vida como um todo, da falta de sentido no que faz no seu dia-a-dia, não apenas nas evidências comportamentais. Como proporcionar o verdadeiro encontro com aquele que se vê aprisionado em seu sofrimento? Esse foi o pano de fundo e objetivo principal da apresentação desses estudos de caso.

 

Considerações finais

A análise fenômeno-estrutural não se atém exclusivamente ao conteúdo, mas dirige-se à forma, apreendida em sua mobilidade e dinamismo vivo; não usa o conceito de inconsciente, mas encontra no consciente as forças criativas que se afirmam por elas mesmas; e não recorre à interpretações com auxílio de simbolizações, mas na vida e na riqueza e força expressiva da linguagem (Barthélémy, 1997). Barthélémy (2009) compreende que o ser humano carrega uma coesão e coerência subjetivas surpreendentes além de capacidades inatas de adaptação. Por meio do estudo de caso aprofundado, o foco clínico-investigativo busca a estrutura essencial da pessoa e de como ela vive o sofrimento que a afeta (Barthélémy, 2013), assim como feito nesse estudo em questão. Pôde-se verificar uma delicada cadeia no mundo dos afetos que foi sendo integrada por meio da linguagem e da inter-relação, já que a interlocução e o acesso à subjetividade são centrais no método fenômeno-estrutural. Esse método permite uma aproximação particular e distinta ao sofrimento vivido, possibilitando ações terapêuticas face à compreensão humana, a partir da análise fenomenológica da linguagem e das expressões. Estas se referem ao observar, à livre expressão, aos gestos, às necessidades, às dificuldades, às evoluções e aos interesses que ao longo do tempo, das experiências e da atribuição de significados participam do processo de integração da personalidade. Assim, as intervenções clínicas permitem uma compreensão do que é próprio de cada indivíduo em seu espaço e em seu tempo (Santoantonio & Antúnez, 2010). A atitude fenomenológica busca a essência, tendo que ultrapassar o plano da observação e se direcionar para as características essenciais dos fenômenos que compõem a vida. Nesse método, um caso é suficiente para elucidar a manifestação e o modo de ser do paciente acerca de um fenômeno (Barthélémy, 2006). A abordagem fenomenológica no âmbito clínico favorece o surgimento de vivências novas e propícias ao crescimento, no sentido concreto ou abstrato, que se manifestam na forma de ações que possibilitam o aparecimento do desconhecido que, muitas vezes, é acompanhado de um sentimento de desamparo que deve ser acolhido (Santoantonio & Antúnez, 2002). Dessa forma, a técnica é logo superada pela presença compreensiva e o diálogo compartilhado entre mundos tão distintos e ao mesmo tempo semelhantes, afinal, compartilha-se da mesma humanidade. O psicoterapeuta tem o objetivo de compreender a realidade que cada um experimenta e acompanhar essas vivências. O trato é afetivo, mais que racional (Santoantonio & Antúnez, 2006). A forma como se lida com a desordem psíquica do outro deve ser pautada na relação, Barthélémy (2011) entende que o psicólogo é mediador de sentimentos e significados do paciente. Deve-se ter a percepção de que há uma ressonância quando se cuida de uma pessoa, o psicólogo não pode mudar o modo como o paciente sente e vive sua realidade, mas ele é um intermediário para o outro se colocar perante a vida de forma diferente. Assim, não se faz uma explicação, e sim uma compreensão dessa pessoa – percebe-se o outro pela totalidade e não parcialidade ou dualidade. Para isso, alcança-se a compreensão e organização do discurso, de forma a restituir os sentidos e haver uma comunhão de significados acerca da estrutura no que se refere à unidade, coerência e sentido. Essa estrutura encontrada na pessoa não é fixa, pelo contrário, é viva e permite flexibilidade ao longo da vida. Isso se dá conforme a modulação da vida afetiva, assim, o instrumento do psicólogo é sua própria dinâmica de personalidade. Sendo necessário permitir-se entrar em contato com o mundo do paciente, como ele sente e vive sua desorganização psicológica (doença psíquica). Então, o método refere-se a compreender o fenômeno pela experiência da relação, afeto e partilha de sentidos possíveis, não apenas pela explicação dos sintomas e racionalização teórica. O processo do trabalho clínico busca um sentido de desintelectualizar para enriquecer a experiência a partir dos sentidos (Barthélémy, 2011). A aproximação e vivência compartilhada de ambas as subjetividades, tanto do paciente quanto da psicoterapeuta, foi o instrumento no cuidado terapêutico e humano oferecido ao outro. O caminho da compreensão se mostrou capaz de cuidar e elaborar as questões psíquicas que não estavam conscientes – eram tentativas de elaboração de forma inadequada ou expressas em forma de somatização. Ao humanizar a relação com a pessoa que sofre permite-se que as defesas percam a força e possam trazer à superfície o que antes era evitado e isso, por si só, já é terapêutico e confortador, pois deixam de estar sós nesse processo, mas com uma testemunha ativa, que ofereceu uma presença terapêutica e compreensiva, sem os julgamentos que os próprios pacientes já carregavam em seu cerne que causavam mais culpa que transformação e mudança.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Av. Claudio Celestino de Toledo Soares, 266
Jardim Paraiso – Campinas – São Paulo
E-mail: tatianahperches@gmail.com

Recebido: 27.09.20
Corrigido: 13.11.20
Aprovado: 21.01.21

 

 

3 Nome fictício.
4 Nome fictício.

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