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Boletim - Academia Paulista de Psicologia

versão impressa ISSN 1415-711X

Bol. - Acad. Paul. Psicol. vol.41 no.100 São Paulo jan./jun. 2021

 

I. TEORIAS, PESQUISAS E ESTUDOS DE CASO

 

A psicologia na enfermaria psiquiátrica em hospital geral

 

Psychology in psychiatric nursery in a general hospital

 

La psicología en la enfermería psiquiátrica en un hospital general

 

 

Gabriela Eustáquio OliveiraI; Tayna Benko FariaII; Tatiane Guimarães PereiraIII

IPsicóloga, Mestranda em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano, IP-USP. ORCID - [http://orcid.org/0000-0001-9790-8602]
IIPsicóloga egressa da UNISO. ORCID [http://orcid.org/0000-0003-2421-1390]
IIIPsicóloga Doutora em Saúde Pública, USP, Professora e supervisora do Estágio em Saúde da Psicologia na UNISO. ORCID- [http://orcid.org/0000-0003-2928-293X]

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A enfermaria psiquiátrica em hospital geral deve atender aos preceitos do Modo de Atenção Psicossocial para oferecer um tratamento integral, humano e digno. A construção desse saber e dessa atuação se mostra emergente, pois há escassez da literatura acerca deste serviço. Este artigo tem o propósito de descrever a experiência do estágio em Psicologia da Saúde neste serviço. Por meio do psicodiagnóstico institucional e da observação participante, as estagiárias propuseram uma Oficina de Arteterapia. A experiência se mostrou potente como uma ferramenta de tratamento e de comunicação entre o profissional e paciente. Desse modo, cria-se uma possibilidade de entrar em contato com a história do usuário, sentimentos em relação a sua família, a sua doença e frente à internação. A prática possibilitou que as estagiárias entrassem em contato com uma atuação factível e frutífera e, por isso, necessária para os modelos de humanização do cuidado.

Palavras-Chave: Psicologia em Saúde; Unidade Hospitalar de Psiquiatria; hospital; Saúde Mental.


ABSTRACT

The psychiatric nursery in a general hospital is based on the precepts of the psychosocial Care Paradigm seeking for an integral, humane and dignified treatment. The construction of this knowledge and performance is emerging, however there is a shortage of literature about this practice. This article aims to describe the experience of the internship in Health Psychology in this service. Through institutional psychodiagnosis and participant observation, the interns proposed an Art Therapy Workshop. The experience proved to be potent as a treatment and communication tool between professionals and patients. Thus, it creates a possibility to get in touch with the history of that patient as well as their feelings about their families, illness and feelings regarding hospitalization. The practice allowed the trainees to get in touch with a feasible and fruitful performance and, therefore, necessary for the humanization models of care.

Keywords: Health Psychology; Psychiatric Hospital Unit; hospital; Mental Health.


RESUMEN

De inicio reciente, la enfermería psiquiátrica de un hospital general debe cumplir con los preceptos de la Modalidad de Atención Psicosocial para ofrecer un tratamiento integral, humano y digno. La construcción de este conocimiento y de esta actuación está en proceso de emerger, pues hay una escasez en la literatura sobre este servicio de salud. Este artículo tiene como objetivo describir la experiencia un grupo de alumnas en las prácticas de Psicología de la Salud en este tipo de servicio. A través del psicodiagnóstico institucional y la observación participante, los internos propusieron un Taller de Arteterapia. La experiencia demostró ser potente como herramienta de tratamiento y comunicación entre el profesional y el paciente. De esta forma, se crea la posibilidad de entrar en contacto con la historia del usuario, los sentimientos sobre su familia, su enfermedad y el afrontamiento a la hospitalización. La práctica posibilitó que las alumnas entraran en contacto con una actuación factible y fructífera y, por lo tanto, necesaria para los modelos de humanización del cuidado.

Palabras clave: Medicina de la Conducta; Servicio de Psiquiatría en Hospital; hospital; Salud Mental.


 

 

Introdução

A Psicologia da Saúde tem como objetivo aplicar os conhecimentos e técnicas do profissional psicólogo visando contribuir com a promoção de saúde, cuidado, compreensão dos fatores orgânicos, comportamentais e sociais que envolvem o processo de adoecimento (Teixeira, 2004; Castro & Bornholdt, 2004). Segundo a American Psychological Association (APA 2004, apud Teixeira, 2004, p. 442), a atuação do psicólogo na área da saúde também contribui para um menor número de internações nos hospitais gerais, para um melhor aproveitamento dos serviços públicos de saúde e para diminuição de tratamentos medicamentosos. A Psicologia Hospitalar é uma especialidade que se encontra inserida dentro da Psicologia da Saúde e se caracteriza como uma atuação do psicólogo centrada aos níveis secundários e terciários da atenção à saúde (Castro, & Bornholdt, 2004). Ao se falar em nível terciário no Sistema Único de Saúde (SUS) fala-se nas instituições hospitalares. Estas instituições se utilizam do termo hospitalar e se refere a um amplo espectro nos serviços prestados, ou seja, um conjunto heterogêneo do estabelecimento de saúde. Nesta gama existem hospitais gerais, hospitais especializados, hospitais de emergência, hospitais de ensino e outros. A característica que os une é a atuação dos serviços especializados prestados 24 horas por dia. Os hospitais gerais contam com diversos setores, como: enfermarias, ambulatórios, centros de tratamento intensivo, maternidade, dentre outros. (Neto, Barbosa, Santos, & Oliveira, 2014). De acordo com Nascimento e Henriques (2015, p. 121) no contexto hospitalar "verifica-se nas práticas em geral uma marcação do discurso médico e com isso a exclusão da subjetividade.", ou seja, o sujeito acaba perdendo sua identidade e torna-se apenas um corpo/objeto a ser tratado. O usuário que se encontra dentro de um hospital perde a sua subjetividade que muitas vezes é vista pela equipe médica como um empecilho para a evolução rápida do caso, seja pelas perguntas feitas pelo sujeito ou por sua relutância em realizar determinado procedimento (Nascimento & Henriques, 2015). É neste contexto que a Psicologia Hospitalar adentra, buscando dar voz a este usuário adoecido, entender o seu contexto e o significando que o mesmo dá a sua doença.

Dessa forma, a Psicologia contribui neste contexto através da uma escuta ativa (Botega, 2012), que visa proporcionar um ambiente acolhedor das frustrações e ameaças buscando entender, sem julgamento, o contexto em que aquele usuário que sofre está inserido e o significado daquele momento em sua vida. Além disso, segundo a Resolução 02/01 do Conselho Federal de Psicologia, o profissional psicólogo deve buscar produzir atividades que visem uma melhor qualidade de vida, buscando tratar e prevenir futuras doenças físicas ou mentais. Tal atuação pode ocorrer nos variados contextos do hospital geral, como a enfermaria psiquiátrica. A Enfermaria Psiquiátrica no Hospital Geral surgiu através da Lei 10.216/2001, que delega a responsabilidade do tratamento de usuários com sofrimento psíquico ao Estado, ocorrendo com a participação da sociedade e da família. É importante salientarmos que esta lei começou a tramitar no congresso em 1989, ou seja, este projeto demorou aproximadamente doze anos para ser concretizado. Além da aprovação da lei, são necessárias mudanças em portarias que efetivam as políticas públicas na área, com a participação da família e da sociedade. Ao se falar em saúde mental, temos dois modelos para cuidar do sofrimento psíquico, um modelo asilar e um modelo psicossocial. O primeiro modelo dividiria a clientela em loucos e sãos, aqueles que detém o saber técnico, se mostram acima daqueles que sofrem nesta perspectiva. Em linhas gerais o segundo modelo busca uma prática mais reflexiva e compromissada com o território de inserção do usuário, bem como um compromisso ético político, pautado em movimentos históricos (como o da desinstitucionalização que ocorreu na Itália) e movimentos teóricos (Costa-Rosa, 2000). Sobre o modelo psicossocial, a Lei 10.216/2001 trouxe muitas transformações no modelo de assistência à saúde mental e uma delas foi postular que as instituições de caráter asilar deveriam ser progressivamente fechadas. Dessa forma, iniciou-se uma Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) ligada a saúde pública que deveria atender a todos os usuários que sofressem de algum transtorno mental. Em 2011, a Portaria nº 3.088 cria o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) que passou a ser referência para o atendimento destas demandas em saúde mental. Esses centros têm como objetivo a ampliação do atendimento à saúde mental e a sua articulação com a rede pública de saúde respeitando os direitos humanos e promovendo ações que combatam o estigma e preconceitos vividos por esta população, bem como levar uma melhor qualidade de vida. Segundo o Artigo 4º da Lei 10.216A internação hospitalar só deverá ocorrer quando todos os recursos extra hospitalares se mostrarem insuficientes.

Nesse contexto da perspectiva psicossocial, o profissional na Enfermaria Psiquiátrica deverá levar seus conhecimentos e técnicas buscando contribuir para o tratamento digno de usuários com transtornos psíquicos, assim como preconiza as políticas vigentes. Os hospitais psiquiátricos, por muito tempo, foi a referência no atendimento e tratamento de usuários que sofriam com transtornos psíquicos. A Reforma Psiquiátrica buscou novas maneiras de lidar com a doença mental. Esse movimento foi consolidado com a Lei 10.216/2001 que resguardou os direitos da pessoa com sofrimento psíquico a tratamentos dignos e que sejam coniventes com os direitos humanos fundamentais a qualquer pessoa. Respaldado pelo modo de atenção psicossocial, o psicólogo visa auxiliar a equipe profissional e familiares através do acolhimento de necessidades e a escuta ativa baseados no contexto social e a subjetividade, buscando desta forma um tratamento integral, humano e digno. A construção desse saber e dessa atuação se mostra emergente, pois há escassez da literatura acerca da enfermaria psiquiátrica em hospital geral. Diante desse cenário relativamente recente do serviço, este relato tem o propósito de descrever a experiência do estágio em Psicologia da Saúde em um hospital em Sorocaba, interior de São Paulo.

 

Método

Contexto do estágio

O estágio em Psicologia da Saúde objetiva supervisionar as ações integrativas no contexto da saúde nos mais diferentes sistemas e orientar suas práticas e elaboração dos relatórios. Com esse intuito, a prática ocorreu em um hospital geral referência da região. Após realização de um psicodiagnóstico institucional, alguns setores foram escolhidos para a elaboração e execução de um projeto de intervenção. O setor elegido foi a enfermaria psiquiátrica. A atividade proposta foi pintura livre com guache. O objetivo do projeto de intervenção foi oferecer um espaço de expressão das subjetividades e possíveis ressignificações dos pacientes internados na enfermaria psiquiátrica e seus familiares. Os objetivos específicos foram: permitir que os pacientes expressem seus sentimentos e encontrem uma via de elaborar seu sofrimento psíquico por meio da pintura. E possibilitar a promoção de saúde e bem-estar dos pacientes.

Local

O Hospital está localizado perto do centro da cidade. De acordo com informações retiradas do site da instituição, atualmente o hospital é de característica portas fechadas e atende através de encaminhamento da população usuária do serviço público, seja pelas Unidades Básicas de Saúde (UBS), Centros de Atendimento Psicossocial (CAPS) ou das Unidades de Pronto Atendimento (UPA). Seu financiamento é prioritariamente privado. Dentro desse hospital a enfermaria psiquiátrica fica no segundo andar, conta com dez leitos e com uma equipe multiprofissional, contendo: equipe psiquiátrica, psicóloga, terapeuta ocupacional, enfermeiros e técnicos de enfermagem. Caso os pacientes dessa enfermaria necessitem de atendimento especializado, interconsultas são solicitadas para profissionais específicos do hospital geral. Os participantes das oficinas foram os pacientes internados nesse setor.

Procedimentos e Instrumentos

As atividades do estágio se iniciaram em fevereiro de 2018, a atuação no hospital foi de março a novembro de 2018. A oficina de arteterapia – que começou em abril – foi de caráter aberto, porém houve um foco maior nos pacientes que não estavam recebendo visitas. Essa escolha se baseou na observação realizada na enfermaria. Os pacientes que não recebiam visitas, em geral, aparentavam estar mais isolados e apáticos, enquanto os pacientes que receberam visitas demonstraram uma mudança de humor, aparentando estarem mais alegres e disponíveis para se expressar. A oficina foi de tema livre e para sua aplicação foram necessários os seguintes materiais: tintas de diferentes cores, folhas em branco, pincéis e materiais para limpeza (potes com água e panos). A atividade ocorria semanalmente com duração de uma hora. Havia uma alta rotatividade de pacientes na Enfermaria Psiquiátrica, por este motivo as demandas mudaram conforme o dia. Para suprir essas demandas as estagiárias ficaram disponíveis das 11h às 12h da manhã para atender as necessidades emergentes, sendo elas: atendimento individual, atendimento à família, interconsultas e discussões de casos com a equipe profissional da enfermaria. Após este período as estagiárias se dirigiam à sala de supervisão para relatarem as atividades, suas percepções e sentimentos da atuação.

 

Resultados e discussão

A enfermaria psiquiátrica em questão conta com 10 leitos, para atuação da equipe multiprofissional, a portaria nº 148/2012 dispõe que é obrigatório de cinco a dez leitos se ter na equipe mínima dois técnicos auxiliares de enfermagem por turno, dois profissionais de saúde mental de nível superior e um médico clínico responsável pelos leitos. A presença dos profissionais de variadas áreas cumpre com o contexto da reforma psiquiátrica:

A interdisciplinaridade emerge como uma necessidade concreta para a efetivação e resolutividade dos serviços de reabilitação psicossocial, ajudando os profissionais a não perderem a noção de conjunto, fundamental para a construção de pontes que possibilitem saltos qualitativos no cuidado prestado. (Schneider, Souza, Nasi, Camatta, & Machineski, 2009, p. 389)

A atuação interdisciplinar, portanto, beneficia os usuários e a equipe como um todo. Através da experiência de estágio em saúde mental, com a realização da Oficina de Arteterapia as estagiárias perceberam a importância de trocar informações e resultados com a equipe da enfermaria psiquiátrica, isto tornou o trabalho mais dinâmico e significativo. Assim, a forma como a equipe vê o sofrimento psíquico afeta a forma com que ela desenvolve seu trabalho. A médica plantonista que esteve presente em diversos sábados pedia para ver as pinturas e falava clinicamente sobre o caso com as estagiárias, o que ampliou a visão das estagiárias sobre o usuário em sofrimento psíquico. Sobre o sofrimento psicológico dos usuários, foi observado o quanto é importante ver o usuário além dos sintomas que ele apresenta, vendo sua história de vida, a relação com a família, possíveis acontecimentos da infância, dentre outros. Em diversos casos observou-se a mãe com sintomas psiquiátricos parecidos aos dos filhos internados, além disso viu-se a importância de romper com um discurso comum na sociedade que infantiliza e descredita esses usuários. Com isto, coloca-se a doença entre parênteses para se ter contato com o usuário (Amarante, 1994). Diante dessa perspectiva psicossocial, juntamente com a observação do local de estágio, foi levantada uma demanda em relação aos pacientes que não recebiam visitas, desta forma foi proposta uma Oficina de Arteterapia durante os horários de visitas. Em 1946 a psiquiatra Nise da Silveira, após entrar em contato com o trabalho desenvolvido por Osório Cesar no Hospital Juquery, passou a utilizar da arte como forma de ferramenta terapêutica nos pacientes internos no Hospital de Engenho de Dentro (Oliveira, Melo, & Vieira-Silva, 2017). A intenção de Nise da Silveira, segundo os mesmos autores, era que estas atividades criassem um ambiente que permitisse a expressão de pensamentos e emoções, ou seja, da subjetividade dos pacientes. A psiquiatra (Reis, 2014, p. 146) afirmava que esta ferramenta além de permitir o acesso do profissional ao inconsciente e aos sentimentos tumultuados dos mesmos, também permitia a possibilidade de transformação e cura. Além disso, a arteterapia em sua aplicação voltada para a terapêutica vai além da produção da arte, pois é por meio da pintura que há a possibilidade de o usuário ser criativo e, consequentemente, possa criar novos caminhos de existência e significados (Coqueiro, Vieira, & Freitas, 2010; Reis, 2014). A Oficina de Arteterapia possibilitou notar os avanços do tratamento por meio das pinturas dos pacientes, como por exemplo um usuário em que na primeira vez que participou da oficina seu desenho se apresentava sem forma e desorganizado, porém na semana seguinte o paciente produziu uma pintura organizada com formas reconhecidas como uma casa e árvore. Tal evolução no percurso das oficinas, por meio das vivências permitidas pela oficina as estagiárias puderam observar a potencialidade da arte como uma ferramenta de tratamento e de comunicação entre o profissional e paciente. Desse modo, a postura do paciente e a expressão da sua pintura produzida cria-se uma possibilidade de entrar em contato com a história daquele sujeito bem como seus sentimentos em relação a sua família, a sua doença e a seus sentimentos frente à internação. Durante as oficinas as estagiárias entraram em contato com vários pacientes que se mostravam inquietos transitando pelos ambientes da enfermaria, por meio da pintura eles puderam expressar os seus sentimentos de angústia frente a sua internação. A arte também permite a possibilidade de alterações no campo afetivo, "melhorando o equilíbrio emocional ao término de cada sessão." (Coqueiro et al. 2010, p. 862). Notou-se tal contribuição na postura dos pacientes que, em geral, demonstravam estarem mais calmos ao final de cada oficina. Outra contribuição da arteterapia que pode ser observado durante a aplicação do projeto foi possibilidade da criação de um ambiente criativo e fértil, que permite um momento organizador para aquele que a experiência. Nesses momentos com os pacientes a atuação das estagiárias pautar-se em ir ao encontro do real, deixando de lado as expectativas, para que se possa enxergar um sujeito único em seu sofrimento e suas potencialidades. A arte também possibilita que o transtorno fique entre parênteses, assim como preconiza o entendimento da Atenção Psicossocial, ou seja, para que o sujeito emerja, a centralidade do cuidado não deve reduzi-lo ao fenômeno da loucura e seu diagnóstico (Amarante, 1994). Um caso que ilustra a possibilidade das estagiárias de ir ao encontro do sujeito real foi o caso de uma usuária que através da pintura ela pode falar sobre a perda de seu filho e de seu sofrimento e as estagiárias puderam entrar em contato com sua história de vida e acolhê-la nesse enquadre mediado pela arte.

Nesse sentido, para ampliar o olhar ao sujeito em sofrimento psíquico, deve-se considerar os grupos sociais e as relações estabelecidas, como os familiares. Pensando no papel da família no tratamento do usuário, a partir da Reforma Psiquiátrica e o processo de fechamento dos Hospitais Psiquiátricos a família, que anteriormente era excluída de qualquer relação com a internação, passou a se tornar parceira no tratamento do usuário que sofre com transtornos psíquicos. Porém, a família pode se caracterizar como um agente protetor ou como um agente promotor de vulnerabilidade (Martins, & Guanaes-Lorezi, 2016; Coelho, Velôso, & Barros, 2017). Martins e Guanaes-Lorenzi (2016) destacam que a equipe multiprofissional deve ser crítica e saber quando aproximar e quando afastar este familiar. Uma das contribuições da família é a possibilidade de a equipe profissional entrar em contato com informações importantes para o tratamento integral daquele usuário, como por exemplo o histórico de vida do sujeito. Segundo Coelho et al. (2017), através da avaliação da dinâmica familiar, o profissional pode compreender os contextos no qual o paciente convive, por esse motivo a entrevista familiar é de suma importância para se avaliar as raízes do sofrimento psíquico. Martins e Guanaes-Lorenzi (2016), apontam que a família, além de cooperar com a equipe profissional, possui um papel central de criar uma rede social que é fundamental com a procura e o acesso a saúde e provém apoio emocional. Durante as discussões de casos com a equipe médica pode-se observar a importância da família na possibilidade de uma visão mais integral daquele usuário, contribuindo com informações contextuais e históricas. Porém, durante a oficina pode-se perceber que alguns momentos os familiares pareciam desestabilizar o usuário, seja através de uma infantilização ou se mostrando muito invasivo com perguntas e orientações, como no caso da paciente A. C. que possuía 50 anos porém sua mãe ainda dava comandos ou orientações diretas, como por exemplo a cor de tinta que deveria ser escolhida. Esses movimentos invasivos por parte da mãe pareciam causar irritação em A. C. que recusava participar da oficina. No dia em que não recebeu visita da mãe a paciente A. C. se demonstrou mais aberta para o diálogo e participou da pintura se concentrando em sua atividade. Nestes casos, segundo Martins e Guanaes-Lorenzi (2016), é importante estar atento e ser crítico a estas relações estabelecidas e olhar para aquele familiar como um ser contextual e que também necessita de cuidado e evitando a culpabilização da família que pode justificar a internação asilar e afastar, novamente, a família desse paciente.

Através das vivências das estagiárias dentro da enfermaria psiquiátrica, percebeu-se a importância do cuidado diferenciado aos pacientes, com a atuação interdisciplinar, discussão de casos e estabelecimento de um olhar a história, relações e vivências do sujeito. A Reforma Psiquiátrica e os serviços que decorreram dela ainda são muito recentes, porém percebe-se o esforço da equipe multidisciplinar em oferecer o atendimento integral por meio de uma postura ética e crítica respeitando os direitos do usuário que sofre com transtornos psíquicos.

 

Considerações finais

A prática na Enfermaria Psiquiátrica possibilitou que as estagiárias entrassem em contato com muitos aspectos profissionais, pessoais e sociais. Para além da disciplina, essa experiência pode ser compartilhada e potencializada em eventos científicos dentro e fora da universidade. As trocas também no local de estágio foram extremamente importantes, seja com a equipe de estagiárias da universidade e supervisora ou com as equipes de enfermagem e médica da própria enfermaria. No primeiro semestre de atuação as estagiárias acompanharam a reunião de equipe da psiquiatria na construção do Projeto Terapêutico Singular. Nesta reunião foi possível verificar a integralidade que se deve ter no cuidado, não se limitando ao momento da crise e sim ampliando o cuidado para o território do usuário e aos cuidados que a família deve oferecer.

Ainda se está enraizado no pensamento coletivo que os pacientes psiquiátricos são regredidos e agressivos e devem se manter afastados da sociedade. Por mais que durante a formação em Psicologia as estagiárias tivessem estudado e criado uma visão crítica sobre o assunto ainda havia resquícios de estigmas relacionados a pessoa que sofre com transtornos mentais. Porém a partir da prática na Enfermaria Psiquiátrica as estagiárias puderam entrar em contato com a realidade em relação aos transtornos psicopatológicos e a crise em si, contribuindo para o desenvolvimento profissional de ambas. A Arteterapia mostrou resultados impactantes, pela potencialização de expressão do usuário que oferece. Os detalhes, desenhos, ritmos de confecção comunicavam muitas coisas e por vezes denunciavam aspectos da internação na Enfermaria, que apesar da presença do modelo psicossocial, ainda se apresenta como um incômodo para muitos usuários. Neste momento de crise da internação a folha em branco pôde um espaço para projeção de angústias, sentimentos, pensamentos ou até mesmo de vazios.

A oportunidade de compartilhar dos conhecimentos com a equipe profissional foi muito enriquecedor pois possibilitou ser observado na prática a atuação e a luta dos profissionais de Saúde Mental em atender a esta população de forma ética, integral e acolhedora. A visão estigmatizada e preconceituosa contra a pessoa com sofrimento psíquico ainda persiste dentro da Saúde Mental, isso nos faz refletir como as mudanças devem ir além das legislações e estar presente, também, no território e nos modelos de humanização do cuidado. Ainda sobre a legislação, percebemos que as transformações caminham a passos lentos, pois a Lei 10.216/2001 demorou aproximadamente 12 anos para ser aprovada, e ainda hoje, observamos a presença de um discurso asilar como melhor alternativa. Por fim, é necessário refletir sobre o cuidado e crítica constante a estas conquistas sociais no Brasil, pensando em aprimorá-las e não deixar que haja retrocessos, e isto percebemos que não vem apenas da lei, mas também na família, nos usuários, nas equipes.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Gabriela Eustáquio Oliveira
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Tatiane Guimarães Pereira
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Recebido: 26.06.20
Corrigido: 15.02.21
Aprovado: 29.03.21

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