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Boletim - Academia Paulista de Psicologia

versão impressa ISSN 1415-711X

Bol. - Acad. Paul. Psicol. vol.42 no.102 São Paulo jan./jun. 2022

 

I. TEORIAS, PESQUISAS E ESTUDOS DE CASO

 

Teorias, pesquisas e estudos de caso abuso sexual e trauma: um estudo de caso à luz da psicanálise

 

Sexual abuse and trauma: a case study in the view of psychoanalysis

 

Abuso sexual y trauma: un estúdio de caso a la luz del psicoanálisis

 

 

Alice Gimenes AlvesI; Antonio Augusto Pinto JuniorII; Teresa Cristina Rangel Credidio ZampieriIII; Leila Salomão de La Plata Cury TardivoIV

IPsicóloga, Psicoterapeuta e Pesquisadora colaboradora do Projeto Apoiar on-line. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3798-3819
IIPsicólogo, Professor Associado III do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense – Campus de Volta Redonda. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0068-4177
IIIPsicóloga, Psicoterapeuta e Pesquisadora colaboradora do Projeto Apoiar on-line. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4390-2202
IVPsicóloga, Professora Associada III do departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8391-0610

 

 


RESUMO

O abuso sexual infantil é considerado um dos graves problemas de saúde na atualidade, e numa leitura psicanalítica é entendido como um evento traumático que envolve mecanismos que potencializam o sofrimento mental. Esse fato demanda um trabalho clínico que sustente as angústias do paciente e que favoreça a ressignificação dessa experiência. Assim, o presente artigo discute, a partir da interlocução entre Freud, Ferenczi e Winnicott, os aportes teóricos que facilitam a compreensão do impacto da violência sexual na subjetividade das vítimas e o manejo no setting terapêutico. É utilizado um estudo de caso de uma jovem de 20 anos, que na infância foi abusada pelo avô e tio maternos. A análise do material clínico identificou o lugar do traumatismo psíquico como elemento etiológico de um transtorno de ansiedade e os mecanismos de defesa utilizados. Conclui-se que, a partir do oferecimento de um ambiente confiável e de sustentação, o paciente vítima de abuso sexual pode alcançar a integração do eu, mas destaca-se que a intervenção clínica deve ser articulada com ações multidisciplinares, em função das várias nuances desse fenômeno.

Palavras-chave: abuso sexual; trauma psicológico; Psicanálise.


ABSTRACT

Sexual child abuse is considered one of the serious health problems nowadays, and in a psychoanalytical reading it is understood as a traumatic event that involves mechanisms that increase mental suffering. This fact demands clinical work that supports the patient's anxieties and favors the resignification of that experience. Thus, this article discusses, based on the dialogue between Freud, Ferenczi and Winnicott, the theoretical contributions that facilitate the understanding of the impact of sexual violence on the victims' subjectivity and its handling in the therapeutic setting. A case study of a 20-year-old young woman who was abused by her maternal grandfather and uncle in her childhood is used. The analysis of the clinical material identified the place of psychic trauma as an etiological element of an anxiety disorder and the defense mechanisms used. It is concluded that, by offering a reliable and supportive environment, the patient victim of sexual abuse can achieve the integration of the self, but it is emphasized that the clinical intervention must be articulated with multidisciplinary actions, due to the various nuances of this phenomenon.

Keywords: sexual child abuse; psychological trauma; psychoanalysis.


RESUMEN

El abuso sexual infantil es considerado uno de los problemas más graves de salud en la actualidad, y desde una lectura psicoanalítica se entiende como un evento traumático que involucra mecanismos que potencializan el sufrimiento mental. Este hecho demanda un trabajo clínico que sostenga las angustias del paciente y favorezca la resignificación de esta experiencia. Siendo así, este artículo discute, a partir del diálogo entre Freud, Ferenczi y Winnicott, los aportes teóricos que facilitan la comprensión del impacto de la violencia sexual en la subjetividad de las víctimas y su manejo en el espacio terapéutico. Se utiliza un estudio de caso de una joven de 20 años que fue abusada por su abuelo y tío maternos en su niñez. El análisis del material clínico identificó el lugar del trauma psíquico como elemento etiológico de un trastorno de ansiedad y los mecanismos de defensa utilizados por la joven. Se concluye que al ofrecer un ambiente confiable y de sostén, la paciente víctima de abuso sexual puede lograr la integración del yo. Sin embargo, se resalta que la intervención clínica debe articularse con acciones multidisciplinarias, debido a los diversos matices de este fenómeno.

Palabras clave: abuso sexual infantil; trauma psicológico; psicoanálisis.


 

 

Introdução

Atualmente, a violência intrafamiliar e mais especificamente o abuso sexual infantil vem sendo reconhecido tanto como um importante problema social quanto de saúde pública, revelando-se como uma das principais causas de morbidades em crianças e adolescentes (Pinto Junior, Cassepp-Borges, & Santos, 2015). De acordo com a Organização Mundial de Saúde (WHO, 1999), a violência sexual é definida como qualquer ação com a intenção de estimular sexualmente a criança ou adolescente e de utilizá-los para obter prazer sexual de um ou mais adultos. Esse tipo de vitimização afeta meninas e meninos, e implica sempre uma experiência que compromete o desenvolvimento socioemocional das vítimas e acarreta danos que podem perdurar por toda a vida (Pinto Junior, 2005). Por ocorrer na esfera privada do ambiente familiar, encontra-se dificuldade de identificação e de notificação dos casos de abuso sexual infantil, o que impede a visibilidade na esfera pública e o acesso aos serviços de saúde. Segundo Pinto Junior, Cassepp-Borges e Santos (2015), os casos notificados aos órgãos de proteção à infância representam apenas a "ponta de um iceberg", cuja real dimensão é desconhecida em função dos vários mecanismos de velamento. Considerando que esse fenômeno é, principalmente, cometido pelas figuras parentais, o abuso sexual assume um caráter incestuoso (Pinto Junior, 2005), e para Cohen (1993) é sempre um ato intimamente associado ao proibido, incluindo a interdição de se falar no assunto, tornando-se efetivamente um tema tabu. Esse fato explica, portanto, parte dos obstáculos para se identificar e notificar os casos de abuso sexual infantil, deixando as vítimas presas em tipo de relação perversa e destrutiva, sem, muitas vezes, encontrar apoio para romper o ciclo de opressão.

Mas, essa dificuldade se agrava por um componente transgeracional que aponta para relações atravessadas pela experiência de violência também nas famílias de origem dos genitores, especialmente da figura materna, que impossibilita o exercício adequado da sua função protetiva. A vivência abusiva de caráter sexual na infância das figuras parentais, e particularmente nas mães, pode representar um fator de risco para os filhos, principalmente se, em sua infância, não receberam apoio, suporte ou validação de suas próprias revelações, o que aumenta a possibilidade de se repetir o ciclo de vitimização nas próximas gerações (Sufredini, Moré, & Krenkel, 2016). Essa característica evidencia que o abuso sexual intrafamiliar é, realmente, um fenômeno de amplo alcance podendo envolver de forma cíclica várias gerações em sua (re)produção (Pinto Junior, 2005). A partir do exposto, pode-se afirmar que há uma confluência de fatores que estão vinculados ao abuso sexual infantil e seus efeitos, e qualquer estudo nesse campo de investigação demanda a interlocução entre várias áreas do conhecimento para evitar uma leitura simplista e/ou unilateral do problema. Dentre os saberes que podem e devem lançar luz ao fenômeno da vitimização sexual destaca-se a Psicanálise com o estudo dos motivos emocionais e inconscientes. O abuso sexual incestuoso há muito é objeto de discussão e explanação teórica da Psicanálise, pois essa experiência remete a vítima a um sofrimento psíquico importante com graves consequências ao processo de constituição do eu. Cabe destacar que, segundo Pinto Junior et al (2008), a vitimização instaura um desequilíbrio psíquico e um excesso emocional que acompanha a interrupção de sentido ou de representação, deflagrando uma sensação de grave sofrimento mental. Esse impacto na subjetividade de uma pessoa sexualmente abusada conduz à ideia de trauma, um conceito importante no campo psicanalítico.

 

O Trauma e a Teoria da Sedução de Freud

Para o pai da Psicanálise, Sigmund Freud (1856-1939), o trauma se caracteriza por um afluxo excessivo de excitações, ou de acúmulo de excitações, que ultrapassa a capacidade de tolerância do aparelho psíquico, o qual se torna incapaz de elaborar ou descarregar tal afluxo, acarretando, assim, perturbações no funcionamento mental do sujeito (Freud, 1916-17/1996). Tomando a perspectiva inicial dos trabalhos de Freud, o trauma é fundamentalmente de ordem sexual, e o traumatismo se instaura a partir da lembrança de uma cena incestuosa. Assim, para a Psicanálise, o abuso sexual deve ser considerado uma temática que se confunde com o próprio surgimento dessa disciplina pois nasce, desde as primeiras formulações teóricas de Freud, da discussão sobre o incesto e seus efeitos traumáticos na sintomatologia histérica, levantando a hipótese da sedução paterna como etiologia do trauma (Silva, 2015). De fato, no início de seus trabalhos com os pacientes neuróticos, e principalmente com os casos de histeria, a partir dos escritos concebidos como a teoria da sedução, ou neurótica, Freud já observava que tais pessoas sofriam em função de acontecimentos traumáticos ocorridos em sua história pregressa, especialmente aqueles de ordem sexual (Freud, 1896/1996a, 1896/1996b, 1896/1996c). Contudo, não são as experiências abusivas em si que instauram o trauma. Segundo o pai da Psicanálise, nesse momento de sua teoria, são as suas lembranças quando o individuo ingressa na puberdade que disparam o traumatismo, pois nesse período do desenvolvimento a capacidade de reação do aparelho psíquico frente à lembrança do passado tem um efeito muito mais intenso do que na infância (Freud, 1896/1996c). Assim, de acordo com Azevedo e Amaral (2021), na perspectiva de Freud, o trauma se instala em dois tempos. Num primeiro momento, verifica-se uma experiência de caráter abusivo (mas sem um significado sexual devido à imaturidade da criança), que é vivida como uma excitação que não encontra vias de descarga. Já num momento posterior, com a maturação da puberdade e com a devida aquisição de sentido sexual das excitações corporais, evidencia-se uma segunda vivência que, a partir de uma analogia com a primeira cena, é experienciada como uma situação carregada de emoção de natureza sexual. Esse segundo momento é, então, associado ao primeiro, resignificando a cena infantil, agora, de natureza sexual. Dessa forma, a primeira experiência alcança o status de traumático (Azevedo, & Amaral, 2021; Fulgêncio, 2004).

Mas, posteriormente, essa leitura é abandonada e numa correspondência a Fliess em 1897, a famosa Carta 69, Freud (1892-1899/1996) expressa que já não mais acredita em sua teoria da sedução, mostrando o seu descrédito na realidade material das cenas de abuso infantil na produção da neurose. Essa mudança de perspectiva o leva a defender a ideia de que a origem da neurose está ligada à realidade psíquica e às fantasias que ela produz, e não mais necessariamente à realidade material da experiência sexual precoce. Com essa nova leitura, o autor desenvolve os grandes constructos da teoria psicanalítica, tais como o Complexo de Édipo, a sexualidade infantil e sua relação entre as pulsões e as defesas do eu, a fantasia inconsciente, dando ênfase à sua metapsicologia acerca da organização e do funcionamento do psiquismo.

 

O trauma e a Confusão de Línguas no Abuso Sexual para Ferenczi

Com Sandor Ferenczi (1873-1933), um psicanalista húngaro, contemporâneo de Freud, encontram-se contribuições importantes na compreensão do trauma. Principalmente a partir de 1920, esse psicanalista produziu vários textos sobre a questão do traumático, saindo em defesa dos principais pressupostos da neurótica (teoria da sedução) abandonada por Freud (Del Bianco, & Tosta, 2021; Favero, 2009; Oliveira, Câmara, & Canavêz, 2021).

Ferenczi, a partir da observação clínica de seus pacientes, afirma que o trauma envolve uma falha na relação entre o sujeito e o outro, ou seja, a experiência traumática resulta de uma ação concreta de uma pessoa sobre outra, e essa experiência perturba o aparelho psíquico do individuo traumatizado, desorganizando-o (Favero, 2009). Dessa forma, Ferenczi entra em desacordo com Freud ao considerar que ao invés dos fatores endógenos (intrapsíquicos) é, principalmente, o meio ambiente que perturba a constituição do eu e o seu equilíbrio psíquico. Embora num primeiro momento de sua teoria Ferenczi acreditava que os traumas são estruturantes, necessários, inevitáveis ou filogenéticos, tais como a castração e o treino das normas de higiene pela criança (Ferenczi, 1913/1992), posteriormente esse autor passa a considerar também que as experiências traumáticas podem colocar em risco todo o processo de subjetivação do individuo, visto que essas não são metabolizadas ou integradas no psiquismo (Ferenczi, 1933/1992).

Em relação ao abuso sexual, foi em seu último ensaio, Confusão de línguas entre o adulto e a criança (Ferenczi, 1933/1992), que ele retoma definitivamente a ideia do traumatismo freudiano que se origina da vida concreta e real e na sedução infantil por parte de um adulto. A questão central nesse ensaio já consta no seu próprio título, pois para Ferenczi o abuso sexual da criança envolve uma dissimetria entre os discursos do adulto e do infante. Ou seja, o trauma do abuso decorre da desproporção entre a linguagem e a sexualidade da criança e aquelas do adulto, geralmente uma pessoa de confiança ou da própria família. Em termos da linguagem, a confusão se dá, pois na criança essa se caracteriza pela ternura, que envolve a ingenuidade e a inocência, e no adulto abusador é pautada pela paixão. Já em termos da sexualidade, enquanto na criança essa é pré-genital, no adulto se configura como madura e genitalizada. Nas palavras de Ferenczi (1933/1992), os adultos "confundem as brincadeiras das crianças com os desejos de uma pessoa que já atingiu a maturidade sexual, e se levam a atos sexuais sem pensar nas consequências" (p. 351). Deve-se pontuar que na visão ferencziana o trauma na experiência de abuso sexual opera em dois tempos, tal como assinalava Freud em sua teoria da sedução. Para o autor, a sedução ou a violência sexual propriamente dita constitui o primeiro tempo do trauma. O segundo tempo, que confere à experiência abusiva a insígnia de traumática, desestruturante e patológica, é chamado por Ferenczi de o desmentido. Refere-se ao momento em que a criança abusada busca ajuda, apoio e sentido para essa experiência em outro adulto de confiança, mas essa pessoa não reconhece ou não valida o ocorrido (Ferenczi, 1933/1992).

A descrença, a negação ou desautorização da experiência abusiva por outro adulto significativo, ou seja, o desmentido, passa a conferir a essa experiência sofrida um caráter altamente desestruturante e patológico, pois provoca na vítima a perda de sua capacidade de confiar em suas próprias percepções e no outro. Segundo Fuchs e Peixoto Júnior (2014), a perda de confiança no outro significativo provoca uma interrupção no movimento de metabolização do psiquismo, que é invadido por uma angústia indizível, causada pelo abandono e pelo desamparo, a qual a criança é submetida em total solidão. Diante dessa vulnerabilidade, o que resta à vítima é a clivagem, ou a fragmentação do eu em duas partes: uma que funciona como se nada tivesse acontecido e mantendo o sentimento de ternura para com o abusador, e a outra que opera por dentro (internamente), por meio da identificação com o agressor (Mello, Féres-Carneiro, & Magalhães, 2019).

Assim, na leitura ferencziana, mesmo que no início a criança vítima de abuso sexual possa tentar recusar ou resistir ao ato, em função de um medo intenso, pois o abusador se apresenta como uma pessoa forte e investida de autoridade, e pelo desmentido do outro significativo, acaba se submetendo à vontade do agressor e se identificando com ele, por meio da introjeção. Dessa forma, "por identificação, digamos por introjeção do agressor, ele desaparece enquanto realidade exterior, e torna-se intrapsíquico" (Ferenczi, 1933/1992, p. 352). Mas, Ferenczi (1939/1992) avança na compreensão do traumatismo psíquico da criança sexualmente abusada. A partir da identificação com agressor, a vítima passa a se sentir também culpada pelo ocorrido, e a raiva que inicialmente sentia por essa situação retorna para si mesma, desencadeando uma submissão masoquista ao vitimizador. Nas palavras do autor:

a mudança significativa, provocada no espírito da criança pela identificação ansiosa com o parceiro adulto, é a introjeção do sentimento de culpa do adulto: a brincadeira até então anódina, aparece agora como como um ato que merece punição (Ferenczi, 1939/1992, p. 352).

Assim, na concepção de Ferenczi sobre o trauma do abuso sexual infantil a dimensão relacional (ou ambiental) funciona como elemento etiológico de um excesso não representável ou não metabolizável sempre imposto pelos adultos significativos para a criança. E, diante desses casos considerados graves na situação analítica, de acordo com Fuchs e Peixoto Júnior (2014), na perspectiva ferencziana, é fundamental manter-se em sintonia com o estado emocional do paciente, visando criar meios terapêuticos que favoreçam o acesso ao que não pôde ser representado. Em outras palavras, na clínica com crianças sexualmente vitimizadas deve-se desenvolver uma prática que não funcione como uma repetição do trauma, mas que ofereça um espaço para a regressão terapêutica, para a elaboração do trauma e para a integração das partes dissociadas do eu.

 

O Ambiente e o Trauma para Winnicott

Na perspectiva do psicanalista Donald Woods Winnicott (1896-1971) o trauma está relacionado diretamente às falhas ou intrusões do ambiente no qual o indivíduo está inserido, mas que são difíceis ou impossíveis de serem significados ou integrados no eu. Deve-se considerar que o ambiente, inicialmente representado pelas figurais parentais, e especialmente a mãe, deve funcionar como fonte de proteção e sustentação ao sujeito em processo de constituição e de desenvolvimento. Segundo Winnicott (1960/1983) este tem como sua principal função proporcionar à pessoa a experiência de amadurecimento de forma contínua, sem interrupções. Deste modo, o ambiente facilitador precisa oferecer proteção o suficiente, caracterizando-se como um lugar sustentador (ou de holding) e propiciar o manejo (handling) adequado, a fim de que o bebê ou a criança não precise reagir aos fatores externos antes do tempo adequado, interrompendo, desta maneira, seu desenvolvimento. Assim, "o ambiente tem por isso como principal função a redução ao mínimo de irritações a que o lactente deva reagir com o consequente aniquilamento do ser pessoal" (Winnicott, 1960/1983, p.47). Portanto, o fator traumático para Winnicott se caracteriza por tudo aquilo que é externo ao indivíduo e não lhe foi adequadamente apresentado, considerando sua imaturidade, de um modo que pudesse fazer parte do controle de sua onipotência e integrado em seu self. Para Winnicott (1969/1994, p.113) há um aspecto normal do trauma, afirmando que "a mãe está sempre "traumatizando, dentro de um arcabouço de adaptação", que é considerado uma etapa de desilusão essencial para o desenvolvimento do sujeito. Mas, cabe destacar que nesse processo de amadurecimento o individuo parte de uma dependência absoluta, ou seja, totalmente dependente dos cuidados físicos e de uma provisão ambiental adaptada às suas necessidades, para uma dependência relativa, estado em que a pessoa passa a ter conhecimento de sua condição e o ambiente pode promover, então, uma desadaptação gradativa (Winnicott, 1969/1983). Este processo exige um cuidado do ambiente para que o mundo possa ser apresentado "em pequenas doses", de um modo que a pessoa possa absorver a experiência como não intrusiva, integrá-la em seu eu e, assim, se sentir real. Portanto, quando o indivíduo é acometido por uma experiência traumática, obrigando-o a reagir e a se defender em um momento em que ainda não tem condições para integrá-la no self, os aspectos comuns ao desenvolvimento de sua capacidade de integração do eu e a relação com o mundo compartilhado podem sofrer danos (Winnicott, 1969/1994). Nessa perspectiva, as implicações do trauma na subjetividade estão diretamente relacionadas à possibilidade do desencadeamento de possíveis psicopatologias e de sofrimentos psíquicos, pois como assinala o autor:

Um trauma é aquilo contra o qual um indivíduo não possui defesa organizada, de maneira que um estado de confusão sobrevém, seguido talvez por uma reorganização de defesas, defesas de um tipo mais primitivo do que as que eram suficientemente boas antes da ocorrência do trauma (Winnicott, 1969/1994, p.201)

O indivíduo, então, passa a lançar mão de defesas contra essa experiência que não pôde ser integrada ao eu, eclodindo, assim, a interrupção da continuidade do self, podendo culminar na constituição de um falso eu a título de proteção do self verdadeiro que se sente ameaçado. Segundo o psicanalista:

em outras palavras, experienciaram o trauma, e suas personalidades têm de ser construídas em torno da reorganização de defesas que seguem os traumas, defesas que devem precisar reter os aspectos primitivos, tais como cisão da personalidade (Winnicott, 1969/1994, p. 201).

A necessidade de utilizar esse tipo de cisão como defesa leva o indivíduo a se submeter à realidade, enquanto os aspectos criativos, como a espontaneidade, o viver criativo, que remetem ao verdadeiro self e à sensação de uma vida significativa ficam aprisionados. Em seus ensaios sobre a criatividade, Winnicott (1971/1975) aponta:

É através da apercepção criativa, mais do que qualquer outra coisa, que o indivíduo sente que a vida é digna de ser vivida. Em contraste, existe um relacionamento de submissão com a realidade externa, onde o mundo em todos os pormenores é reconhecido apenas como algo a que ajustar-se ou a exigir adaptação (p.95).

A adaptação adesiva ao ambiente, de forma não criativa, é, então, um efeito da experiência traumática, dado que para Winnicott (1969/1994, p. 114) "ao fim das contas, o trauma é a destruição da pureza da experiência individual por uma demasiada intrusão súbita ou impredizível de fatos reais". Deste modo, o indivíduo passa a viver uma vida na qual tem a sensação de não pertencer a ele mesmo, aguardando o momento em que lhe será oferecido um espaço que possa sentir-se seguro o suficiente para experienciar a si mesmo por inteiro. É nesse sentido que se considera, em termos terapêuticos e interventivos, que o sujeito precisará reviver a experiência traumática que não pôde ser integrada em seu eu a partir do oferecimento de um ambiente de confiança e de sustentação que, mediante a transferência, seja possível "em pequenas doses" tornar aquela experiência pessoal. Dessa forma, nas palavras de Winnicott, (1969/1994):

o paciente gradualmente reúne o fracasso original do meio ambiente facilitador (...) dentro de sua própria e atual experiência temporal e do controle de onipotência agora presumindo a função de apoio de ego auxiliar da mãe ou analista (p.73).

Portanto, entende-se que é indispensável para o tratamento de pessoas acometidas por eventos traumáticos de diversas naturezas, em especial aqueles de ordem sexual, que o psicoterapeuta proporcione um ambiente confiável, adaptável às necessidades apresentadas pelo indivíduo a fim de que os aspectos até então fragmentados e dissociados do eu possam ser integrados. Nesse ponto de vista, a função do analista na clínica winnicottiana não é somente realizar interpretações de conflitos ou fantasias inconscientes, mas prioritariamente oferecer um setting que facilite as expressões de destrutividade e de agressividade do paciente, o surgimento de seu verdadeiro self, o abandono de organizações defensivas e, consequentemente, a retomada do seu processo de amadurecimento (Tardivo, Pinto Junior, & Tafner, 2019).

 

Apresentação do Caso

A partir das considerações apresentadas, o presente trabalho objetiva investigar o funcionamento psicodinâmico de uma jovem vítima de abuso sexual intrafamiliar. Trata-se de um estudo de caso atendido no serviço Apoiar On-line, abrigado no Laboratório de Saúde Mental e Psicologia Clínica Social, do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. O serviço foi criado em abril de 2020 com o objetivo de atender de forma remota pessoas que manifestem diferentes formas de sofrimento psíquico no contexto da pandemia de Covid-19. Priscila (nome fictício), de 20 anos, estudante de graduação em Ciências Humanas, residente em uma cidade do interior, busca assistência psicológica, inicialmente demandando um diagnóstico psicológico, acreditando ter alguma psicopatologia e sugerindo o Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC) como uma hipótese. Relata sintomas como ansiedade, pensamentos intrusivos, além de comportamentos repetitivos e ritualísticos (principalmente relacionados à necessidade lavar as mãos e verificar as fechaduras da casa). Afirma ter realizado acompanhamento psiquiátrico aos dezesseis anos, mas o interrompeu em menos de um ano, bem como passou por um processo psicoterapêutico por três meses. Relata que sempre seus sintomas são minimizados com os tratamentos, mas reclama que não recebe a devida atenção dos profissionais, o que aponta para o seu sentimento de falta de acolhimento e suporte ambiental. A terapeuta se prontifica, então, a ajudá-la, reconhecendo que traz uma evidente sensação de desamparo em sua fala. Nesse início do tratamento Priscila dizia que teve uma boa infância, mas tem dificuldades em se aprofundar nesse tema. Sua mãe é profissional liberal e tem um irmão mais novo, mas reforça que não existe uma relação muito próxima entre eles. Seu pai vive em outro estado devido ao trabalho desde quando ela tinha oito anos. Afirma sentir falta dele, mas que se acostumou com a distância. No decorrer das sessões comunica que tem algo que aconteceu com ela, mas que não se sente à vontade de falar com medo de sua mãe ouvir. Então, é sugerida a mudança de horário de atendimento para quando estivesse sozinha em casa se sentisse mais à vontade para comunicar aquilo que necessita. Em uma das sessões relata dois sonhos. No primeiro, ela se vê caminhando na rua até que é atacada por dois ratos que a "impregnam com sua sujeira" que a faz se sentir "imunda". No segundo sonho ela recebe duas cabeças decapitadas em sua casa, mas não sabe quem as enviou. No entanto, sente que precisa esconder essas cabeças dos pais para que eles não a acusem de ser ela a responsável pelo crime. Busca diversas alternativas para ocultar as cabeças decapitadas e almeja proteger seu irmão mais novo para que ele não tenha que lidar com o fato. Percebe-se que esses sonhos remetem a paciente a uma sensação de desespero frente a um cenário sombrio e persecutório.

Esses sonhos foram interpretados a partir das angústias despertadas por eles e, então, Priscila os associa com sua história de abuso que revela nessa sessão. Os abusos foram cometidos por duas pessoas de da família, o avô e tio maternos, em vários e diferentes momentos, quando ela tinha oito anos de idade. É importante sinalizar que a paciente não tinha revelado as experiências abusivas até esse momento. Essa lembrança, então, se vincula à percepção de uma infância muito solitária, ao contrário do que tinha afirmado no início do tratamento. Relata que sempre percebeu sua mãe como uma mulher fragilizada. Exatamente quando Priscila estava com oito anos, período em que foi abusada sexualmente, a mãe havia desenvolvido um quadro depressivo após o nascimento do último filho, o pai precisou ser transferido para outra cidade e sua avó, a qual nutria muito carinho, faleceu, indicando ser essa uma etapa de vida com vários traumas consecutivos. Neste contexto de vulnerabilidade psíquica e falta de amparo ambiental, a paciente desenvolveu dificuldade de aprendizagem em grande parte da sua infância e os sintomas de ordem paranoides começaram a aparecer tornando-se uma criança e adolescente considerada retraída e "estranha". Ao longo das sessões foi demonstrando sua agressividade até então muito controlada, e passou a desejar denunciar os abusos sofridos e "fazer justiça". Com o apoio e acolhimento da revelação do abuso por parte da terapeuta, Priscila contou sobre sua experiência de vitimização aos pais, mas não houve, por parte deles, e principalmente por parte da mãe, apoio e suporte para encaminhar a denúncia. Ao contrário, segundo a paciente, a mãe a orientou a não mais tocar no assunto, como forma de superação e ressignificação. De acordo com o discurso de Priscila, a genitora constantemente a ataca e boicota seus movimentos de busca de saúde (desenvolvimento de autoestima, estabelecimento de relações sociais, a procura por acompanhamento médico etc.), incluindo o tratamento psicológico, sugerindo a necessidade de que a filha se mantenha no lugar de paciente identificado ou de bode expiatório da família.

A partir do estabelecimento de uma relação de confiança com a psicóloga, a paciente se sentiu mais segura para entrar em contato com a dinâmica disfuncional de sua família, passando a reconhecer que, principalmente, a mãe a coloca frequentemente nesse lugar de "doente", talvez como uma tentativa de se eximir de culpa e de responsabilidade pelos traumatismos psíquicos da filha. Começa, então, a externalizar muita raiva e desejo de se rebelar; entretanto, sente-se, ainda, sufocada e impossibilitada de "se desemaranhar".

Com o desenvolvimento do trabalho psicoterapêutico, Priscila passa a dizer não aguentar mais ficar nessa situação, ou seja, de fingir que nada aconteceu. A orientação e o manejo clínico nesse momento são de suporte e holding para a integração e a possível ressignificação da experiência abusiva, além do encaminhamento da paciente para uma instituição de apoio à mulher vítima de violência doméstica, que pode funcionar como um auxiliar no enfretamento do trauma vivido.

 

Discussão

Quando se realiza uma aproximação entre a teoria psicanalítica acerca do abuso sexual e o caso clínico aqui apresentado identificam-se aspectos centrais para a compreensão desse fenômeno, destacando o impacto dessa vivência enquanto um elemento traumático que impede o desenvolvimento emocional e a integração do eu do sujeito. De fato, a experiência abusiva deve ser considerada, tal como afirma Freud (1916-17/1996), como um excesso de excitação frente a uma vivência que a pessoa não consegue elaborar psiquicamente. No presente caso, trata-se de uma experiência de opressão, pois a paciente foi colocada no lugar de mero objeto do desejo dos adultos (Pinto Junior, 2005).

Esse nível elevado de tensão, portanto, ultrapassou a capacidade de tolerância de seu aparelho psíquico, ainda em formação, para elaborar a violência sofrida, o que acarretou perturbações importantes no funcionamento mental de Priscila. A paciente, por não ter tido oportunidade de encontrar um outro significativo que pudesse lhe oferecer escuta, acolhimento e suporte, acabou silenciando sua dor, encontrando apenas uma via de ecoar o afluxo de excitação: por meio da formação de sintomas corporais que se expressam por forte angústia e por um importante transtorno de ansiedade que não consegue compreender.

Mas, por outro lado, ao contrário do que o pai da Psicanálise acreditava no início de sua teoria da sedução, ou seja, que os efeitos do trauma do abuso sexual apenas se revelam mais tarde no processo de desenvolvimento do indivíduo, principalmente, na puberdade, quando o aparelho psíquico já está maduro o suficiente, e por analogia a uma outra cena também carregada de emoção de natureza sexual (Freud, 1896/1996c), percebe-se que Priscila logo após os episódios de vitimização já apresentou precocemente sinais do traumatismo, que se manifestaram mediante a dificuldade de aprendizagem e os sintomas de ordem paranoide. Segundo Pinto Junior (2005), a experiência de abuso sexual intrafamiliar gera sempre efeitos de curto, médio e longo prazo e, em função disso, demanda intervenções de ordem psicoterapêutica e jurídica o mais precocemente possível para interromper o ciclo de opressão, minimizar e suportar as consequências adversas no desenvolvimento da vítima e para fazer com que o agressor responda por seus atos. Essas intervenções precoces não foram realizadas no caso de Priscila que, ao contrário, não obteve apoio nem para fazer a revelação da situação abusiva. Num momento em que o ambiente familiar parecia negligente e intrusivo (Winnicott, 1960/1983), com o adoecimento da mãe, o "abandono" do pai e o falecimento de sua avó, a paciente não encontrou o suporte que necessitava para poder dar significado aquilo ao qual foi submetida, se rendendo, portanto, à vontade de seus agressores (Ferenczi, 1933/1992). De acordo com esse autor, esse movimento acontece no segundo momento do trauma, que ele chama de desmentido, quando a criança abusada demanda ajuda, apoio e sentido para essa experiência em outro adulto de confiança, mas essa pessoa não reconhece, não valida ou não se mostra presente para lhe dar sustentação. Diante dessa falta ou falha ambiental, o que restou à Priscila foi a dissociação (cisão) de seu eu, em duas partes, ou seja, por um lado comportando-se como se nada tivesse acontecido, calando a dor e sucumbindo a ela, até o momento que faz a revelação, já adulta, para sua terapeuta e, por outro, se identificando com seus agressores (Ferenczi, 1933/1992). A identificação com os agressores sexuais no caso dessa paciente é compreendida pelo sentimento latente de culpa pelo ocorrido e pela internalização da raiva que deveria ser remetida aos seus algozes. Os sonhos narrados em uma das sessões ilustram esses mecanismos decorrentes do trauma do abuso sexual. No primeiro, a invasão de seu corpo por dois ratos (possivelmente representando os dois agressores sexuais: o avô e tio maternos) a deixam "imunda", o que remete à ideia do primeiro momento do trauma. Por certo, a sintomatologia trazida por Priscila relacionada à compulsão de lavar as mãos e de verificar as fechaduras da casa parecem simbolizar o impacto nefasto do abuso sexual pois, de forma obsessiva, demanda se limpar da sujeira encravada em seu corpo pelos abusadores, e de se proteger de uma possível nova intrusão, trancando as portas para o mundo externo. Já no segundo sonho, enquanto a imagem das duas cabeças decapitadas alude à cisão do eu e remete às figuras dos dois abusadores, a necessidade de escondê-las expõe a identificação com eles, pois ocultar os fatos e os agressores os protege, mas da mesma forma sinaliza para o medo de ser responsabilizada pela violência sofrida, indicando o movimento de internalização do sentimento de culpa.

Portanto, as falhas ambientais, tal como postula Winnicott (1960/1983) e a falta de um outro significativo que pudesse lhe oferecer holding e sustentação provocaram uma interrupção no processo de desenvolvimento emocional de Priscila, obrigando-a a utilizar a dissociação (cisão) como defesa frente ao trauma (Winnicott, 1969/1994). Assim, essa jovem passa a se submeter e se adaptar de forma adesiva à realidade cruel e opressora, por meio de um falso eu que procura proteger o self verdadeiro das intrusões que geram uma agonia impensável. Por isso, a sensação narrada pela paciente é de viver sufocada e impossibilitada de "se desemaranhar" desse ambiente tóxico. Cabe aqui ressaltar o papel das figuras parentais, e especialmente da figura materna, que funcionam nesse caso como mantenedores do sofrimento psíquico da filha. Mesmo depois que a filha conseguiu, com o auxílio do tratamento psicoterapêutico, contar sobre os abusos sexuais sofridos na infância, sua genitora não foi capaz de sustentar e nem acolher a revelação. Ao contrário, desacredita e não valida os abusos, sugerindo a ela manter o silêncio. Esse fato reitera a ideia de que é essencialmente a falha ou a privação de um ambiente suficientemente bom que reforça e potencializa a dificuldade de elaboração, representação e integração da experiência traumática no self (Winnicott, 1969/1994). Não há elementos suficientes para afirmar que a dificuldade da mãe de Priscila em reconhecer e validar a experiência abusiva da filha se deve às possíveis experiências de violência em sua história pregressa, o que poderia aludir a um componente transgeracional, tal como sugerem Sufredini, Moré e Krenkel (2016). Mas, por outro lado, é importante investigar os motivos que fazem a mãe colocar constantemente Priscila no lugar de paciente identificado, pois, segundo Pinto Junior (2005), a vitimização sexual envolve de forma cíclica várias gerações em sua (re)produção. Por fim, é importante reconhecer o lugar da psicoterapeuta no processo de elaboração das vivências traumáticas de seu paciente. Tanto na abordagem ferencziana quanto na perspectiva winnicottiana é fundamental manter-se em sintonia com o estado emocional do sujeito, proporcionar um ambiente confiável e adaptável às suas necessidades para que o os aspectos do conflito vivido, até então fragmentados e dissociados, possam ser acessados, integrados no self, favorecendo, então, o abandono de organizações defensivas e, consequentemente, a retomada do seu processo de amadurecimento (Tardivo, Pinto Junior, & Tafner, 2019). No presente caso, entende-se que a terapeuta, a partir do manejo e da sustentação do sofrimento psíquico trazido por Priscila, o que não ocorreu em seus tratamentos anteriores, facilitou não apenas a revelação dos abusos sexuais, mas também a expressão de sua agressividade, considerada um passo importante para a ressignificação da experiência traumática e para a dissolução do mecanismo de identificação com os abusadores sexuais. Há, ainda, um longo caminho a ser percorrido no tratamento dessa paciente, pois ela ainda está em atendimento, e considera-se fundamental fazer a denúncia junto a uma instituição competente (para a qual já foi encaminhada). A presença e o apoio dos equipamentos jurídicos em casos de violência doméstica funcionam como coadjuvantes do tratamento psicológico, uma vez que ao remeterem a culpa das agressões aos devidos responsáveis contribuem, ao nível simbólico, para o rompimento da identificação da vítima com seus agressores e para a destituição da introjeção do sentimento de culpa, pois como assinalam Pinto Junior, Cassepp-Borges e Santos (2015), a criminalização do agressor deve ser compreendida como uma importante estratégia para a proteção e tratamento da vítima, mas também para coibir a reprodução da violência e o seu ciclo de transmissão intergeracional.

 

Considerações Finais

O presente estudo de caso ilustra, por meio de uma leitura psicanalítica, a dinâmica relacional e os mecanismos psíquicos envolvidos nas situações de abuso sexual intrafamiliar e evidencia o intenso sofrimento emocional disparado por uma experiência que rouba da vítima sua condição de sujeito, colocando-a num contexto de opressão e de profunda vulnerabilidade. Considerando os impactos desse tipo de vivência no desenvolvimento emocional do sujeito, é importante que o setting clínico ofereça um ambiente facilitador para que as angústias impensáveis ou irrepresentáveis possam ser acessadas, acolhidas e, por meio de um manejo adequado, ressignificadas e integradas no eu.

Contudo, por se tratar de um fenômeno que envolve várias nuances em sua constituição e atravessado por dispositivos de velamentos que impedem a revelação e a devida notificação, deve ser tratado necessariamente em bases interdisciplinares e interinstitucionais. Então, a ação conjunta entre a clínica psicológica e as instituições de proteção às vítimas de abuso sexual é indicada para a efetiva intervenção e a prevenção de seu ciclo transgeracional. Dado o recorte adotado, deve-se mencionar as limitações apresentadas por esse estudo. Pode-se apontar os limites próprios do método utilizado, de modo que as possíveis contribuições e reflexões propostas nesse artigo circunscrevem-se ao estudo em questão, não podendo ser generalizadas para outros casos, evidenciando-se a necessidade de investigações futuras.

 

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Recebido: 18.01.22
Corrigido: 23.02.22
Aprovado: 13.04.22

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