SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.1 número1Pré-escola terapêutica lugar de vida: Um dispositivo para o tratamento de crianças com distúrbios globais do desenvolvimentoA transferência no trabalho com os pais na instituição índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.1 no.1 São Paulo  1996

 

DOSSIÊ

 

A presença da psicanálise nos dispositivos institucionais de tratamento da psicose1

 

 

Maria Cristina Kupfer

Psicanalista, prof. dr. do Instituto de Psicologia da USP, diretora geral do Lugar de Vida

 

 

 

Alguns analistas de crianças mais ortodoxos, até há bem pouco tempo, alimentavam a esperança de colocar todos os seus pequenos - e quase sempre agitados - pacientes no diva. Com isso, supunham que o setting analítico estaria sendo recuperado em sua inteireza, ao mesmo tempo em que estariam sendo afastadas certas práticas pouco analíticas, como o uso do desenho, da argila ou o deslocamento incessante do analista atrás de um paciente bem mais ágil que ele.

Apesar disso, não há nada mais comum, entre os analistas de crianças de hoje, do que introduzir objetos mediadores na cena analítica. Na análise de uma criança, por exemplo, o uso de um fantoche, através do qual o analista lhe falava, permitia-lhe responder a ele, o que não acontecera até o momento dessa introdução. Um recurso como esse é, aliás, mais usual do que se imagina entre os psicanalistas. Françoise Dolto (1981) usou uma vez, com um paciente adulto, uma boneca-flor; Alexandre Stevens, quando esteve no Rio de Janeiro em novembro de 1994, contou também como introduziu um boneco que funcionava como uma espécie de "ego auxiliar" para o paciente que estava sendo tratado.

Embora não seja nada estranha a presença de objetos no setting da análise de crianças, o analista que não recebe crianças vê isso com reservas, e pergunta a respeito da natureza desse dispositivo. O psicanalista de crianças não terá nenhum problema em esclarecer que, embora possa haver diferenças no dispositivo que ele montou para analisar uma criança, o que se visa ali é ao discurso analítico. Quer seja por meio do desenho ou da fala, quer pela via do fantoche ou do relato de um sonho, o tratamento deve conduzir ao mesmo ponto: instalar o discurso analítico, no qual o analista ocupa de modo "semblante" o lugar de objeto a para seu analisante. "A posição do analista", diz Lacan (1991) "eu a articulo da seguinte forma - digo que ela é feita substancialmente do objeto a" (p. 47).

Assim, pode haver variações no dispositivo, ou no enquadre, mas se o discurso analítico puder instalar-se, estaremos falando de Psicanálise. Pode haver variações no dispositivo, no enquadre, ou, se quiserem, no que está instituído, mantendo-se porém, em estrutura, o que de fato interessa, ou seja, o discurso analítico. O instituído, ou a instituição, pode ser o consultório, o enquadre clássico, ou pode ser uma instituição de tratamento, que fuja aos moldes do tratamento clássico, contanto que se busquem sempre as condições de possibilidade de uma análise.

 

O DISPOSITIVO PODE OU DEVE MUDAR?

Bem, mas por que os psicanalistas de crianças introduzem papel e lápis na cena, e também os pais no início do tratamento, ou por que os psicanalistas das instituições de tratamento para psicóticos introduzem fantoches, bonecas-flores, música?

Na psicanálise de crianças, o desenho é, para Alfredo Jerusalinsky (1991), um sintoma da infância. Introduzido pela primeira vez na cena analítica por Hug-Hellmuth, veio como uma espécie de facilitador técnico, já que a criança em questão não falava. Hoje, porém, impõe-se como recurso, embora não seja absolutamente necessário, pois desenho, jogo, argila, encadeiam-se como significantes no discurso dirigido ao Outro do mesmo modo como sua fala.

E na psicanálise de psicóticos, os recursos e mudanças no dispositivo de tratamento são assim tão indispensáveis?

No Lugar de Vida, uma instituição para o tratamento de crianças psicóticas e autistas2, estamos supondo que, se quisermos ir além da palavra de ordem de não recuar, ou seja, se quisermos avançar quando se trata de psicose, teremos de pesquisar e experimentar modificações no enquadre psicanalítico clássico de tratamento.

Esta suposição pede explicações.

 

IMPASSES E LIMITES POSTOS PELA PSICOSE

No texto "Sobre uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose", publicado nos "Escritos" em 1996, Lacan adverte que, sem a instalação das condições para uma análise, é burrice insistir na sua realização, burrice semelhante à tentativa de remar na areia. São necessários certos manejos, ou manobras, da transferência, para que as condições de possibilidade para a instalação do discurso analítico ocorram.

Em decorrência de sua estrutura, explica Mareio Peter de Souza Leite (1988), o psicótico se coloca frente à demanda do outro como objeto, e se dirige ao analista em posição de sujeito. Assim, está invertida a situação que se espera em uma análise. Aí está, portanto, uma primeira dificuldade. Dificuldade, aliás, registrada também por Xavier Jacquey (1988), que precisou cunhar o conceito de transferência subjetal, ao deparar justamente com a constatação de que ao analista não restava outra alternativa senão a de ocupar o lugar de sujeito.

Então, a manobra da transferência consiste em buscar uma inversão desses lugares, sem o que o trabalho analítico não é possível.

Segundo Souza Leite, Lacan nunca chegou a formalizar melhor a idéia de uma manobra de transferência, mas seus seguidores o fizeram. De fato, em um texto apresentado por Gérard Miller e colaboradores no "III Encontro Internacional do Campo Freudiano", em 1984 , encontram-se algumas indicações nesse sentido. "Em um primeiro tempo, pois, o psicanalista consente em ser esse lugar do destinatário em sabendo que em um segundo tempo, um momento de virada se produzirá, no qual o psicótico se situa em $/S1 e se dirige a ele em a/S2- O analista gira para a posição de objeto a da erotomania. O importante é que consinta em deixar-se colocar nessa posição como semblante. Faz isto apelando para a verbalização, especialmente nos momentos em que se manifesta certa proximidade da passagem ao ato. Com efeito, o gozo está proibido a quem fala como tal. Constitui-se, assim, pouco a pouco, uma interdição que faz barreira ao gozo"(p. 214). E assim, acrescentam eles, há um desloca mento do real do gozo ao simbólico. Porém, é nesse exato ponto, segundo eles, que reside a principal dificuldade do tratamento da psicose: como atuar com o simbólico da palavra sobre o real do gozo? "Na psicose, vê-se claramente que não se trata de modo algum de interpretação(...). Tratar-se-á mais de uma manobra da transferência que aponte para o gozo" (p. 215).

Na medida em que essas são indicações não acompanhadas de um "mode d'emploi" ensinando como usá-las, os psicanalistas vêm desde então buscando recursos para fazer isso, tendo sido inaugurada, a partir de Lacan, uma investigação que está ainda em seus começos.

 

DIFICULDADES NO TRATAMENTO DAS PSICOSES INFANTIS

No caso da psicose e do autismo na infância, as dificuldades aumentam.

Haverá quem discorde dessa afirmação: é o caso dos autores que não propõem uma especificidade para a psicose infantil, o que os faz trabalhar dentro de um modelo idêntico ao do adulto. O referido texto do III Encontro, por exemplo, afirmou a inespecificidade da psicose e da neurose infantis, seguindo a esteira de Rosine e Robert Lefort. Há, porém, na atualidade, trabalhos que tomaram outra direção, ao buscarem o que há de próprio ao sujeito infantil. J.A. Miller (1992), na abertura das "Jornadas sobre desenvolvimento e estrutura na direção do tratamento", em Buenos Aires, afirmou que a criança é o sujeito cuja libido não se deslocou de seus objetos primários. Colette Soler (1994) também pensa ser necessário levar em consideração o fato de que em algumas crianças pode não ter havido ainda a efetuação do sujeito. Jerusalinsky (1994) afirma também que "nas crianças, ainda que as articulações constitutivas desse sujeito já estejam previamente configuradas na ordem do discurso, elas padecem, no entanto, da fragilidade própria dos acontecimentos que ainda são futuros e estão expostas, portanto, às vicissitudes de sua inscrição. Por isso, podemos afirmar, com certa justiça, que os terapeutas de crianças têm uma obrigação a mais: ocupar-se do que ainda não está constituído" (pp 11-12).

A essa discussão, agreguem-se ainda alguns fatos. O primeiro deles: o destino de uma pessoa será certamente diferente se uma crise psicótica eclodir na infância ou na adolescência. Caso ocorra em idade precoce, é bem provável que a criança apresente atrasos significativos no desenvolvimento, coisa que não ocorreria com um adulto. A criança que se apresenta a nós não é apenas um sujeito em meio a uma crise, é também uma pessoa correndo o risco de não crescer nunca mais. Não há como negar, portanto, que a psicose infantil nos coloca diante de dificuldades que não encontramos no tratamento das psicoses no adulto.

Outra dificuldade no tratamento analítico da psicose infantil está no fato de muitas dessas crianças não falarem. Pode-se, por exemplo, deduzir que uma criança esteja alucinando, quando se abaixa para pegar no chão um pedacinho de alguma coisa que não estamos vendo, ou quando seu olhar se dirige apavorado para um canto da sala. Os psicanalistas estão habituados a perseguir significantes verbais e não comportamentos, embora isso não impossibilite o tratamento. Dificulta-o, porém.

No caso do autismo, estamos quase diante de uma impossibilidade. "A diferença com o autismo é que a ausência de uma inscrição coloca a criança, a respeito da demanda do Outro, a receber essa demanda na posição de repetição da exclusão. E por isso que o autista recebe qualquer manifestação do laço social, seja de modo direto, seja de modo indireto, como uma demanda de ausentificação. E por isso que ela vira as costas àquele que a ela se dirige", diz Jerusalinsky (1993, p. 64).

Em vista desse tipo de dificuldade, Marie-Christine Laznik-Penot (1991) propõe mudanças significativas na abordagem de tratamento da criança autista. Nesses casos, "nosso trabalho consiste", afirma ela, "em permitir o estabelecimento do eu como alienação fundante na imagem especular, fundamento das relações imaginárias. Temos então que trabalhar de modo oposto ao da cura psicanalítica clássica, que manipula esse mesmo espelho plano para fazer aparecer a dimensão de alienação desta construção do eu" (p. 137).

Neste ponto, Laznik-Penot parece concordar com Soler. "Quando a criança que se apresenta é aquela a quem chamei de 'criança-objeto', cabe ao analista estabelecer a operação do significante(...). Em outras palavras, engendrar, ali onde faltava, um efeito-sujeito que tem o alcance de uma defesa contra o real. Poderíamos chamar isso de Psicanálise invertida no sentido positivo do termo, pois é uma operação que vai do Real em direção ao Simbólico e que cria as condições da falta para ser, enquanto que no discurso analítico, como o entendemos, a operação é inversa, visando a uma travessia do Simbólico em direção ao Real, para um levantamento ao menos parcial das defesas." (p. 11).

Por todas essas razões, não tem sido fácil analisar psicóticos - e menos ainda as crianças autistas e psicóticas. Assim, algumas instituições começaram a ser propostas na tentativa de superar tantas dificuldades impostas por essa prática. Ainda que em sua formalização não esteja evidente que se trata sempre de visar ao discurso analítico, é possível ver em tais instituições uma certa eficácia justamente por propiciarem esse giro, como observa Souza Leite (1988) a propósito do trabalho do acompanhante terapêutico.

 

INSTITUIÇÕES?

São bem conhecidas as objeções que se levantam a toda tentativa de "aplicar" a Psicanálise a qualquer outra instituição que não seja a instituição chamada clínica analítica. Diante dessa impossibilidade, busca-se, contudo, introduzir a escuta analítica em determinadas situações dentro da instituição, como por exemplo nas reuniões de equipe, ou então buscam-se introduzir análises individuais dentro dos muros de uma instituição em que o dominante é o discurso do mestre ou da universidade.

No primeiro caso, trata-se de produzir giros discursivos de modo pontual. No segundo, recomenda-se introduzir o tratamento na borda da instituição. Para Alexandre Stevens (1989), por exemplo, a Psicanálise entendida como tratamento "strictu sensu" pode, sim, estar presente em uma instituição. De que modo? Ausente. "Quando os tratamentos analíticos ocorrem em uma instituição, ou não são analíticos ou a posição ética do analista faz com que estejam estruturalmente fora, ainda que transcorram intra-muros" (p. 31). Ou seja, não é preciso sair fisicamente, mas é preciso estar fora. O importante é que o analista preserve as condições necessárias à instalação do discurso analítico, o que significa um discurso que não se confunde com o dominante na instituição.

Essa é uma posição muito diferente da de Alain Vanier e de Mannoni, que não recomendam a condução de análises no interior de Bonneuil, uma instituição francesa para psicóticos, autistas e débeis voltada para o trabalho escolar. Trata-se, segundo eles, de separar bem os dois âmbitos, porque uma criança psicótica não pode perceber claramente que o discurso pedagógico e o analítico são diversos3.

Há, porém, instituições que se estruturam a partir da psicanálise. Não do modo como se faz na escola de Bettelheim, em que "qualquer educador ou cozinheiro responde às perguntas da criança de modo psicanalítico", como critica Martine Fourré (1991). Em algumas instituições, o que se busca é transpor operadores de leitura construídos na experiência analítica para o âmbito da instituição, seja na escuta de seus grupos, seja na montagem mesma da instituição. E o caso de Bonneuil.

Para Mannoni (1976) uma instituição para crianças psicóticas pode ser desenhada a partir da compreensão que se tem da psicose infantil.

Por isso, a circulação das crianças de Bonneuil entre os diversos espaços que constituem essa instituição - a própria escola, a família substituta no campo, o lar terapêutico em que vivem, a própria família - pode produzir efeitos de corte. Estando no primeiro espaço, pode acontecer que o segundo se estabeleça para ela como um ausente. Da alternância de espaços, pode surgir a falta.

Há, finalmente, Le Courtil e L'Antenne, duas instituições belgas montadas para acolher crianças psicóticas e neuróticas, e que utilizam a orientação teórica de Lacan.

Para Virginio Baio (1992), no Courtil busca-se não confundir a condição da Psicanálise com as condições de sua aplicação a um sujeito particular. A condição da Psicanálise é a de que o inconsciente seja estruturado como uma linguagem, e as condições de sua aplicação incluem a pré-interpretação que o sujeito faz de seu sintoma. Não há, no psicótico, essa condição: ele não pode perguntar-se sobre o que lhe acontece, porque já o sabe muito bem. Trata-se então de proceder com ele a uma "contra-análise", na qual o gozo não seria interpretado, mas domesticado.

A condição da Psicanálise será, porém, garantida através da invenção dos ateliês, dispositivos que fazem intervir as leis da metáfora e da metonímia. Para alcançar a domesticação do gozo, completa Virginio Baio, propõe-se à criança que se deixe seduzir por um outro Outro, que seria uma alternativa ao Outro desregrado do qual está à mercê.

Resumindo: na história das instituições, várias foram as propostas de casar Psicanálise com Instituição. Pode-se:

a) Transpor simplesmente a interpretação do individual para o coletivo, e essa tem sido uma proposta amplamente criticada;

b) Provocar pontualmente giros discursivos em instituições onde predomina o discurso médico;

c) Conduzir análises dentro das instituições médicas;

d) Organizar instituições a partir do saber teórico da Psicanálise.

Mas agora, o que está em discussão, posto no horizonte, é não pensar instituição e Psicanálise como coisas diversas, em disjunção, mas entender a instituição como um dispositivo de tratamento no qual se visa ao discurso analítico, e portanto em conjunção com a Psicanálise.

A pergunta que se segue é então, a seguinte: é possível pensar em um modelo institucional de tratamento para crianças psicóticas e autistas que atenda a essa exigência?

Em instituições de tipo pré-escola terapêutica, como é o Lugar de Vida, podem-se buscar respostas a essa pergunta, examinando sua proposta de montagem institucional, seu eixo educacional, a função dos ateliês e o atendimento de pais.

A partir da experiência de Bonneuil, transporta-se a idéia de alternância entre os vários espaços da instituição estourada para os vários espaços de trabalho dentro da instituição. A alternância ø corre, por exemplo, quando as crianças saem de um ateliê e entram na sala das atividades educacionais, para irem em seguida a outro ateliê. A passagem de um espaço a outro é proposta como uma escansão que pode ou não ter valor de corte, mas que coloca a criança frente à descontinuidade. E se é verdade que a teoria opera como "um terceiro", a referência a ela permite a sustentação da escansão, e a instituição estará nesse caso colocada no lugar do Outro.

Ora, propor uma alternância entre as atividades não seria algo próximo de se buscar o giro discursivo na direção do discurso analítico? Não estaria havendo aí a tentativa de se provocar, por uma manobra da transferência, uma mudança na posição de objeto em que se encontrava essa criança?

 

SOBRE A DIMENSÃO EDUCACIONAL

O fantasma da debilidade ronda a psicose infantil, perigo de que já pode ter escapado um adolescente que se desenvolveu normalmente e teve sua primeira crise depois de ter aprendido a falar, a ler e a escrever. Já tiveram tempo de adquirir um capital ideativo , como diriam os psiquiatras, ou já terão adquirido recursos cognitivos. Mas quando a crise eclode em idade precoce, quando ainda não houve a chance de essa criança aprender a falar, quando ela ainda não colheu do tesouro de significantes uma quantidade razoável deles com os quais se fazer representar, é certo que esse psicótico será muito diferente de um psicótico adulto. Caso essa criança não entre em contacto com o mundo escolar e com a cultura, será não apenas um psicótico na vida adulta, sofrerá também de uma significativa debilidade mental, o que reduzirá, também de modo significativo, suas chances de recuperação social, ainda que venha a conhecer na vida adulta os benefícios de um tratamento analítico.

No entanto, até há bem pouco tempo, a educação das crianças psicóticas era uma tarefa que permanecia em suspenso, aguardando os benefícios de um tratamento analítico, que sabemos ser longo e difícil. Hoje, o panorama está 'mudando: sabe-se que um psicótico pode estar funcionando como deficiente, mas isto não o impede de construir ilhas de inteligência. Propor, de outro lado, uma educação tradicional, que busque apenas a introdução da leitura e da escrita em seu valor puramente instrumental e adaptativo, não resolve o problema. Caso isto fosse suficiente, bastaria colocar as crianças psicóticas em escolas, e a reversão espontânea de seu quadro estaria garantida.

Por isso, o modelo da pré-escola terapêutica propõe-se a preparar as crianças para a escolarização regular oferecendo educação e tratamento integrados. Isto significa que, nesta proposta, as palavras do código e as produções da cultura estarão sendo apresentadas de modo a permitir que a criança se aproprie singularmente deste material e faça advir daí algo que adquira valor significante.

Transmitir o conhecimento, desta perspectiva, abre uma chance, por exemplo, para a saída das estereotipias, que são emergências de fala decaídas por falta de lastro significante, ou, na expressão de Laznik-Penot (1996), ruínas de antigos castelos. Nesta perspectiva, oferece-se o conhecimento não apenas em sua dimensão instrumental, mas como possibilidade de que este seja utilizado para separá-lo do gozo intrusivo do Outro. E, sobretudo, um instrumento acionado na suposição de que está ali um sujeito.

Nesse tipo de proposta educacional, é inequívoca a presença da Psicanálise. Mais que isto, uma não existiria sem a outra. Aqui, abandona-se a discussão em torno da impropriedade de levar a Psicanálise às escolas, bem como o esforço de traçar fronteiras entre atos que já se sabem ser tão díspares como o pedagógico e o analítico. Não se pretende de modo algum analisar um aluno, e sim entender que, sem educação, não haverá tratamento, e vice-versa. Ambos são esforços que visam atingir, através de práticas diferentes, o mesmo alvo: o sujeito.

 

O TRABALHO COM PAIS

Se quisermos seguir as indicações de Laznik (1991), não será possível dispensar a mãe no tratamento de seu filho autista. Para essa autora, o analista precisa ocupar, nesses tratamentos, o lugar do espelho plano, "para que possa vir a se formar uma imagem real na borda mesma do corpo real da criança; e que a esta nova imagem, a mãe real possa aceder, por identificação especular com o olhar do analista" (p. 136).

Poder-se-ia dizer que, para a mãe de um autista, olhar seu filho produz o mesmo efeito que a contemplação da cabeça de Medusa - confrontação com a castração, para Freud, ou Com a morte, para o mito. Ao analista, então, pode caber a mesma função reservada na lenda ao espelho: a de mediar o olhar, permitindo que a mãe veja seu filho através do reflexo de sua imagem no olhar do analista.

Ora, não está a instituição em posição de Outro? Isso é exatamente o que ocorreu entre uma mãe, seu filho e a mediação operada na instituição pelo grupo de mães. Se antes essa mãe só via no filho puro corpo, passa a desconfiar que há ali um psiquismo, ou um sujeito do inconsciente, se quiserem. No início do tratamento, ela costumava repreendê-lo severamente quando ele cuspia no chão. Mas um dia, observou que ele cuspira logo depois que vira sair da sala de atendimento o seu analista com a cliente que o havia antecedido. A mãe perguntou então: "Cuspiu (n)a moça, meu filho?" Podia agora escutá-lo, vê-lo em outra posição, e supor que por detrás de seu ato não havia mais só corpo a desfazer-se de (/em?) restos, mas um sujeito.

 

O TRABALHO NOS ATELIÊS

Um menino tido como autista "liga-se" em uma contadora de estórias que vai à sua escola. Fascina-se, quer lhe falar, quer ajudá-la a levar seus pertences até o carro. Poderíamos então dizer que o contador de estórias pode ter sido colocado por essa criança no lugar de um Outro que não lhe demanda nada? Pois o contador de estórias está barrado por essa determinação que lhe escapa quando aceita ser falado pela estória que conta, e se apresenta portanto como sujeito barrado, exatamente como o texto, citado mais acima, do "III Encontro Internacional do Campo Freudiano", sugere que o analista se apresente.

O que se afirma a respeito do lugar da Psicanálise nas instituições é que ela pode estar presente apenas como saber teórico. Afirma-se também que o tratamento nas instituições pode ser entendido como uma preparação para a análise, já que condições de possibilidade para a condução de uma análise não estão colocadas. No entanto, estamos no momento em que se trata de perguntar o seguinte: se o alvo é o discurso analítico, por que falar então em pré-analítico? O dispositivo de tratamento é outro, mas se o discurso psicanalítico puder ser instalado, não estaríamos respeitando em estrutura o que é da ordem da Psicanálise propriamente dita? Não estaríamos todos nós, Le Courtil, L'Antenne, e talvez o Lugar de Vida, no campo analítico, no quadro que equivaleria às entrevistas preliminares situadas agora de modo ampliado no tempo para alguns tratamentos, que podem durar mais de dois anos, mas que em estrutura correspondem ao que se pratica em certos momentos das análises clássicas?4 Por que falar em pré-analítico, se não falamos assim ao nos referirmos às entrevistas preliminares?

Mais do que isso, não estaríamos nós em um campo ampliado, no qual se inclui ainda a possibilidade de movimentar outros discursos além do analítico, o que representa uma vantagem em relação ao enquadre clássico? Não haveria benefício no fato de conviverem o pedagógico e o analítico, para que se operem justamente as diferenças e os cortes entre eles? Mannoni diz que não faz análise em Bonneuil para não confundir as crianças, que não podem separar os discursos. Não seria justamente o contrário? Não é essa separação que precisa ser construída, e proposta por isso já no desenho institucional?

Essas são agora as perguntas. O movimento é de reformulação permanente, já que não é possível evitar que a colocação de respostas abra perguntas em número sempre maior.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAIO.V. Orientation psychanalytique dans une institution pour enfants dits psychotiques. In: Les feuillets du Courtil. Tournai, Le Courtil, 1992, n. 4.         [ Links ]

DOLTO, F. Au jeu du désir. Paris, Seuil, 1981.         [ Links ]

FOURRÉ, M. Les lieux d'accueil. Paris, 1991.         [ Links ]

JACQUEY, Xavier. Les transferts subjectaux. In: La Psychiatrie de l'enfant. Paris, Presses Universitaires de France, v. 31, 1988.         [ Links ]

JERUSALINSKY, A. A infância sem fim. Boletim da Associação Psicanalítica de Porto Alegre. Porto Alegre, 1991, ano n.6.         [ Links ]

JERUSALINSKY, A. La educación, es terapêutica? Acerca de tres juegos constituyentes dei sujeto. In: Escritos de la Infância. Buenos Aires, FEPI, 1994, ano 3, n. 4.         [ Links ]

JERUSALINSKY, A. Psicose e autismo: uma questão de linguagem. Boletim da Associação Psicanalítica de Porto Alegre. Porto Alegre, Artes e Ofícios, 1993, ano 4, n. 9.         [ Links ]

JERUSALINSKY, A. Psicanálise do autismo. Porto Alegre, Artes Médicas, 1984.         [ Links ]

LACAN, Jacques. D'une question préliminaire à tout traitement possible de la psychose. In: Écrits. Paris, Seuil, 1966, pp 531-584.         [ Links ]

LACAN, Jacques. L'envers de la Psychanalyse. Paris, Seuil, 1991.         [ Links ]

LAZNIK-PENOT, M.-C. II n'y a pas d'absence s'il n'ya de la presence. Du role fondateur du regard de l'Autre. La Psychanalyse de l'enfant.         [ Links ]

MANNONI, M. Un lieu pour vivre. Paris, Seuil, 1976.         [ Links ]

MILLER, J-A. Palabras de apertura. In: Desarollo y estructura en la dirección de la cura. Buenos Aires, Atuei, 1992.         [ Links ]

MILLER, G., BROCA, R. e outros. Acerca de la clínica de las psicosis. In: Como se analiza hoy? Tercer encuentro internacional dei campo freudiano. Buenos Aires, Manantial, 1987.         [ Links ]

SOUZA LEITE, M. P. Questões preliminares ao tratamento de psicóticos. In: Arquivos de Saúde Mental. São Paulo, Estado de São Paulo, 1988, vols. 47 a 52.         [ Links ]

STEVENS, A. Tres lugares dei saber en la institución. In: Ninos en Psicoanalisis. Buenos Aires, Manantial, 1989.         [ Links ]

SOLER, C. Le désir du psychanalyste. Oú est la difference?. In: Lettre Mensuelle, 1994        [ Links ]

 

 

NOTAS

1 Trabalho apresentado na Escola Brasileira de Psicanálise - Seção São Paulo, em maio de 1995.

2 Ver apresentação neste número.

3 Comunicação pessoal.

4 Ver discussão a esse respeito no artigo de Alexandre Stevens, "A clínica psicanalítica em uma insituição para crianças", publicado neste número.