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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.1 no.1 São Paulo  1996

 

DOSSIÊ

 

A transferência no trabalho com os pais na instituição1

 

 

Lina Galletti Martins de Oliveira

Psicanalista, coordenadora do grupo de pais e diretora clínica do Lugar de Vida

 

 

No Lugar de Vida os pais são incluídos desde o início do tratamento da criança, sendo esse atendimento uma das estratégias específicas da montagem institucional. Com esse trabalho objetivamos deslocamentos na posição subjetiva dos pais em relação à problemática de seus filhos.

Tornou-se fundamental a definição e a delimitação quanto à natureza dessa modalidade de atendimento institucional. Nesse sentido, buscamos na teoria psicanalítica os eixos para nossas formulações, que nos indicam ser possível articular a escuta e o manejo dos movimentos transferenciais dos pais com o tempo das entrevistas preliminares a uma análise.

Para situar esse trabalho, parece oportuno trazer antes algumas considerações sobre o polêmico e complexo lugar que ocupa o trabalho com pais na clínica psicanalítica com crianças.

Em 1909 Freud apresentou o caso Hans. Sabemos que com essa publicação Freud não pretendia inaugurar a psicanálise de crianças. Sua intenção era a retificação da teoria sexual infantil, através do caso clínico. No entanto, o caso Hans tornou-se referência importante para todo psicanalista de crianças. Como disse Jorge Volnovich (1991), nesse caso estão presentes as três condições para a análise: demanda, transferência e interpretação. Também encontramos nesse trabalho de Freud a primeira referência à presença de um pai na análise do filho.

Os primeiros trabalhos sobre o tema "psicanálise de crianças" surgem a partir de 1920 e é nesse período que se introduz essa prática clínica, com a célebre polêmica entre Anna Freud e Melanie Klein sobre a analisabilidade das crianças.

Melanie Klein defende que a psicanálise de crianças é possível e que é uma clínica, não uma pedagogia. Não restam dúvidas quanto à importância dessa autora na história da psicanálise, principalmente porque confere à prática clínica com as crianças o estatuto analítico.

No que se refere ao lugar dos pais, no referencial kleiniano, os pais que importam são os fantasiados e não os de realidade. Os pais reais não são incluídos no tratamento de seus filhos, pois são considerados apenas como pais imaginários. Segundo Maria Cristina Kupfer (1994), "ainda não fora estabelecida a distinção entre os pais da fantasia e os pais simbólicos".

Na década de 60, a partir de Jacques Lacan, ganha destaque o pensamento de Françoise Dolto, que faz a articulação da teoria lacaniana na psicanálise de crianças. A criança passa a ser vista como inserida numa estrutura, efeito da família, desejo do Outro.

Maud Mannoni situa o analista de crianças operando no campo da linguagem e considera que no trabalho analítico com crianças o que está presente na situação transferenciai é o discurso coletivo, que engloba a criança, seus pais e o analista. Para essa autora, cumpre sempre situar o que representa a criança no mundo fantasmático dos pais e compreender também o lugar que esses lhe reservam. Nesta medida, os pais estão sempre presentes e a escuta da história desejante não pode deixar de ser considerada.

Hoje, a idéia de um discurso coletivo está problematizada.

O pensamento de Dolto e Mannoni, ao introduzir a escuta dos pais, revolucionou a prática analítica com crianças; mas não podemos deixar de considerar que houve um certo equívoco ao se proporem, a partir daí, estratégias de atendimento que incluíam apenas os pais e que consideravam ser suficiente tratá-los para que o sintoma da criança desaparecesse. Sabemos não ser bem assim: quando uma criança é trazida a uma análise, cabe ao analista escutá-la como um sujeito. Atualmente, pensamos que, embora não haja uma especificidade na psicanálise de crianças, há particularidades presentes nessa clínica. A principal delas está no fato de que dificilmente uma criança procura análise. De modo geral, seu pedido é veiculado pelo dos pais. São eles que solicitam ajuda e cabe ao psicanalista escutar esse pedido e verificar a possibilidade de transformação da queixa inicial dos pais em demanda de análise por parte da criança.

No nosso entender, esse trabalho de construção da demanda na criança a partir do discurso dos pais se faz através das entrevistas preliminares com os pais e com as crianças.

A teoria psicanalítica lacaniana introduziu a prática das entrevistas preliminares a uma análise que se caracteriza por um tempo preliminar, por um adiamento do início da análise. Nesse sentido, o fato de uma pessoa chegar até um analista pedindo-lhe ajuda não significa por si só a entrada em análise. A demanda de análise é construída no decorrer das entrevistas preliminares, através do manejo transferenciai, e com a instalação do Sujeito Suposto Saber. E preciso que haja a abertura para o inconsciente, ou seja, a instalação do querer saber o que não se sabe, e da suposição de que há um Outro que detém esse saber.

Segundo a formalização de Miller (1988), nas entrevistas preliminares a uma análise o analista tem condições de distinguir 3 níveis importantes: a avaliação clínica, a localização subjetiva e a introdução ao inconsciente.

Essas entrevistas são um meio para o analista fazer um diagnóstico preliniminar. Ele deve ser capaz de concluir, previamente, algo a respeito da estrutura clínica da pessoa que o procura. No campo analítico, esse diagnóstico se situa no nível do sujeito e não se restringe apenas à objetividade. Nas entrevistas preliminares o analista avalia e localiza a posição subjetiva do sujeito. Mas é impor tante também que o sujeito possa se localizar em relação à sua própria demanda, responsabilizando-se por seus sintomas. E o que denominamos, a partir da teoria lacaniana, subjetivação e retificação subjetiva. Nas entrevistas preliminares a uma análise, o analista deve conduzir o sujeito para esses níveis de trabalho visando à abertura do inconsciente e à entrada em análise.

Vamos tentar situar o trabalho com os pais na clínica analítica de crianças usando o referencial das entrevistas preliminares. Como isso é possível?

Quando o psicanalista recebe os pais de uma criança, propõe-se inicialmente a escutá-los, tentando saber o que querem e como problematizam os sintomas do filho. A escuta do discurso dos pais nos fornece elementos que ajudam a saber qual a posição da criança na estrutura familiar.

Nessa medida, a escuta dos pais é situada como um tempo prévio ao da análise de uma criança, nos termos das entrevistas preliminares a uma análise. O que nos autoriza a fazer essa leitura?

O texto "Duas notas sobre a criança"(1991), escrito por Jenny Aubry a partir de uma consulta a Lacan, muito nos esclarece no entendimento da posição da criança na estrutura discursiva dos pais. Ele nos fala de duas possibilidades: a criança revelando a verdade do casal parental, sendo nesse caso sintoma dos pais, ou a criança revelando a verdade do fantasma materno, ocupando então o lugar de objeto dessa fantasmática. Ou seja, temos pais e criança enlaçados na estrutura discursiva.

Nesse sentido, é muito interessante a contribuição de Lerude-Flechet (1989). Essa autora fala de duas ordens de sintomas nas crianças: o sintoma analítico propriamente dito, que é constitutivo e estrutural do sujeito, e uma outra ordem, denominada por ela "manifestações sintomáticas", nas quais se presentificam nos filhos as neuroses dos pais. Para Flechet, existe um enlace entre o Imaginário e Simbólico dos pais e o Real da criança.

Na clínica analítica com as crianças neuróticas, é possível, a partir da transferência inicial dos pais ao analista, trabalhar no sentido de desenlaçar as manifestações neuróticas dos pais e o sintoma analítico da criança.

Todo esse trabalho pode ser falado em termos de manejos transferenciais.

Porém, se os parâmetros para esses manejos parecem claros no atendimento psicanalítico de crianças neuróticas num consultório, como pensar a clínica analítica com crianças psicóticas? E mais ainda, como pensar o atendimento dessas crianças e de seus pais no âmbito institucional ?

Torna-se importante também esclarecer o que está sendo dito quando se fala de crianças psicóticas.

Na clínica com crianças nos deparamos com casos graves de distúrbios de comportamento. De um modo geral, essas crianças costumam ser diagnosticadas como autistas, psicóticas e/ou deficientes mentais, tanto pela Psiquiatria, como pela Neurologia. Atualmente, pelo DSM-III R esses casos são incluídos na categoria de distúrbios globais do desenvolvimento.

Num referencial psicanalítico, podemos pensar e entender o funcionamento dessas crianças da mesma forma que fazemos na clínica com os adultos: o ato diagnóstico é necessariamente posto em suspenso e confirmado a posteriori no decorrer do processo analítico.

Para Lacan, o inconsciente está estruturado como uma linguagem. Nas estruturas clínicas o que se verifica é a relação do sujeito com o significante, e o seu modo particular de operar com a castração. Na teoria lacaniana a psicose se define pela falta de um significante primordial, o significante denominado Nome do Pai. Esse é um significante fundamental, que organiza os outros significantes, possibilitando o sentido. A singularidade de cada sujeito se localiza nas vicissitudes do Complexo de Edipo, ou seja, no modo como a lei do pai barra o desejo materno.

Essa teoria trouxe noções importantes para a clínica psicanalítica com os psicóticos. No que se refere às crianças, podemos dizer - baseando-nos no texto que Aubry (1991) escreveu a partir da consulta a Lacan - que a criança psicótica está aberta a todas as capturas fantasmáticas, porque não há nela a mediação do desejo materno. Ela se torna o "objeto" da fantasmática da mãe e não tem mais outra função do que a de revelar a verdade desse objeto.

Nessa medida, não temos na criança psicótica um sujeito que fale de seu sintoma. Essa criança não demanda nada; não há na cadeia discursiva um significante que apele ao Saber, o que dificulta sobremaneira o trabalho analítico com ela.

No entanto, podemos pensar em tratamentos possíveis para a psicose, no intuito de possibilitar à criança o estabelecimento de metáforas não paternas, na tentativa de se criar laços sociais, apesar da dimensão estrutural colocada pela chamada "foraclusão irremediável"(ver, Strauss, 1991) da psicose.

Após essas considerações sobre psicose e psicose infantil, retomemos as perguntas:

1) O trabalho com pais de crianças psicóticas é o mesmo que na clínica das neuroses?

2) E o trabalho com esses pais na instituição?

Podemos responder que o trabalho institucional com pais de crianças psicóticas é o mesmo que o realizado na clínica das neuroses, mas com algumas particularidades.

Nessa medida, fazendo um recorte da montagem institucional, é possível falar do que é o trabalho com os pais no Lugar de Vida e apresentar as tais particularidades presentes nesse tipo de atendimento.

Apesar de o trabalho proposto não ser um tratamento analítico tradicional (no sentido da cura analítica), a psicanálise é a ferramenta teórica que o norteia. Nas reuniões clínicas semanais da equipe, na discussão do trabalho e dos casos, há a busca de uma elaboração teórica. A leitura psicanalítica dos efeitos nele produzidos é de fundamental importância: possibilita aos profissionais, através da construção do caso clínico, o afastamento do campo do Imaginário, ou da dimensão intuitiva, quer seja no intuito de transmissibilidade, quer seja na reorientação da sua direção. O saber psicanalítico contribui, nessa medida, para que se afastem os riscos de a instituição permanecer na repetição, mantendo, estruturalmente, a posição subjetiva das crianças e de seus pais.

Podemos exemplificar, relatando uma recente elaboração teórica da equipe, realizada em uma reunião clínica. O trabalho dos ateliês e do educacional se preocupou em preparar presentes, junto com as crianças, por ocasião do "Dia das Mães". Pensamos ser esta mais uma possibilidade de inserção dessas crianças na rede de linguagem ou na cultura dos homens. Mas, há poucos dias, numa reunião clínica, deparamos com um "esquecimento": não lembramos de fazer o mesmo para o dia dos pais. Passado o impacto inicial de nossa constatação, pudemos articular o fato teoricamente: estávamos repetindo a ausência da função paterna com nosso esquecimento do dia dos pais.

No Lugar de Vida nosso referencial é a teoria lacaniana, o que nos permite ter como ponto de partida a idéia de que a "doença" da criança não está só nela, mas num campo discursivo que inclui também os pais.

Uma primeira particularidade nesse trabalho: a escuta dos pais e das crianças conduz a outra dimensão dessa problemática: a não separação entre mãe e filho em termos discursivos, efeito, justamente, da ausência da lei paterna barrando o desejo da mãe. Há uma colagem de discursos, evidente no exemplo que se segue. Pedrinho foi encaminhado ao Lugar de Vida pelo setor de psiquiatria de uma instituição médica de São Paulo, com um diagnóstico de Síndrome de Asperger. Na primeira entrevista, na qual compareceram os pais e a criança, a mãe de Pedrinho conta que seu filho tem problemas no contato social e que não fala o "eu". Quando tenta explicar as dificuldades do filho, em sua fala, revela essa não separação: "Ah! Dra., como é difícil essa história do "eu" e do "você"!

No trabalho institucional com crianças psicóticas e autistas, deparamos com uma segunda particularidade: de entrada, a transferência dos pais é com o Outro institucional. O que eles esperam e buscam nesse Outro é a solução para os problemas dos filhos. No nosso caso, por estarmos numa instituição de ensino, a USP, essa situação se torna ainda mais acentuada: esse Outro institucional detém o Saber.

Na tentativa de um primeiro manejo transferenciai, criamos na instituição o lugar da referência. Esse é o nome dado ao terapeuta que recebe os pais para as entrevistas preliminares, e que marca o início de um trabalho visando à implicação dos pais na problemática dos filhos. A referência é sempre um dos terapeutas da equipe, que se responsabiliza pelo acompanhamento do caso na instituição. Mas, também é aquele que indica aos pais a necessidade de um trabalho com eles, sustentando, inicialmente, os movimentos transferenciais dos pais .

O Lugar de Vida adota, além do trabalho com a referência, outra estratégia de atendimento: o grupo de pais, que caracteriza então uma terceira particularidade. Esse trabalho começou quando a escuta das mães adquiriu contornos inesperados que determinaram a instituição do que chamamos na época de "grupo de mães". "No Lugar de Vida, assim que se iniciou o trabalho com o grupo de crianças, foi possível acompanhar nas mães um esboço de separação em relação a seus filhos. Não sendo ainda possível renunciar à alienação, aconteceu um deslocamento: era agora entre elas - mães - que se produzia tal alienação. Formou-se, na sala de espera, um grupo regido pela fascinação imaginária provocada pela ilusão de uma semelhança que as unia em torno do fato de que eram todas iguais em seu sofrimento. Tal migração precisava ser acompanhada, ouvida e desfeita: o grupo de mães foi instituído de modo formal por um dos analistas da equipe, que passou a encontrar-se com elas semanalmente. Essa estratégia, indicada pelo próprio movimento transferenciai das mães, passou a ser vista como estando estruturalmente articulada a todas as demais estratégias clínicas que compõem o Lugar de Vida" (Brauer, Kupfer & 01iveira,1991).

O número de crianças atendidas cresceu e a característica do grupo mudou. Já não é mais um "grupo de mães" e sim um "grupo de pais", pois há também pais trazendo os seus filhos e participando do atendimento. Esse grupo continua sendo coordenado pela mesma psicanalista da equipe e se realiza agora duas vezes por semana. Além disso, ampliamos nossa formulação teórica a partir dos efeitos colhidos.

Mas, por que atender os pais em grupo?

Hoje sabemos que a resposta a essa pergunta revela uma quarta particularidade do atendimento dos pais. A estratégia de atender os pais em grupo oferece a eles maiores chances de perceberem e de se confrontarem com a diferença: como, pelo menos em parte, essas crianças têm sintomas parecidos, os pais em grupo podem mais rapidamente perceber que para diferentes pais os mesmos sintomas não têm a mesma significação. Isto, segundo Alfredo Jerusalinsky2, contribui fortemente para a quebra da repetição especular entre pais e filhos ao redor do sintoma.

Não se pode negar os efeitos desse trabalho com os pais nessa instituição. Em primeiro lugar, eles têm de forma sistemática a possibilidade de falarem dos filhos e do tratamento que está sendo desenvolvido com eles. Isto, sem dúvida, favorece a manutenção da transferência com a equipe e com o trabalho institucional como um todo. Favorece, também, a circulação discursiva entre pais, crianças e profissionais, na medida em que, na reunião clínica semanal de equipe, tem-se a oportunidade, com a discussão dos casos e dos atendimentos semanais, de se acompanharem os movimentos e deslocamentos produzidos tanto nos pais quanto nas crianças.

Mas, qual é a natureza desse trabalho? Essa é mais uma particularidade, a quinta. Não se trata nem de orientação, nem de análise dos pais. Trata-se da escuta dos pais. E o que esta escuta produz?

O trabalho com os pais, seja com a referência ou seja em grupo, sendo uma escuta, contribui para que se instale, no lugar da certeza, uma interrogação no que se refere à interpretação que eles dão aos sintomas dos filhos. A introdução de perguntas os conduz a outras direções, além de sua própria fantasmática. Esses resultados não são conseguidos num trabalho meramente educativo ou de orientação aos pais, onde ao contrário, as respostas e os conselhos tampo-nam a falta. Evidentemente,respon respondemos, quando necessário, às perguntas dos pais, mas não nos colocamos na posição do mestre detentor do saber.

Sabemos que para a criança, a presença do Outro primordial possibilita-lhe a inscrição na linguagem. Mas, para a criança psicótica, esse Outro se propõe como discurso único, o que a impede de se representar enquanto sujeito, de falar em nome próprio. Ela permanece aprisionada ao sentido único que o Outro lhe fornece.

Num seminário teórico, Alfredo Jerusalinsky3, afirma que a suposição de um sujeito torna possível a terapia das psicoses. No Lugar de Vida essa suposição está presente o tempo todo nas estratégias de atendimento com a criança e nas intervenções com os pais.

Acreditamos ser de fundamental importância produzir uma virada na posição dessa criança na estrutura familiar; torna-se necessário que ela seja relançada na série significante. As intervenções com os pais possibilitam mudanças na posição que a criança ocupa: ela pode ser deslocada da posição de objeto para significante. E nesse sentido que propomos um trabalho com os pais.

Nosso pedido inicial a eles é de que falem dos filhos, e verificamos que a partir desse "falar dos filhos" os pais têm a chance de reconstruir a história familiar (Boudard,1992). Nessa reconstrução há a possibilidade de implicação dos pais na problemática dos filhos; eles são levados a se perguntarem ou a se questionarem sobre qual é a parte deles nessa história toda.

Dessa forma, é possível a articulação dos princípios das entrevistas preliminares a uma análise com esse trabalho institucional com os pais, mas com uma outra particularidade, no caso a sexta. A implicação subjetiva dos pais nos problemas de seus filhos se dá num particular movimento desses pais: a passagem da culpabilizaçâo imaginária, para a responsabilização simbólica4. Sabemos que, na grande maioria das vezes, os pais chegam presos na culpa, localizada neles ou nos outros, numa dimensão totalmente especular. É necessário que haja um deslocamento, uma mudança de posição subjetiva nos pais, da culpa para a responsabilidade no sintoma do filho. O pai de Mauro, paciente do Lugar de Vida, nos fala claramente desse movimento. Ele diz no grupo de pais: " No começo eu achava que era culpado do problema do meu filho. Agora eu sei que ele tem um problema grave e que eu não sou culpado. Mas, eu acho que piorei bastante a situação dele, que já era grave, com os meus problemas." Referia-e na ocasião, ao fato de ter percebido que sua enorme dificuldade de dizer "não" ao filho tinha a ver com sua própria história; sua mãe fora muito dura, só lhe dizia "não". Acha que tenta agora compensar-se, dando ao filho o que ele não teve, mas gostaria de ter tido.

Num outro exemplo, a mãe de Frederico, depois de escutar as outras mães no grupo de pais, conclui: "E, somos cúmplices de nossos filhos". Nessa fala essa mãe passa da idéia de culpa para a de responsabilidade, implícita na cumplicidade.

Direcionamos o trabalho com os pais no sentido de levá-los a ampliar o máximo possível as significações dadas por eles ao sintoma do filho.

Nessa medida, caracterizamos esse trabalho com os pais como um trabalho de elaboração significante. Como nos diz Beatrice Boudard (1992), psicanalista de uma instituição belga intitulada L' Antenne, esse é um trabalho que se localiza no nível da cadeia significante e não no intervalo dessa mesma cadeia.

Por isso, nesse trabalho institucional não cabe a interpretação. Há sempre presente o limite de não mexer na questão fantasmática dos pais. Por essa razão, não se trata de análise, pois se temos a transferência presente, não há por parte deles demanda para o saber inconsciente. E na possibilidade disso acontecer, isto é, de ocorrer uma demanda de análise por parte dos pais, há o encaminhamento para a realização dessa análise fora da instituição.

Constatamos, numa sétima particularidade, que a transferência inicial dos pais com o Outro institucional pode se deslocar para os terapeutas. Essa tranferência é inevitável e necessária para a condução do trabalho nos limites de seus objetivos. Sabemos tratar-se da transferência imaginária, ou seja, com a pessoa dos terapeutas e não a manejamos no sentido da abertura ao inconsciente.

O termo transferência é utilizado em vários contextos, tais como na relação professor-aluno ou médico-paciente. A descoberta freudiana foi considerar esse fenômeno, na relação paciente-analista, essencial para o trabalho analítico. Na análise padrão há a produção de uma neurose artificial, a chamada neurose de transferência.

Na instituição não se trabalham os movimentos transferenciais dos pais no sentido da instalação dessa neurose de transferência. Segundo Jerusalinsky5 trabalha-se no sentido da instalação da transferência sobre um saber específico, que é o filho como causa do trauma.

Articulamos o trabalho com os pais na instituição com o trabalho das entrevistas preliminares a uma análise, pois nele está presente um descentramento do saber sobre o sintoma6. E necessário esclarecer que esse saber que se desloca para os pais não se refere ao saber sobre o sintoma deles enquanto sujeitos do inconsciente. Refere-se ao saber específico do sintoma do filho.

Por isso, nossas intervenções não objetivam a entrada em análise desses pais. Não cabe neste trabalho institucional o momento de concluir ou a introdução ao inconsciente das entrevistas preliminares, pois a experiência não é a analítica.

Porém, como nas entrevistas preliminares a uma análise, localizamos nesse trabalho o movimento de implicação e subjetivação dos pais no que se refere à problemática dos filhos. Isto, sem dúvida, tem a ver com a chamada responsabilização referida por Freud nas reviravoltas dialéticas presentes no caso Dora. Também se relaciona com o que inicialmente Lacan chamou de retificação subjetiva e que mais tarde na sua elaboração teórica denomina histerização do discurso. E até aqui que conduzimos o trabalho com os pais no atendimento institucional das crianças com distúrbios globais de desenvovimento.

Alexandre Stevens7 escreve, de forma bonita, a respeito da necessidade de se buscarem mudanças subjetivas dos pais em relação à problemática de seus filhos: "Uma determinada mãe se sacrifica permanentemente para seu filho, submetendo-se à sua violência e a todas as suas fantasias; deixando sua vida suspensa pela presença da criança, ela não para, no entanto, de se queixar de seu sacrifício, quando o sacrifício que será preciso levá-la a fazer é o de renunciar a essa posição de sacrifício".

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AUBRY, J. Duas notas sobre a criança. [Publicado orginalmente em Ornicar?, Revista do Campo Freudion, n37, abr./jun. Tradução de Símia Sobreira pra uso interno da Escrita Freudiana, jun 1991]         [ Links ]

BOUDARD, B. Des quatre discours dans le travail avec les parents.Les Feuillets du Courtil,n.5, set.1992.         [ Links ]

BRAUER, J.; KUPFER, M.C.M.;OLIVEIRA, L.G.M. Considerações sobre o trabalho com pais na clínica nalítica com crianças. Inc. ENCONTRO LATINO AMERICANO DE PSICANÁLISE COM CRIANÇAS, São Paulo, 1991. Anais. São Paulo, 1991.         [ Links ]

KUPFER, M.C.M Pais, melhor não tê-los? In: ROSENBERG, A.M.S., org. O lugar dos pais na psicanálise de crianças. São Paulo, Escuta, 1994.         [ Links ]

LERUDE-FLECHET, M. Algumas observações sobre os sintomas das crianças. In: MOREIRA DE SOUZA, A. (org.) Psicanálise com crianças, Porto Alegre, Artes Médicas, 1989, v.l.         [ Links ]

MILLER, J.A. Seminário do campo analítico. Revista Falo, n.2, 1988.         [ Links ]

STEVENS, A. La clinique psychanalyitique dans une institution d'enfants. Les Feuillets du Courtil, n.l, maio, 1989.         [ Links ]

STRAUSS, M. Semblante e transmissão. In: MILLER, J., org. A criança no discurso analítico. Rio de Janeiro, Zahar, 1991.         [ Links ]

VOLNOVICH.J. Lições introdutórias à psicanálise de crianças. Rio de Janeiro, Dumará, 1991.         [ Links ]

 

 

NOTAS

1 Texto apresentado na Jornada "Instituição e Equipes Multidisciplinares" (mesa: Movimentos Transferenciais na Instituição), promovida pelo C.P.P.L. (Centro de Pesquisa em Psicanálise e Linguagem), no Recife, entre os dias 30/08 e 1/09/96.

2 Comunicação pessoal.

3 No seminário teórico-clínico sobre o tema "Psicoses", realizado no dia 18/08/96, em São Paulo.

4 Ver: Kupfer, M.C.M., "Crianças psicóticas e autistas: de onde vieram e para onde vão?", [inédito].

5 Comunicação pessoal.

6 Comunicação pessoal.

7 Ver: Steavens, A. Clínica psicanalítica em uma intituição para crianças, neste número.