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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.1 no.1 São Paulo  1996

 

ARTIGO

 

Conversando com sara pain1

 

 

Leandro de Lajonquière

Professor-Doutor do Depto. de Filosofia e Ciências da Educação da Universidade de São Paulo

 

 

LdL. Suponho que quando o seu último livro "Sur les traces du sujet"2, escrito com Gladys Jarreau, for traduzido no Brasil e na Argentina, o público vá se surpreender, pois seu nome está, há anos, associado à problemática do aprender, em especial à psicopedagogia, e entretanto esse livro trata de arte-terapia. No contexto dessa, talvez, mudança de rumo, gostaria que nos falasse um pouco de como começou a interessar-se pelos chamados problemas de aprendizagem.

SP. Na realidade, tanto no aprender quanto na estética, encontramos o mesmo problema: a integração entre a objetividade e a subjetividade. Esse problema sempre me preocupou até que certa vez, num seminário, um dos participantes - Gladys Jarreau - , que se dedicava à arte-terapia, me solicitou uma surpervisão de seu trabalho. Assim, iniciou-se um trabalho conjunto, de quase dez anos, que deu lugar à publicação do livro. Pois bem, a problemática da integração do real e da fantasia, do dramático, manifesta-se tanto no aprender, sob a forma da ruptura desse processo, quanto na dimensão sublimatória da arte. O campo da arte-terapia é um lugar privilegiado para a análise desse movimento de passagem do patológico ao sublime. Mais ainda, a arte-terapia nos possibilita ver em movimento o próprio processo dessa passagem. Temos uma tendência a pensar a arte apenas no nível dramático, porém cabe assinalar que se trata da transformação da matéria, pois ela possui suas leis e não é possível transformar, por exemplo, o mármore em carne. Assim, podemos dizer que a arte é uma verdadeira luta dramática contra a lógica da matéria.

LdL. Sua afirmação a respeito desse entrecruzamento entre, por um lado, a lógica da matéria e, por outro, uma lógica subjetiva lembra-me a tese principal de seu dois livros dedicados à função da ignorância3

SP. Com efeito, trata-se de uma mesma preocupação teórica.

LdL. Retomando a pergunta sobre a origem de sua preocupação com o aprender, gostaria de saber como se iniciou de fato seu trabalho nessa área, uma vez que sua formação acadêmica é em filosofia.

SP. Na realidade, minha biografia profissional foi se fazendo sempre por encontros. Quando me graduei em filosofia, na Argentina, estava vivamente interessada pelos temas epistemológicos, em particular os inerentes à matemática. Entretanto, conheci o professor Tabela, que foi um grande pedagogo argentino, também iniciador da psicologia no país embora, hoje em dia, pouco lembrado; isso foi um fato marcante na minha militância educativa. Por outro lado, sabia dos trabalhos de Piaget e em particular dos de Inhelder sobre o pensamento em crianças débeis. Assim, entre o fato de o tratamento das crianças retardadas deixar, naquela época, muito a desejar e a filosofia, enquanto profissão, optei por me dedicar ao trabalho pedagógico com crianças atrasadas, focalizando, entretanto, as questões epistemológicas envolvidas. Claro que depois vieram também os acontecimentos políticos...a demissão de algum lugar de trabalho...o exílio ...a possibilidade de ter ido para a Suíça e depois para a França...

LdL. Em que época a senhora foi para a Suíça?

SP. Isso foi em 1963. Na época concluí meu doutorado em matemática sobre cálculo combinatório e viajei à Suíça onde me dediquei ao estudo das teses piagetianas e, em particular, a seguir os estudos de Inhelder sobre o pensamento das crianças retardadas. Num momento percebi que em muitas crianças operava nos processos de aprendizagem um obstáculo mais decisivo que o cognitivo. Comecei a pensá-lo como um obstáculo dramático. Obviamente, essa tese já não se enquadrava mais no espírito piagetiano. Justamente, na medida em que começo a acompanhar a reflexão lacaniana, vou definindo essa idéia da fratura no aprender como o entrecruzamento de duas lógicas - a cognitiva e a dramática. Por sinal, isso era impossível de ser pensado no contexto da psicanálise clássica na época; refiro-me à teoria de Melanie Klein.

LdL. Precisava de duas análises até certo ponto estruturalistas?

SP. Sim, de fato. A teoria kleiniana é apenas dinâmica ou energética e eu precisava de duas estruturações que, embora contrárias, funcionassem em paralelo para assim pensar o entrecruzamento obstaculizante entre ambas. Ao contrário, numa teorização dinâmica sempre se conclui que o afeto é o motor da inteligência. Essa é a tese da inibição mental de Klein, bem como a idéia clássica de Piaget sobre o tema. Desta forma, numa perspectiva estrutural temos, de um lado, a inteligência definida em termos piagetianos e, de outro, a dramática subjetiva e não os afetos como se pensa corriqueiramente. Aliás, cabe esclarecer que o afeto é apenas a matéria prima da estruturação dramática mas não é significante. Assim, o "outro" da inteligência não é a dita afetividade, mas a dramática.

LdL. Considero muito interessante esse assinalamento, pois estamos atualmente vivendo, no Brasil, um momento de inflação das preocupações psicopedagógicas, porém as justificações ensaiadas são, não poucas vezes, apressadas "misturas" teóricas.

SP. De fato muitos dos que se dedicam à psicopedagogia ou à psicoterapia da aprendizagem "misturam" Freud e Piaget; considero que não é pertinente "juntar" qualquer coisa com qualquer outra. Mais ainda, não poucas vezes os estudos piagetianos são interpretados numa simples perspectiva evolucionista bem como behaviorista. Entretanto, Piaget tematiza o processo do pensamento, isto é, como se estrutura e não apenas o fato de que há diversas máquinas cognitivas.

LdL. Poder-se-ia dizer...o funcionamento da máquina?

SP. Sim. Entretanto, se reduzirmos os trabalhos piagetianos a uma simples descrição do que as crianças deveriam fazer numa idade determinada e, por outro lado, a psicanálise num puro dinamismo pulsional, então, a clínica psicopedagógica se transforma num "tratamento de apoio" recheado com afirmações do tipo "esta criança tem uma mãe muito protetora e não aprende na escola".

LdL. Esses profissionais detêm-se num nível apenas descritivo que precisamente os impede de pensar na lógica da própria intervenção ?

SP. Sim, de fato; permanecem numa descrição fenomênica. E sabido que uma "mãe muito protetora nunca preenche" como diz um certo dito popular. Entretanto, o que deve ser tematizado são as condições e por meio de que símbolos fratura-se o processo de aprendizagem. Em outras palavras, devemos nos interrogar sobre como é que uma operação cognitiva transforma-se em simbólica, entrando, assim, num outro circuito de estruturação. São poucos os profissionais capazes de pensar nessa perspectiva. As outras conexões assinaladas corriqueiramente são apenas contigentes.

LdL. Parece-me que de sua resposta pode-se concluir que essa espécie de diálogo mais ou menos tortuoso entre algumas teses piagetianas e alguns ensinamentos psicanalíticos, no intuito de pensarmos a fratura na aprendizagem, ainda não está concluído. Entretanto, nos dias de hoje, constata-se um revezamento rápido das teorias nessa área temática. Em particular, podem ser ouvidas frases do tipo "Freud está superado Piaget está superado...!"

SP. Quando existirem de fato um outro Piaget, um outro Freud, poderemos dizer que foram superados. Por enquanto, não apareceu ninguém e por conseguinte são os maiores pensadores da psicologia, em sentido lato, deste século. Que significa dizer que podem chegar a ser superados? Superar quer dizer que num momento se produz uma ruptura, uma descontinuidade, no campo das teorias, e aquela que surge integra a anterior. Qualquer nova teorização no campo psicológico deverá nos explicar por que Piaget e Freud explicaram, por sua vez, as coisas de uma outra maneira. Entretanto, minhas palavras não devem ser entendidas de uma forma absolutista no sentido de que essas teorizações não possam ser objeto de críticas parciais ou que certas temáticas não devam ser repensadas. Por exemplo, em Piaget não encontramos uma verdadeira teoria da linguagem. Piaget prescindiu da linguagem para ressaltar a estruturação lógica. Assim, devemos pensar uma teoria da linguagem que sendo geral possa incluir a teoria psicológica da inteligência. Isso é importante pois para pensarmos a fratura no aprender precisamos de uma linguagem única que encerre em si mesma tanto a inteligência quanto a dramática.

LdL. Uma linguagem única ...em que sentido?

SP. A linguagem é única uma vez que é a mesma para falar tanto inteligentemente quanto dramaticamente. Não dizemos "agora vou falar uma língua lógica e não dramática". E claro que podemos dizer "agora vou utilizar uma linguagem matemática", porém estou me referindo às chamadas linguagens naturais, as usadas na vida cotidiana. A linguagem "comum" é dramática; sua sintaxe, as formas verbais são dramáticas. Por exemplo, quando utilizamos o modo imperativo, estamos articulando uma relação de força com o outro. Entretanto, quando formulamos alguma idéia no interior das teorias científicas, utilizando a linguagem cotidiana - diga-se de passagem que isso não poderia ser de uma outra forma, à exceção do uso da formalização matemática - , estamos dramatizando uma afirmação, em princípio, de natureza inteligente. Em suma, na linguagem ocorre a conjunção dos níveis lógico e dramático.

LdL. Poder-se-ia dizer que a linguagem é o cenário onde se encontram e entrecruzam a logicidade própria da dramática desiderativa e aquela a propósito do real?

SP. E na linguagem que eu me expresso, isto é, a objetividade sempre é uma objetividade para mim. Mais ainda, se afirmo que "eu sinto uma dor" - um sentimento interno, acabo expressando-o como objetivo. Assim, a linguagem é a possibilidade de objetivar o afeto, bem como de dramatizar a realidade.

LdL. Mudando um pouco o eixo de nossa conversa...há uma situação que, pessoalmente, me preocupa. Nos dias de hoje, observamos, no Brasil e na Argentina, uma demanda crescente por explicações ou justificativas psicopedagógicas no contexto da conhecida crise dos sistemas educativos nacionais. Mais ainda, cabe dizer que o Brasil, por exemplo, está vivendo, com alguns anos de atraso em relação à Argentina, essa espécie de boom da psicopedagogia que, dentre outras modalidades, expressa-se na crescente oferta de cursos de "especialização em psicopedagogia". Parece-me que, independentemente da boa fé dos profissionais envolvidos, alimenta-se, às avessas, uma certa ilusão tecnocrática ou metodológica; a ilusão de que os males da educação latino-americana obedecem a falta de uma fórmula, de uma teoria psicopedagógica, ou de um novo método de ensino adequado a uma suposta realidade psicopedagógica singular dos alunos. Qual é a sua opinião?

SP. Pois bem, isso é um perigo! Obviamente, os problemas da educação são sociais. E claro, também são dramáticos, mas aqui já estamos numa dimensão de análise clínica ou singular.

LdL. Faço-lhe essa pergunta porque me parece que, no limite, a ilusão tecnocrática acaba transformando-se numa outra: no contexto da clínica é possível uma educação mais científica e metódica.

SP. Se pensamos na classe média, poderíamos chegar a concluir que a clínica é a "solução" dos problemas de aprendizagem uma vez que eles são, quase sempre, a manifestação de uma espécie de rebeldia, isto é, uma situação singular de não-reprodução da cultura dos pais. Porém, no âmbito da educação popular há outros elementos embora sempre possa ser recortada a dimensão dramática uma vez que sempre há pais e famílias na história. Nesse caso, não temos o mandato paterno de reprodução cultural pois a escola espera que essas crianças sejam diferentes de seus pais. Em nossos países, a escola está feita para reproduzir o espírito da classe média; a economia precisa disso. Pois bem, tomemos o caso do Brasil, que está em processo de desenvolvimento econômico. Pergunto-me até que ponto a economia é capaz de manter, todos, na qualidade de "educados", no circuito produtivo? Ou ao contário, há um grande número de pessoas que não se beneficiam do desenvolvimento caindo fora do circuito produtivo? Os problemas não se originam na educação, são inerentes à sociedade, que está feita para funcionar de uma certa maneira e não de uma outra.

LdL. Considero que essa idéia sobre a suposta natureza clínica da crise da educação escolar acaba contribuindo para o apagamento do lugar clássico da escola.

SP. A pedagogia possui suas técnicas, tem uma forma de ensinar, e quando não ensina como deve, isto é, quando há problemas de aprendizagem, deve-se ao fato de a sociedade estar regulada no sentido de uma singular forma de reprodução do saber. E claro que há também as patologias, assim como, apesar de um país possuir certas condições de saúde pública, surgem doenças que só são curadas nos hospitais. Nesse mesmo sentido as patologias no aprender devem ser curadas fora da escola. A escola é um lugar de aprendizagem e não de terapia. A missão da escola é ensinar e para isso supõe-se que as crianças estão ávidas por saber. Assim, uma coisa são os problemas da educação e outra coisa ocorre quando uma criança, com nome e sobrenome, tem problemas para aprender como faz a maioria. O campo terapêutico possui uma outra dialética diferente da escolar. O terapeuta não ensina; ao contrário, dedica-se a pensar quais são os obstáculos no aprender para assim poder dissolvê-los. Em outras palavras, deve se dedicar a devolver à criança seu anseio de saber uma vez que em algum momento o perdeu. O psicopedagogo não deve ensinar-lhe as contas, deve desvendar por que é que a criança não as aprende. Por outro lado, o educador deve ensinar, isto é, criar as condições pedagógicas para uma aprendizagem possível e não fazer terapia. Em suma, as condições de aprendizagem não são condições terapêuticas; então, quando ambas são misturadas, isso é apenas uma questão publicitária.

LdL. A escola sempre veiculou uma tradição de saberes, ou se preferirmos, a tradição da humanidade. Assim, transmite-se aos pequenos aquilo que os mais velhos fizeram para que, reproduzindo-o, dêem continuidade à tradição. Nesse contexto, gostaria de saber que opinião merece o fato de muitas escolas acalentarem a ilusão de as crianças contruírem o dito pensamento lógico brincando ou "exercitando-se" com as famosas fichas lógicas para além de todo conteúdo educativo.

SP. Isso não é, obviamente, pedagogia. O ensino escolar leva embutido em si mesmo uma tradição retroativa para que não se perca o conhecimento adquirido. Por outro lado, a educação está tensionada em direção ao futuro. Assim, trata-se de articular passado e futuro. Entretanto, perante a imensidão dos conhecimentos passados costuma-se pensar que se deve, ao contrário, favorecer o desenvolvimento da máquina pensante pois assim a criança estaria em condições de compreender qualquer coisa. Entretanto, não é isso que acontece. O resultado é a "descultivação", uma vez que se opera um corte na cadeia, que impede, precisamente, o posicionamento perante o novo. Pensa-se ingenuamente que "descarnando" o processo de ensino-aprendizagem, isto é, aprendendo apenas "instrumentos cognitivos", a criança poderá fazer, por exemplo, informática. No entanto, se a criança não conhece história da cultura, não sabe, por exemplo, quem foi Galileu Galilei, e não poderá utilizar de forma positiva o computador. Em outras palavras, não poderá utilizar essa máquina para fazer outras coisas; saberá até certo ponto "usar" a máquina em si mesma, mas não saberá o que colocar dentro.

LdL. Poderíamos, no limite, pensar que nessas condições nem sequer haveria construção de uma máquina pensante? Pensando na sua afirmação acerca do entrecruzamento entre uma lógica dramática e uma outra a respeito do real, caberia dizer que os números se inserem também numa dramática que alguns estariam precisamente esquecendo?

SP. Deve-se esclarecer o seguinte: o termo dramática não significa que, por exemplo, vamos inserir os números numa simples relação comercial do tipo "um lojista comprou quatro caixas de cervejas e trata-se de saber quantas garrafas possui no total". Isso não é a dramática dos números; isso é puro empirismo cotidiano. Os números possuem um desafio próprio, são um jogo e enquanto tal possuem a dramática própria dos jogos. Encontrar as leis do mundo dos números é tanto maravilhar-se quanto aterrar-se perante o fato de dividirmos o número dez por três e encontrarmos sempre mais um número, isto é, trata-se de uma operação que, não acabando nunca, aponta para o infinito. As crianças devem ser colocadas perante essa monstruosidade numérica; é em contato com ela que nasce a paixão pela matemática. Assim, a respeito do sujeito que não experimentou nada de especial na primeira vez que fez essa operação, podemos dizer que passou superficialmemte por essa experiência matemática. De outro lado, o educador que, certo dia, não disse "hoje vamos presenciar um verdadeiro fenômeno !" não compreendeu o que é a matemática. Consideremos, o número pi, que é a relação entre o raio e a circunferência e que, apesar de haver uma máquina nos Estados Unidos que continua produzindo milhões de números não é possível encontrar um período; assim, se isso não espanta uma pessoa, podemos dizer que ela "passa apenas por cima" sem chegar a sentir o mistério do infinito. Esse é o drama da matemática e não o clássico problema das garrafas; este último interessa aos lojistas.

Mas isso diz respeito às condições pedagógicas. Outra coisa é o campo da clínica. Aqui cabe perguntar-se por que um sujeito padece de um certo obstáculo para pensar o infinito.

LdL. Confesso-lhe que, enquanto a escutava, não podia tirar da minha cabeça a figura de Cantor, aquele perseguido pelo infinito, pela busca do além, mas que à medida que se entregou matematicamente ao frenesi dessa busca, atrasou a despersonalização psicótica.

SP. Esse é precisamente o perigo dos grandes. A grandeza tem seu preço; não é tarefa fácil, por exemplo, ser um Van Gogh...

LdL. Ao menos temos que nos cortar uma orelha... (risos)

SP. Mas deixemos de lado os grandes pois estamos falando dos pequenos, daqueles que embora não se dediquem à matemática podem, sim, em algum momento, ter-se maravilhado com ela. Nesse sentido, cabe dizer que não se trata de ser músico mas de ter claro que, se qualquer um ao ouvir Bethovem passa por cima dessa experiência, então está perdendo alguma coisa.

LdL. Ultimamente, devido em parte à expansão do vocabulário psicanalítico, constata-se que na área educativa é comum escutar falar do "desejo de saber". Entretanto, por causa de uma certa visão empírica que toma conta do discurso psicopedagògico hegemônico costuma-se pensar que "o desejo de saber" está "dentro da cabeça" da criança. Nesse contexto, considero que se depreende de suas palavras uma certa lição: algo desse contágio pela matemática - por esse deixar-se levar pela lógica e pela dramática própria do mundo dos números - está atrelado à paixão daquele que ensina.

SP. Sabemos que a paixão pelo saber é um pecado. Por sinal, já na Bíblia, a sabedoria aparece como pecado, e diga-se de passagem que vivemos em países "alimentados a Bíblia". A sabedoria da sabedoria da Bíblia é que não devemos comer a maçã. Como vemos, o limite é inerente à paixão pelo saber, faz parte de sua condição primeira; quando falamos em termos de desejo, sabemos que está limitado pela interdição. Assim, há paixão de saber, mas ao mesmo tempo medo, contenção e inclusive morosidade de saber. Se não fosse assim, a máquina pensante funcionaria muito mais rápido. Entretanto, devemos ter claro que a aceleração da máquina talvez nos confundisse totalmente. Nesse sentido, devemos nos interrogar sobre a função da ignorância, sobre qual é a função do freio. Por sinal, você falou de Cantor...aí temos um exemplo: não enlouqueceríamos se comêssemos todas as maçãs ?

Assim como fazemos clínica com uma criança que urina na cama, podemos também fazê-lo quando estamos frente a uma criança que não aprende - e isso é patológico! - aqueles saberes que possibilitariam a ela reproduzir-se no seio da classe e no contexto de seus pais. Porém, quando falamos da pedagogia ou da aprendizagem escolar, devemos ter outros parâmetros embora, é claro, sempre todo sujeito inscreva-se singularmente num contexto social.

LdL. Retomemos o assunto das condições de possibilidade da aprendizagem escolar....Como sabemos, os sistemas educativos estão em crise no mundo todo; entretanto a crise é diferente em cada lugar. Parece-me que a escola latino-america padece de um apagamento singular do lugar do professor. Isso obedece a uma série de razões que vão do valor relativo dos salários até a natureza do ideário pedagógico atual que retirou, paradoxalmente, do professor as insígnias que outrora portava. Se pensamos o lugar que o educador ocupava, por exemplo, há uns trinta anos, e aquele que ocupa hoje no imaginário social, cabe concluir que o atual está pouco inflado imaginariamente. Assim, pergunto-me até que ponto essa deflação imaginária não está na origem da dificuldade dos educadores em vir a sustentar um cenário dramático mínimo em que o aprender possa desdobrar-se. Nesse sentido, e deixando de lado os casos singulares, será que as crianças não aprendem porque está tudo feito para que aprendam pouco?

SP. Diria que está tudo feito para que aprendam de certa maneira. De fato, há um grande desprestígio do histórico e um investimento desmedido no atual. Ou seja, há pouca transposição do passado, da cultura até um empobrecimento da língua. Esse descuido com a língua acontece, por exemplo, tanto na Europa quanto na América Latina. Cabe assinalar que, enquanto toda língua representa o passado, hoje em dia a fala dos jovens, em particular, está cheia de neologismos. Justamente, as novas gerações estão tensionadas para o futuro e muito pouco para o passado. Assim, como a educação é a transmissão da cultura, há uma parte da população que "cai fora" dessa transmissão e portanto se "descultiva". Na França, fala-se muito do processo de "descultivação" embutido na imigração, como se fossem apenas os árabes que sofrem dele pelo fato de morar num outro país. Parece-me que, à exceção de alguns ambientes singulares, todo mundo sofre um processo de "descultivação".

LdL. Seguindo esse raciocínio, poderíamos dizer que o empobrecimento da língua reduz o estofo das referências simbólicas nele embutidas e portanto cada vez mais passamos a viver sob o império das coisas...

SP. Com efeito, estamos submetidos ao mundo das coisas porque estamos no presente. Considera-se que a criança deve aprender a utilizar o microcomputador. Pensa-se que a informática é a grande solução para todos os males. Até um adolescente, indeciso quanto à sua escolha profissional, apela para a idéia de "fazer informática" para sair do impasse. A informática é o futuro ! Faz dez anos que a única coisa na qual se fala é no século XXI, como se o século XX, no qual ainda vivemos, tivesse acabado! Porém, não sei como podemos construir um futuro sem nos referir ao passado. Não sei como poderemos construir um futuro se cada vez lemos menos, se a televisão, que é um elemento onipresente no nosso cotidiano, é uma janela aberta para um presente contínuo, para um presente que nem sequer é idealizado. O "presente" presente está cru; de fato, a televisão nos oferece um presente sem adereços.

LdL. Parece-me que para os países latino-americanos o desafio é maior que para os europeus, onde o Estado desenvolve políticas maciças de fomento cultural e preservação do patrimônio histórico. Penso no fato de que para a maioria de nossos compatriotas a escola é quase a única oportunidade de debruçar-se sobre o passado, de reconhecer-se numa tradição, numa filiação. Entretanto, a pedagogia moderna lhes oferece informática, joguinhos e fichas lógicas...

SP. Sim, é preocupante. De outro lado, é absurdo pois as fichas vão, supostamente, possibilitar construir um instrumento sem conteúdo; vão dar um programa de ação. Para que serve um programa sem informação? Não se esgota em si mesmo? Acaso não nos encontramos, todos os dias, com adultos que compram microcomputadores cheios de programas que de fato não usam? E os que têm editores de textos sofisticadíssimos e nem sequer escrevem uma linha ?

LdL. Deveríamos dizer a nossos colegas que, depois de ter perseguido "formas puras" durante todos esses últimos anos, deveriam reconsiderar a criticada tarefa de transmissão dos conteúdos, retomando a clássica dicotomia cara a pedagogia moderna ?

SP. Diria sim... mais ainda, diria isso num sentido militante. Por outra parte, não creio que alguém possa passar muito tempo transmitindo apenas uma técnica sem conteúdo. Claro que pode até fazê-lo com fins financeiros e extrair disso um benefício secundário. Aliás, posso até entender que alguns estejam apaixonados em vender certas coisas e ganhar dinheiro, porém isso não pode ser chamado de paixão educativa. A paixão educativa, bem como a paixão pela matemática à qual nos referimos, pressupõe a trasmissão de conhecimentos. Assim, quem transmite a matemática, não está de fato transmitindo uma maneira de ensinar a matemática. A matemática como também a história são em si mesmas inteligentes. A badalada inteligência ou lógica "passa sozinha" pelo simples fato de o sujeito aprender alguma coisa que possui uma lógica.

LdL. Diríamos que a lógica vem por acréscimo ?

SP. Com efeito; se estou ensinando coisas que já são lógicas não é necessário que ensine uma outra lógica suplementar. Essa lógica não é outra, é a mesma. Essa pretendida lógica está impressa nos ditos conteúdos; porém se a ensino como cultura, transmite-se com a dramática da cultura.

 

 

Notas

1 Entrevista realizada na cidade de Paris, no inverno de 1995, por ocasião do estágio feito com auxílio financeiro do CNPq, na Ecole Expérimentale de Bonneuil-sur-Marne.

2 Publicado recentemente em português: Teoria e Técnica da Arte-Terapia. Porto Alegre, Artes Médicas, 1996.

3 Publicados no Brasil pela Editora Artes Médicas.