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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.2 no.2 São Paulo  1997

 

DOSSIÊ

 

Educação terapêutica: o que a psicanálise pode pedir à educação

 

 

M. Cristina M. Kupfer

Psicanalista. Professora doutora do Instituto de Psicologia da USP. Diretora geral do Lugar de Vida

 

 

Sabe-se que a Educação Regular é, atualmente, uma máquina de excluir os diferentes. Mais do que isso, as práticas pedagógicas adotadas em nossas escolas são em realidade fabricantes dessa nova categoria de crianças, as excluídas do sistema regular de ensino. Os trabalhos de M. Helena Patto (1990) mostram isso claramente, ao denunciarem o fato de que o fracasso escolar se produz no interior das relações cotidianas do universo escolar. A esmagadora maioria de crianças não é fracassada escolar porque tem problemas de dislexia, dislalia ou mesmo porque sofre de carência cultural. Elas se tornam fracassadas escolares a partir do modo como a escola aborda, ataca, nega e desqualifica o degrau, a diferença social, o desencontro de linguagens entre as crianças de extração pobre, de um lado, e a escola comprometida com outras extrações sociais, de outro.

Entre essas crianças, há, porém, algumas que sofrem uma exclusão de outra natureza. Sua diferença não está nem em sua condição social, nem em seu funcionamento intelectual efetivamente rebaixado por determinantes genéticos, funcionais ou anátomo-patológicos. São diferentes porque apresentam graves distúrbios de desenvolvimento e demonstram um funcionamento intelectual absolutamente atípico. Não são deficientes mentais verdadeiramente; podem enganar à primeira vista, mas logo se vê que possuem algumas qualidades intactas, algumas ilhas de inteligência. Está-se falando das crianças que alguns psicanalistas poderão diagnosticar como psicóticas, que alguns neurologistas chamarão talvez de autistas de bom rendimento. Seja qual for o diagnóstico, porém, estarão excluídas da escola regular.

Atualmente, isto está começando a mudar. Em alguns centros educacionais mais avançados no mundo, e em algumas escolas brasileiras, está-se falando em readmitir essas crianças - vamos dizer, com "distúrbios globais do desenvolvimento" - nas escolas regulares. Para as crianças psicóticas, autistas ou com distúrbios graves de socialização, a palavra de ordem, hoje, é: reintegração escolar.

Por que e para que, é preciso perguntar. Pois a reintegração não é, de modo algum, pacífica, óbvia, ou de fácil execução. Exige, portanto uma discussão prévia. Será necessário fazer uma retrospectiva histórica do problema e examinar em seguida as propostas que vêm sendo apresentadas hoje, bem como seus fundamentos teóricos.

A retrospectiva histórica das relações entre psicose infantil e escolarização permite traçar um estranho caminho, cujo ponto de partida, no século passado, é uma prática que pode ser chamada de Psiquiatria Educativa. O ponto de chegada - e aqui reside a estranheza - é o oposto do de partida: aportamos na Educação Terapêutica.

De fato, as propostas de educação da criança psicótica não são recentes: elas datam do ano de 1800. Mais que isso, a primeira proposta de tratamento de uma criança psicótica foi educativa.

Jean Itard era um médico, discípulo de Pinei, para quem a criança encontrada em um bosque da França - Victor - era idiota porque havia sido abandonada, e não o contrário, como diziam seus contemporâneos, para quem Victor havia sido abandonado porque era idiota. "Na horda selvagem mais errante, bem como na nação européia mais civilizada, o homem não é senão aquilo que o fazemos ser: necessariamente criado por seus semelhantes, ele contraiu deles seus hábitos e necessidades; suas idéias não lhe pertencem; ele gozou da mais bela prerrogativa de sua espécie, a suscetibilidade de desenvolver seu entendimento pela força da imitação e pela influência da sociedade", afirmou Itard em 1801 (1994, p. 3). Especialista na educação de surdos-mudos, dispôs-se então a tratar daquela criança, aplicando-lhe o que era chamado na época de tratamento moral. Era moral porque incidia não sobre o corpo, mas sobre as faculdades mentais.

Victor foi apontado como uma criança idiota, uma vez que essa era a grande categoria que servia, na época, para abrigar toda sorte de deficiências mentais. Da perspectiva histórica com a qual estamos instrumentados, porém, Victor seria, provavelmente, diagnosticado como psicótico.

No que consistia esse tratamento? Consistia em educar. Por que e para que educar crianças até então consideradas inaptas para a vida social? Quétel e Pétel (1987) afirmam que estava em jogo uma experiência científica. Pode-se, porém, aventar uma outra hipótese para explicar o furor educandi de Itard. O ideal educativo, no início do século XIX, já estava instalado na forma como hoje o conhecemos. Vinha, desde o século XVII, atribuindo o contorno, a existência e o sentido que o discurso social designa para a criança, como nos mostra Philippe Aries (1981). Este autor demonstra que o novo sentimento de infância gestado a partir do século XVII é totalmente solidário com um novo ideal educativo, construído de modo a atender às exigências político-sociais de uma burguesia nascente. Essa nova articulação entre Infância e Educação é forte ao ponto de levar o psicanalista francês Guy Clastres (1991) a afirmar que o significante "educação" faz surgir o significante criança, que havia desaparecido. Ou seja, o discurso social moderno cria uma criança cuja consistência está no fato de ela ser submetida a uma educação nova, que implica vigilância, disciplina, segregação. Que implica o surgimento da escola. Nossa criança é, por definição, escolar.

Assim, nos albores da Psiquiatria Infantil - Jean Itard é considerado seu iniciador -, assiste-se à tentativa de tratar o jovem Victor de Aveyron ensinando-o a humanizar-se.

O relato feito por Itard a respeito desse tratamento revela que este foi um grande fracasso. No entanto, não deixou de destacar em Victor um aspecto fundamental, muito importante para nossos propósitos: Itard afirmou a integridade da humanidade de Victor, no dizer de Postei e Quétel, ou, se quiserem, supôs, sem saber o que fazer com isso, ser Victor um sujeito, que poderia vir a responsabilizar-se por seus atos, ou que poderia vir a falar em nome próprio.

Itard fracassou, mas nem por isso deixou de fazer escola. "Depois dele, os pedagogos e médicos que se dedicaram aos deficientes conservaram, de sua tentativa, apenas a apologia do adestramento", afirmam Postei e Quétel (1987, p. 511). E por que, pode-se perguntar? Provavelmente porque havia algumas crianças que respondiam a esses esforços adestradores, e também porque se notou, desde o princípio, que havia, entre as crianças idiotas, algumas que apresentavam o que alguns chamaram, em obras publicadas na segunda metade do século XLX, de "qualidades intactas". Para muitos educadores, o esforço humanizador de Itard cedeu lugar a esses esforços de adestramento, que desembocaram, na atualidade, em métodos educativos para crianças autistas que chegam ao absurdo de propor que não se fale com elas, já que isto as perturba, e de afirmar que o importante é ensiná-las a atravessar a rua, fechar botões e ir ao banheiro sem perturbar os adultos. Assim, o ramo educativo da Psiquiatria Educativa veio desembocar nos métodos de adestramento que conhecemos.

Bem, mas e o "lado humanizante" do trabalho de Itard?

Este também fez escola, pelo menos de modo pontual. Assistimos, no decorrer de todo o século XIX, a algumas tentativas de tratar efetivamente aquelas crianças deficientes que eram localizadas como diferentes, ao lado naturalmente das inúmeras práticas asilares que não passavam de esforços de concentrá-las em depósitos "humanos". Dessas tentativas de tratar; registram-se até mesmo algumas muito próximas dos modernos ateliês ou oficinas de trabalho, nos quais se propunham atividades musicais, ou então passeios e outras ações cuja base era a suposição de que ali estavam seres humanos. Pode-se dizer, talvez, que essas práticas, de mãos dadas com a Psicanálise nascente no início do século XX, vieram resultar nas propostas de tratamento psicanalítico para crianças psicóticas que surgem no início dos anos 301 .

A partir daí, começam a proliferar os tratamentos, agora de toda espécie, dirigidos a todo tipo de desadaptação exibido pelas crianças. No final dos anos 60, o excesso de "banhos de tratamento" recebeu uma crítica contundente e rigorosa na pena de Maud Mannoni (1977). Em "Educação Impossível", Mannoni descreve com clareza o fracasso da Pedagogia - para todas as crianças do mundo contemporâneo - o que explica para ela o enorme contingente de crianças com problemas os mais variados, mas principalmente de aprendizagem, que aportaram nos inúmeros centros de tratamento criados na época. Esses centros de tratamento, na França, eram - e não podiam deixar de ser, dado que os problemas eram, na imensa maioria, de aprendizagem - centros médico-pedagógicos.

Mais uma vez, os dois eixos em discussão ressurgem enodados: tratamento e educação nasceram juntos para cuidar das crianças com problemas graves, e agora enlaçam-se novamente para cuidar dos fracassados escolares. Parece não ser mesmo possível desenlaçá-los, já que a criança moderna é por definição escolar.

Para a criança psicótica, porém, nada de muito sistemático em matéria de educação foi proposto na época. A exceção deve ser aberta para Bonneuil, uma das poucas tentativas de propor uma escola que, se não estava propriamente enodada com o tratamento, estava porém comprometida com a Psicanálise. Mannoni escreve: "O paradoxo de Bonneuil é que não se pratica aí a Psicanálise (isso é concomitante à recusa da instituição); mas tudo o que aí se faz baseia-se rigorosamente na psicanálise, à qual não se recorre como técnica de ajustamento mas, outrossim, como subversão de um saber e de uma praxis" (1977, p. 16).

Bonneuil não é uma escola especial, no sentido de que se dedicou a criar métodos especiais de ensino de crianças psicóticas. Está orientada por um grande princípio, cujo principal ingrediente não é o fazer pedagógico cotidiano, mas é uma posição ética e política em relação à participação dos diferentes nas oportunidades sociais.

Neste ponto, Mannoni está sendo absolutamente solidária com a prática da inclusão social do diferente, um movimento que vem ganhando vigor a partir dos anos 70 e culmina com a Declaração de Salamanca, de 1994, que afirma ser a educação um direito de todas as crianças portadoras de deficiências.

Os movimentos de inclusão escolar são muito provavelmente filhos legítimos da luta antimanicomial. Se para os adultos esta última representou a queda dos muros dos hospitais e o esforço de integração na comunidade, para as crianças a luta antimanicomial representou a bandeira da integração escolar e a guerra contra as escolas especiais, segregacionistas segundo aquela corrente.

Assim assiste-se hoje à retomada da escolarização da criança psicótica. Inevitável, já que toda criança contemporânea precisa ser escolar; necessária, já que elas possuem ilhas de inteligência que, se não desenvolvidas, atrofiam-se; mas cuidadosa, para que a resistência natural que os professores lhes oporão não termine por fechar definitivamente as portas da escola para essas 2 crianças2.

É necessário, porém, avançar um pouco mais. O que se quer propor não é apenas a luta política pela inclusão da criança na escola, direito de todo cidadão. O que se quer não é apenas fazer a crítica das práticas pedagógicas, que alienam - no sentido marxista da palavra - muito mais do que ensinam. O que se quer propor é que se tire o máximo proveito do potencial terapêutico presente em todo e qualquer ato educativo voltado para um sujeito e não para o adestramento de uma criança. Neste sentido, a educação será o grande coadjuvante do tratamento psicanalítico, ou seja, é o psicanalista que irá pedir ajuda ao educador, e não o contrário, como acontece atualmente.

De fato, deve-se lembrar aquilo que Freud já mencionava: nossas melhores virtudes nasceram sobre o humus de nossas piores disposições3. Esta afirmação, que cem anos atrás representava um golpe narcísico, já pode agora ser devidamente reprocessada. Pode-se ler aí que a Educação - entendida aqui em sua acepção mais amplamodela o humus de nossas piores disposições - nossas pulsões - e as transforma em nossas "virtudes". Possui, por isso, valor estruturante. Ao coibir, "libera", dá forma à manifestação subjetiva que se torna possível.

 

A EDUCAÇÃO TERAPÊUTICA

Este é o nome que está sendo dado a um conjunto de práticas que aliam educação e tratamento para crianças com graves distúrbios de desenvolvimento, ou se quiserem, crianças cuja posição na rede da linguagem, cuja inscrição no registro simbólico apresentam falhas ao ponto de ficar comprometida a sua constituição subjetiva, sua relação com o outro e sua circulação no campo social: psicóticas, autistas, sindrômicas, ou algumas portadoras de deficiências para quem tais falhas simbólicas acabam por se intalar.

Pode-se dizer que há três eixos em torno dos quais gira a Educação Terapêutica: a inclusão escolar, o eixo simbólico e a operação educativa propriamente dita.

O primeiro eixo dessas práticas solidariza-se também com Bonneuil, com a luta antimanicomial e com a política da inclusão escolar. A criança psicótica precisa ir à escola. Para isso, acredita-se ser necessária uma preparação à entrada na escola, e em seguida uma integração "pilotada", acompanhada muito de perto.

Mas por que a integração em uma escola, ou, o que dá no mesmo, a circulação social, pode ser terapêutica? Pode-se responder a esta pergunta introduzindo a hipótese de que, ao dar à criança um lugar na escola, está sendo feita uma "atribuição imaginária de lugar social".

Em Bonneuil, as crianças costumam fazer trabalhos nas vizinhanças. Uma delas, em seu primeiro dia de trabalho em uma construção, foi juntar-se na hora do almoço aos pedreiros, ao lado de seu acompanhante da escola. Pondo-se a comer com as mãos, recebeu de um pedreiro a seguinte invectiva: "aqui os seres humanos comem com garfos. Bichos, que comem com as mãos, ficam lá longe, no canto!". O menino aceitou o garfo que lhe deram e passou a comer tranquilamente com ele. Até então, muitos em Bonneuil já haviam tentado inúmeras vezes ensiná-lo a comer com o garfo, inutilmente. Um pedreiro, não "psi", como diz Mannoni, extraiu sua eficácia do lugar que ocupava na rede social, e dali indicou claramente à criança o dela.

Tais intervenções designam um lugar de sujeito a essas crianças, que poderão aceitá-lo, caso queiram ou possam. Não deixam de ter, porém, um certo caráter artificial, pois há uma espécie de aposta imaginária nas capacidades da criança. Embora situe um lugar para essa criança, fazem-no a partir do olhar do adulto, e por isso se pode dizer que há ainda, nessa dimensão da educação terapêutica, uma prevalência do imaginário sobre o simbólico. Há apenas uma aposta do adulto, mas essa criança precisará juntar recursos para responder a essa imagem que lhe estão emprestando.

Para que essa imagem ganhe consistência, a Educação Terapêutica terá ainda de operar francamente na dimensão simbólica: este será seu segundo eixo, no qual não se lança mão das relações entre as práticas de tratamento e as educativas, mas das relações estruturais que articulam sexualidade e conhecimento, sujeito e Eu, significante e palavra.

Embora não seja possível afirmar que a Psicanálise possua uma teoria da inteligência, Freud sempre ocupou-se de pensar sobre o modo como um ser humano pensa, e até mesmo como se organizam as principais estruturas responsáveis por essa atividade. Desde 1895, no "Projeto de uma Psicologia para neurólogos", sua preocupação voltava-se para questões da seguinte natureza: como se inscrevem, no plano neurológico, as impressões colhidas pela percepção, ou seja, como se marcam no cérebro as imagens e representações do mundo? Desde então, buscava uma teoria da memória, coisa que o ocupou até 1924, quando escreveu "O Bloco Mágico". Também no texto "A Negação", verifica-se a preocupação de Freud com o modo como se estabelecem os juízos de atribuição e de afirmação. Finalmente, em "O Ego e o Id", de 1923, observa que a Psicanálise não havia abordado até então com a devida atenção os processos conscientes, mas isto não significava que não tivessem importância (Freud, 1973a,b,c,d).

Freud dedicou-se especialmente ao estudo do modo como se constrói o desejo de saber. Para ele, a pulsão de saber infantil é "atraída - e talvez despertada - pelos problemas sexuais em idade surpreendentemente precoce e com insuspeitada intensidade", escreve Freud em "Três ensaios para uma teoria da sexualidade" (1973e, p. 1207). As intermináveis perguntas das crianças, afirma ele no texto "Uma recordação infantil de Leonardo da Vinci", de 1910, são de fato rodeios em torno da curiosidade sobre as origens, despertada quando vêem nascer seus irmãos (Freud, 1973f). Essas investigações têm porém um só destino: são recalcadas e substituídas pelas investigações sobre os conhecimentos, que guardarão no entanto as marcas de sua origem sexual. Foram essas formulações que levaram Octave Mannoni a afirmar que a inteligência se faz com restos da sexualidade.

Encerrado o período das investigações sexuais infantis, as crianças poderão voltar a atenção para o conhecimento e a constituição de novos saberes.

Uma outra resposta à pergunta "o que quer saber uma criança" é dada por Piera Aulagnier (1967): uma criança pergunta porque quer saber sobre o desejo. Todo desejo de saber é desejo de saber sobre o desejo do Outro, afirma ela.

Pode-se dizer o mesmo de um outro modo: uma criança quer saber sobre o objeto do gozo do outro, porque goza com o objeto do gozo do outro. Nada mais claro do que a estrutura do Édipo para demonstrar isso, como afirma Jerusalinsky (1996): um filho deseja a mãe porque ela é o objeto de gozo do pai. O problema é que, quando envereda pelos caminhos do saber sobre esses objetos libidinizados pelo outro, não pode gozar com eles, porque gozo e saber estão irremediavelmente separados, como ensina Lacan em "Kant com Sade" (1963). Não será por isso, porém, que um sujeito irá desistir. Ao contrário, a impossibilidade de encontrar seu objeto de gozo, perdido para sempre já que, se goza, não sabe, e se sabe, não goza, impulsionará uma busca incessante de saber. Os homens não param de produzir saber. Haverá sempre um deslizamento assintótico, sempre um bordejamento da questão, nunca a sua realização.

Até aqui, o que se disse a respeito das relações entre conhecimento e sexualidade refere-se ao sujeito infantil neurótico. Nas crianças psicóticas, porém, essas relações não se dão do mesmo modo.

As investigações sexuais podem ocorrer de forma pontual e parcial, mas não se dão sob a égide da castração. O desejo, que se produz pelo efeito da falta, também não se constitui. O psicótico se põe em posição de objeto para o gozo do outro, por isso não quer saber sobre o objeto com o qual o outro goza. Assim, um psicótico, a rigor, nada deseja saber.

Aquilo que organiza a relação do sujeito com o significante, e permite a sua instalação, é a castração, a referência fálica. Então, o significante, enquanto função, não se organiza. O psicótico aprende eventualmente palavras, já que elas têm função instrumental. Mas não tem à disposição significantes que o representem, com os quais possa se dizer, e fazer surgir o sujeito.

Para a produção do que venha a substituir, ainda que como remendo, a função paterna, e portanto uma instalação da função significante, o tratamento se faz necessário. É preciso lembrar, porém, que significante e palavra são faces da mesma moeda: ambos estão estruturados pela linguagem. E para a instalação de palavras, "recheios", ou de um capital ideativo, como dizem os psiquiatras, a Educação é o instaimento. Uma Educação que leve em conta, porém, essa articulação entre palavra e significante, entre palavra e emergência do sujeito. Uma Educação Terapêutica. Que ofereça palavras e produções da cultura, para permitir que daí advenha algo de significante, de simbólico. Para que um sujeito possa vir a se dizer, precisará de palavras, ou da música, ou do gesto na dança ou no teatro.

Uma Educação tradicional, que busque apenas a introdução de palavras, e que pense nelas apenas em seu valor instrumental, não é suficiente. Caso fosse, bastaria colocar as crianças psicóticas em escolas, e a reversão espontânea de seu quadro estaria garantida. Este é aliás um erro muito frequente entre pais e psiquiatras: "esperemos que melhore, vamos colocá-lo em uma escola e tudo poderá melhorar", dizem às vezes.

Transmitir o conhecimento, desta perspectiva, abre por exemplo uma chance para a quebra das estereotipias, que são emergências de fala "decaídas" por falta de lastro significante. São ruínas de antigos castelos, como diz Laznick (1997). Ao contrário, dar treino é supor que a criança precisa apenas do valor instrumental das palavras e das ações. Da perspectiva da psicanálise, oferece-se o conhecimento não apenas em sua dimensão instrumental, mas como possibilidade de que este seja utilizado para separá-lo do gozo intrusivo do Outro. É um instrumento que constrói o sujeito, e não apenas uma ferramenta para o Eu.

Dois exemplos de práticas orientadas pela Educação Terapêutica:

1. A chamada é uma Chamada

Atualmente, a proposta educacional da Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida está muito mais próxima da de uma escola do que no início. Busca-se com isso ir introduzindo a criança ao universo escolar. Assim, todos os dias faz-se a chamada.

Suzana entrou no Lugar de Vida há um ano, e trouxe consigo um hábito estranho: costumava desenhar em sua própria testa um rabisco, uma cobrinha, uma marca. Fazia também desenhos que consistiam em bolas umas dentro das outras, sem muita ordem. A professora4 reconheceu nesse desenho, um dia, uma menina: a bola maior era o rosto, e as menores os olhos, a boca. "Uma menina!", exclamou jubilosamente aquela professora. Suzana incorporou então essa significação, e passou a desenhar o rosto com mais detalhes. E incluiu, pouco mais tarde, nesse desenho de menina, sua marca registrada: a cobrinha na testa. Uma inscrição originária ganhou sua extensão no significante "menina".

Na chamada, as crianças são convidadas a "assinar" seu nome ao lado do que já está escrito em letra de forma. Suzana, de início, mal prestava atenção a essa solicitação. Quando sua cobrinha surgiu na testa do desenho, passou a "assinar-se" com ela. Ao escrever, vai soletrando: Su-za-na.

Vê-se com isso que a chamada pode funcionar como uma Chamada, isto é, como um apelo ao sujeito, como uma oferta de produção de algo que é mais do que um nome vindo designar um objeto do mundo. Não se trata apenas de ensinar a uma criança seu nome e modo de escrevê-lo, esperando que ela o utilize tão somente em sua comunicação. Aqui, espera-se que o nome represente o sujeito, e se torne um significante, singularizando-o. Ou seja, que o designe como único personagem a portá-lo. A este apelo, Suzana ouviu, assinando-se com o que, embora fora do código, a representava, a marcava, conferindo-lhe um mínimo de existência no mundo. Está a um passo de curvar-se ao código da língua, pois agora escreve letras ao lado de seu nome5.

2. Permanências e transformações.

Fábio olhava a professora escrever, embaixo da produção de Suzana, o nome dela. Excitou-se, e chamou, com os sons de voz pouco claros que lhe são característicos, essa mesma professora. Em seguida, tomou da caneta que ela segurava, bateu com a mão em seu próprio peito, em um gesto típico de quem quer dizer "eu", e depois fez rabiscos parecidos com os de uma assinatura abaixo, agora, de sua própria produção de desenho. Reconheceu-se. "Um ser que pode ler sua marca, isto basta para que ele possa se reinscrever noutra parte além dali onde a gravou", afirmou Lacan6. Este movimento de Fábio vem na esteira de algumas semanas de trabalho em que se falou muito de marcas, daquilo que permanece e do que se transforma, e do que torna próprio o que cada criança faz.

Partiu-se da Psiquiatria Educativa, chegou-se à Educação Terapêutica, que é o seu inverso. A Educação não tem mais, aqui, o fim de adaptar a criança a um meio social, e de tornar o convívio com ela suportável. Tem a função de dar à criança um lugar de sujeito. De fato, qualquer educação que se preze deveria estar levando isso em conta. E quando ela obtém êxito, o que ocorreu foi justamente o enodamento de um sujeito com a pura palavra ali veiculada, ainda que o educador não tivesse isso em mente. Mas para as crianças psicóticas, levar isso em conta é necessário e crucial, e é isto que a torna terapêutica.

Agora, podemos voltar a falar em inserção escolar. Que será naturalmente difícil, pois essas crianças carregarão as marcas de suas falhas de inscrição no registro simbólico. Seu tratamento não terminou, mas já podem sentar-se, já não se mordem com frequência, podem ouvir o apelo do social, e se situam, de forma mínima, neste campo. Sua entrada na escola deverá, então, ser pilotada. Um trabalho junto à escola, e ao professor que desejar recebê-la, precisará ser construído.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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NOTAS

1 A respeito da história das abordagens psicanalíticas das psicoses infantis, ver LEDOUX, Michel H. Conceptions psychanalytiques de la psychose infantile. Paris, Presses Universitaires de France, 1984.
2 Vejam-se as consequências de não ter tais cuidados. Tomem-se, por exemplo, as experiências européias reportadas em um Colóquio Internacional realizado na Noruega sobre esse tema (Integração de jovens deficientes no ensino obrigatório na Noruega, 1983). Ali se descrevem as tentativas feitas no sentido de manter em classes regulares do ensino público algumas crianças autistas e psicóticas: elas terminaram, depois de se verificar que as escolas acabavam criando classes especiais, em que havia apenas uma criança exatamente a psicótica ou a autista, com quem o convívio se tornara insuportável.
3 Ver o artigo de Jean-Claude Filloux neste mesmo número.
4 As professoras, no Lugar de Vida, são na verdade psicólogas com formação psicanalítica, já que a Educação Terapêutica exige um tipo de escuta que o professor especializado não está formado para ter.
5 O caso de Suzana e seu acesso à escrita deverá ser abordado em um artigo no próximo número desta revista
6 Citado por ALLOUCH, Jean. Letra a letra. Rio de Janeiro, Campo Matêmico, 1995, p. 11.