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Estilos da Clinica

Print version ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.2 no.2 São Paulo  1997

 

DOSSIÊ

 

Escolarizaçao de crianças portadoras de distúrbios globais do desenvolvimento: Dados e reflexões a respeito dos aspectos envolvidos

 

 

Rogério Lerner

Psicanalista, membro colaborador da equipe do Lugar de Vida, mestrando do Instituto de Psicologia da USP e bolsista CNPq

 

 

Forjar: domar o ferro à força, não até uma flor já sabida, mas ao que pode até ser flor, se flor parece a quem o diga.
João Cabral de Melo Neto

 

Muita coisa tem sido publicada da a respeito da escolarização de crianças portadoras de distúrbios globais do desenvolvimento associados a quadros de comprometimentos na sua subjetivação, tais como a psicose ou o autismo. Entretanto, poucos são os estudos que fazem um levantamento fidedigno de aspectos importantes desta realidade, tais como o número de crianças como essas que estão freqüentando escolas, que obstáculos encontram ou com que recursos contam para superá-los. No Brasil, esta situação deve-se tanto à raridade e pouca confiabilidade dos estudos epidemiológicos e estatísticos quanto ao despreparo das escolas em geral, tanto públicas como privadas, para a recepção destas crianças nas suas classes. Seguindo a tendência da cultura da exclusão do desviante, ainda há quem acredite que, no máximo, estas crianças deveriam estar encerradas em escolas especializadas ou classes segregadas dentro das escolas normais. Chega-se a estranhar que seja possível - e mesmo produtivo - a inserção destas crianças na rede regular de ensino.

Este estudo pretende abordar aspectos determinantes do processo de escolarização da criança na intersecção das instituições psicanalítica e pedagógica, propondo uma leitura da segunda a partir da primeira.

O levantamento que aqui apresentamos foi baseado nos dados colhidos pelo Setor de Triagem da Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida nos anos de 1994 a 1996, onde trabalhamos. De todos os casos arquivados no Setor, usamos os 104 casos de crianças portadoras de algum distúrbio do desenvolvimento mais claros no tocante às questões por ora contempladas.

A tabela a seguir (Figura I) apresenta o número de casos de cada diagnóstico com que as crianças chegaram no Setor, sendo que alguns casos chegaram com mais de um diagnóstico. Por este motivo, a soma desta tabela resulta em um número maior do que o total dos casos analisados. Para a pesquisa, optamos por registrar o diagnóstico que fosse mais recorrente ou fosse baseado em maior número de sinais clínicos.

 

 

A Figura II mostra que do número total analisado (104), apenas 39% das crianças estavam frequentando escola (regular ou especial) ou qualquer outro tipo de espaço escolar (como jardins de infância ou creches) quando procuraram o serviço.

 

 

Ainda, do total de crianças em questão, 64% estavam em tratamento médico de alguma espécie relativo ao quadro de distúrbio do desenvolvimento (ainda que fosse apenas uma consulta mensal ou bimestral) no momento da procura por nosso serviço (Figura III). Com relação ao tratamento psicológico, apenas 23% das crianças tinham acompanhamento psicológico de alguma espécie (Figura IV).

 

 

 

 

Do total de crianças que tinham tratamento médico no momento de procura por nosso serviço, apenas 31% frequentavam uma instituição escolar ou similar, sendo que 69% não frequentavam. Entretanto, 54% das crianças que não tinham tratamento médico no momento em que estiveram no nosso serviço frequentavam escola, ao passo que 46% deste grupo não frequentavam.

Com relação ao tratamento psicológico, 62% das crianças que tinham alguma espécie de tratamento psicológico não frequentavam escola, sendo que 38% delas frequentavam. Das crianças que não tinham tratamento psicológico, 40% iam à escola e 60% não iam.

Nunca é demais debruçarmo-nos sobre o tema da escolarização destas crianças, avaliando a importância de seus benefícios, suas dificuldades e os riscos que cercam este momento.

O tratamento de uma criança psicótica ou autista deve ser concomitante ao acompanhamento de seus pais a respeito da situação vivida pela criança, o que se justifica pela natureza mesma da patologia. Da mesma maneira, o processo de escolarização desta criança encontra-se inevitavelmente imerso no universo de significações que seus pais podem conferir-lhe, sendo que a criança sofrerá diretamente os efeitos de tais significações.

Alfredo País (País, 1995), em um artigo onde trata dos efeitos da comunicação aos pais do diagnóstico de graves problemas de constituição biológica no nascimento de seu filho, coloca o que a gestação de uma criança representa para aqueles que a desejam: "decidir a gestação de um filho significa pôr em jogo o desejo de projetar-se no futuro através de um representante; o que equivale a uma intenção de eludir o destino inexorável de todo humano: a morte." Sobre a revelação do diagnóstico: "o filho ideal, aquele que satisfaria todas as expectativas parentais de assegurar-lhes uma 'boa' representação na eternidade nunca nascerá para nenhum pai, mas é diferente darem conta disso sem maiores problemas do que quando alguém disser, com um diagnóstico, algo que assegure que aquele que acaba de nascer 'não é o filho esperado'."

Tendo sido abruptamente impedidos de terem seu ideal representado no filho, resta aos pais conferir à criança o lugar do problema. Uma vez que isto aconteça, "cabe aos pais encontrar um saber para resolvê-lo."

País passa, então, a demonstrar como as perguntas dirigidas aos profissionais encarregados de resolver tal problema - os especialistas - contém em si algo de uma resposta. Esta resposta está marcada pela morte da ilusão do filho ideal, produzindo uma tragédia cujo destino é funesto, selando neste lugar o destino da criança. Aqui, o discurso da ciência presta-se a solapar qualquer possibilidade de os pais significarem algo da ordem de uma singularidade para seu filho, conferindo-lhe como nome um diagnóstico que o situa numa classe, no rol dos dados estatísticos. "É assim que os pais ficam orientados por um saber externo, que dificulta à criança uma circulação simbólica no meio familiar em que nasceu e, em consequência, tende a ser privado da filiação familiar."

Nossa experiência clínica leva-nos a reconhecer duas outras circunstâncias nas quais essa tendência à estruturação da tragédia apontada por País faz-se presente. A primeira refere-se ao momento no qual o casal procura um médico pelo fato de seu filho de cerca de dois anos e meio, que ainda não sabem ser autista ou psicótico, não falar. Aqui, o discurso da ciência vem repousar sobre o "mal em matéria de história" em que se encontram muitas destas crianças. Como coloca Stevens (1996), "há uma falta de historização. Os pais sofrem para contar a história de seu filho, ou então não relacionam a ela mais do que alguns elementos confusos. Às vezes isso parece à primeira vista o contrário: a mãe desenvolve sobre seu filho uma história notavelmente detalhada mas situada totalmente no campo médico, e consequentemente, no das necessidades." A especificidade deste caso em relação ao tratado por País é que a impossibilidade de construção de uma história que insira a criança na ordem familiar não foi deflagrada a partir de um diagnóstico precoce.

O segundo caso, que gostaríamos de aprofundar, refere-se justamente ao momento de escolarização destas crianças. Nossa hipótese é que poderemos compreender importantes aspectos determinantes da realidade expressa pelo levantamento ora exposto.

O que está em jogo, para os pais, quando se faz a escolarização destas crianças?

Caniza de Páez (1994) coloca que, ao trabalharmos com crianças portadoras de distúrbios de desenvolvimento, devemos considerar a integração da criança na sua família e a integração da família na comunidade separadamente, ainda que a segunda seja, em grande medida, função da primeira. A autora está chamando de integração da criança na família tudo aquilo que está envolvido na possibilidade de os pais significarem seu filho apesar do seu diagnóstico, na linha que vimos discorrendo até este momento. A integração da família, por sua vez, diz respeito à circulação social que tem lugar a partir da participação da criança - sendo assim, da família também - nas variadas esferas da vida social. A inserção da criança na escola, lugar socialmente instituído para o transcurso da infância, é paradigmática e emblemática das vicissitudes vividas por todos que jogam um papel neste processo: pais, profissionais envolvidos, legisladores e a própria criança. Caniza de Paéz coloca que a inserção, na comunidade, da família "portadora" (de uma criança portadora) de algum distúrbio global do desenvolvimento dependerá da maneira pela qual a criança tiver sido inserida no seio da sua família. Por sua vez, as oportunidades de circulação social, bem como as significações neste âmbito do que seja uma criança com algum distúrbio global do desenvolvimento, influenciam os rumos que a integração da criança na família pode assumir.

Refletindo sobre o impasse de a integração da criança portadora de algum distúrbio global do desenvolvimento dever ter lugar em escolas regulares ou especiais, Enright e Mokotoff (1994) colocam, logo no subtítulo do artigo, que a resposta a tal impasse "arma-se na singularidade" de cada caso. Isto se deve ao fato de que cada família vive sua relação singular com o problema de desenvolvimento que porta seu filho. De comum, todas têm o fato de que seu filho é representante de algo da família, de maneira que sua escolarização diz respeito à integração social da mesma. "A instituição (...) irrompe em cada família como um 'outro estranho' a ela, que pode confrontar ou enfrentar em muitos casos rituais familiares, costumes ou modos de comunicação particulares." Ao deparar-se com o social, cada família tem sua dinâmica interrogada por qualquer intervenção que não seja a repetição daquilo que vive em seu bojo, uma vez que "esta criança que os pais vêm sustentando, com dificuldades, em seu lar ou instituições especializadas, 'a salvo' do olhar dos outros, sai ao mundo para ser vista, avaliada, interpelada por pares e adultos; esta criança que os pais vêm tendo que conhecer e reconhecer como filho portador de uma deficiência, diferente do sonhado, do esperado, faz com que os pais confrontem-se agora com uma situação desconhecida e temida que lhes reedita uma velha pergunta tantas vezes repetidas: 'Vai poder... com seu problema?'" É nessa medida que "não se integra a criança ou a criança e seu terapeuta, integra-se a família em uma comunidade".

Discorrendo acerca do trabalho do Lugar de Vida, Kupfer (1996) coloca que "a reinserção escolar, no Lugar de Vida, é o alvo final, que equivale aos objetivos de diminuição do número de internações ou inserções no mercado de trabalho usados pelos serviços de atendimento e hospitais-dia para adolescentes e adultos." Segue: "A 'pré-educação' pode ainda promover uma sustentação imaginária para essa inserção social. 'Meu filho está na escola', poderá dizer a si mesmo e aos vizinhos um pai que vê seu filho sair do Lugar de Vida segurando um trabalho de sucata. O menino terá colaborado com um único gesto, o de colocar um tubo pintado -resto descartável - em uma base de papelão, fazendo-o ficar de pé. Mas o olhar que lhe dirigiu seu pai terá valor mais estruturante que seu gesto: somado a outros que lhe serão dirigidos em outras ocasiões, é agora ao menino que poderá ajudar a 'ficar de pé'".

Há uma lógica que rege a relação dos pais com seu filho. A intervenção de algum representante da ordem social que ocorre por ocasião da integração desta família acarreta uma operação sobre esta lógica. "Poder-se-ia dizer que, para a mãe de um autista, olhar seu filho produz o mesmo efeito que a contemplação da cabeça de Medusa -confrontação com a castração, para Freud, ou com a morte, para o mito. Ao analista, então, pode caber a mesma função reservada na lenda ao espelho: a de mediar o olhar, permitindo que a mãe veja seu filho através do reflexo de sua imagem no olhar do analista. Ora, não está a instituição em posição de Outro?", conclui Kupfer (1996). Tal é concepção que embasa o trabalho de acompanhamento de pais de crianças tratadas no Lugar de Vida. Os efeitos esperados da condução do trabalho a partir dessa concepção são apresentados no artigo em que Oliveira (1996) formaliza-o teoricamente: "o trabalho com os pais, sendo uma escuta, contribui para que se instale, no lugar da certeza, uma interrogação no que se refere à interpretação que eles dão aos sintomas dos filhos. Acreditamos ser de fundamental importância produzir uma virada na posição dessa criança na estrutura familiar. As intervenções com os pais possibilitam mudanças na posição que a criança ocupa: ela pode ser deslocada da posição de objeto para significante". Neste trabalho, a transferência dos pais está posta desde o início. É o manejo da transferência que permite que os pais, falando sobre as crianças, resignifiquem a posição na qual se encontram capturadas.

A transferência dos pais impõe-lhes a busca em direção ao saber. Assim, faz toda a diferença se um profissional responder a esse saber, confirmando a alienação dos pais na posição de escravos da significação técnica de seu filho, ou realizar um trabalho no qual a impossibilidade dos pais de construírem seu próprio saber a respeito do filho seja contornada. As sentenças prognósticas assumem valor de profecias oraculares quando são emitidas pelo especialista colocado no lugar do saber, mas este mesmo poder que lhe é conferido pode permitir-lhe conduzir os pais rumo à elaboração das significações possíveis para a criança, que não expressem a repetição da sua falência como representante do ideal dos seus pais. A instalação da verdade científica no lugar daquilo que os pais poderiam imaginar para seu filho garante sua manutenção no lugar do problema perante os pais.

As perguntas dos pais no momento da escolarização das crianças são análogas às perguntas que fazem aos especialistas que diagnosticam uma síndrome congênita. "Ele vai aprender a ler?", "Saberá defender-se dos colegas?", "Vai saber comportar-se com a professora?", "Será que vão zombar dele?" são perguntas que revelam uma resposta dos pais, resposta relativa à posição que a criança ocupa para eles. O risco de repetição da instalação da criança no lugar do problema está sempre presente, mas a formulação da pergunta e seu endereçamento a um profissional representam uma oportunidade de inserção muito importante. Assim, é fundamental que a pergunta dirigida ao profissional seja transformada em um convite aos pais para falarem dos seus filhos. É nessa fala, acompanhada pelo profissional, que no lugar da certeza da falência do ideal pode ser construída a dúvida dos pais com relação a seu filho, tornando legível como produção eficiente por parte da criança o que era antes interpretado como puro atestado de deficiência. Concordamos com Oliveira na caracterização deste trabalho, a partir da psicanálise, como sendo uma escuta dos pais por parte do profissional no sentido de esclarecer-se que não se está sugerindo, pelo menos imediatamente, o tratamento psicanalítico dos pais.

Nossa opinião é a de que a escolarização das crianças portadoras de distúrbios globais do desenvolvimento é fundamental mas deve ser assistida pelos riscos que este momento de interrogação das certezas familiares por parte de uma instância social, um Outro, apresenta aos pais e à criança. Ressalte-se a importância de que os profissionais trabalhem sempre na suposição de um sujeito na relação com as crianças e trabalhem na construção, junto aos pais, da suposição de um sujeito no seu filho.

Na nossa prática clínica cotidiana, assistimos a várias situações que se montam a partir do momento de escolarização da criança. Frente à angústia que uma criança autista ou psicótica pode causar em um professor ou diretor de escola, é frequente a recorrência à ordem que se presta a, por um lado, dar uma significação possível para aquilo que vive a criança (e o adulto que se propõe a ser seu interlocutor) e, por outro, utilizar termos que sejam frios e distantes, abrandando a urgência que os comportamentos muitas vezes esquisitos das crianças geram: a ordem médica. Ou seja, estamos apontando para um uso que se faz dos termos e significados atribuídos pela medicina às crianças em questão.

Não é raro professores que recebem crianças do Lugar de Vida ligarem para os profissionais da instituição responsáveis pelo caso para "perguntarem" o diagnóstico da criança: "Doutor, estou ligando para saber o que se passa com Y. Ela... é psicótica, não é?" Ou: "Gostaria de discutir o caso de X., que me parece hiperativo." Muitas das vezes, o que está acontecendo é uma tentativa de inviabilização do acesso da criança à escola. Aqui, pode estar ocorrendo a confirmação para os pais da criança de que seu filho é realmente incapaz. E sempre será, uma vez que o selo que lhe garante este lugar está repetido mais uma vez: o diagnóstico. A recusa da escola em receber uma criança autista ou psicótica, embasada no discurso médico-pedagógico, tolhe aos pais a oportunidade de haverem-se com a elaboração da posição em que a criança está encerrada.

A legislação que determina e regulamenta a escolarização das crianças portadoras de distúrbios globais do desenvolvimento institui, entre outras modalidades, as classes especiais. Estas classes são bastante difundidas em nosso meio, de maneira que temos de haver-nos com a imposição (em alguns casos) ou a oportunidade (em outros casos) de que a classe especial seja a única inserção possível da criança portadora de distúrbios globais do desenvolvimento na escola.

No âmbito da questão mental, diferentemente da questão física, a regulamentação das classes especiais rege que sua criação justifica-se pela escolarização de crianças deficientes mentais moderados (educáveis), diagnosticadas por uma junta de profissionais ou, na impossibilidade de compô-la, por um psicólogo. Nessa medida, diagnosticar uma criança de qualquer coisa que não seja deficiente mental significa impedi-la de frequentar a escola, uma vez que tal classe é a única possibilidade de inserção desta criança. Notamos, com frequência, que determinadas escolas escolhem para qual profissional pedir a realização do diagnóstico que servirá de base para o laudo sobre a criança: há psicólogos que costumam diagnosticar deficiências mentais mais graves ou mais leves. Quando a escola não consegue suportar uma criança portadora de distúrbios globais do desenvolvimento, pede para que o laudo seja feito pelo psicólogo "mão pesada". Quando a criança não representa problema, qualquer outro laudo parece servir.

Ocorre que, hoje em dia, o próprio diagnóstico de Deficiência Mental é largamente utilizado de maneira indiscriminada. O ano de confecção da legislação que regulamenta a educação especial é 1973. A base sobre a qual foram estabelecidos seus critérios diagnósticos foi a Classificação Internacional da Doenças - CID - da Organização Mundial de Saúde de então, que nesses anos passados já revisou e colocou em questão esta concepção diagnostica, tendo-a substituído por formas diferentes de estabelecimento do diagnóstico. A CID teve sua primeira edição em 1958, sendo revisada pela oitava vez em 1967, pela nona vez em 1978 e pela décima vez em 1993, sendo esta a versão atual.

O diagnóstico de Deficiência Mental trata fundamentalmente da ordem do desempenho da criança, deixando intocada a natureza específica da relação que estabelece com o mundo que a cerca. O desempenho em questão, é certo, está principalmente ligado à capacidade de uso instrumental e aquisição de conhecimentos por parte da criança, o que revela uma concepção marcadamente presente na regulamentação do ensino especial: a de que escola é lugar de aprender. A socialização das crianças até é mencionada na legislação, mas de maneira cindida da educação "propriamente dita", restringindo o papel da escola à aquisição de conhecimentos. Entretanto, estamos de acordo com Caniza de Páez na sua consideração de que não faz sentido separar a socialização da educação, para crianças na idade em questão. Da mesma maneira, a Declaração de Salamanca, documento que divulga os resultados da Conferência Mundial sobre Necessidades Educativas Especiais ocorrida em 1994, insere a educação de crianças portadoras de distúrbios globais do desenvolvimento no âmbito da educação para todos, ou seja, no âmbito da cidadania. Ainda, o conceito aí formulado como "escola integradora" revela a necessidade de que a escola seja veículo de integração social, contornando a concepção da aprendizagem como tendo um fim em si mesma, dissociado da integração social.

A razão de ser de uma escola, ou seja, as determinações sociais políticas que determinam sua criação, estabelece o que se pode esperar de um professor, ou melhor, o que cada professor pode esperar de seu próprio trabalho. Uma vez que o vetor primordial na constituição das nossas instituições escolares seja a aquisição de conhecimentos, os professores encontram-se perdidos ao depararem-se com crianças que aprendem de uma maneira diferente daquela regida pela cartilha, crianças que não aprendem ou ainda crianças que estão na escola para viverem algo diferente daquilo que se habituou chamar de "aprendizagem". É como se os professores não pudessem reconhecer sua identidade profissional na tarefa que lhe impõe o trabalho com crianças portadoras de distúrbios globais do desenvolvimento. Mais uma vez, a criança ocupa o lugar da falência do ideal, sendo que na impossibilidade de uma significação por parte de um saber instituído que lhe confira o estatuto de sujeito, fica esparramada no estatuto da exterioridade científica.

Diante do que expusemos acima, podemos construir algumas hipóteses a respeito do quadro revelado pela pesquisa estatística.

Em primeiro lugar, deve-se indagar com que empenho os profissionais que recebem crianças portadoras de distúrbios globais do desenvolvimento fazem a indicação de escola, o que pode associar-se às questões vividas pelos pais no sentido de dificultar o acesso da criança à circulação social. A maioria das crianças em tratamento médico ou psicológico não freqüentavam escola quando procuraram o Lugar de Vida. As crianças que apesar de terem tido tratamento médico nunca estiveram na escola são 33,7% do total. Com relação ao tratamento psicológico, esta porcentagem é de 12,5%.

"Em segundo lugar, quando a escolarização não é acompanhada por um profissional - seja um clínico, seja um educador - que esteja atento aos cuidados relativos à elaboração da posição da criança para seus pais, este momento passa a representar sérios riscos de confirmação da posição da criança no lugar do incapaz. Como tal, a criança só poderá "falhar" na escola, até o ponto em que todos os custosos esforços no sentido de tal iniciativa sejam abandonados: as crianças que chegaram a freqüentar uma instituição escolar ou congênere mas não continuaram são 21% do total.

O papel da escola também entra como uma determinante neste quadro: faz toda a diferença os pais encontrarem uma equipe realmente capaz e disposta a acolher seu filho portador de distúrbios globais do desenvolvimento ou encontrarem, pelo contrário, uma equipe que até receba seu filho, mas faça de tudo para evidenciar-lhes a inviabilidade de tal psicótico, autista, sindrômico ou deficiente mental não-educável permanecer e beneficiar-se do contexto escolar.

 

CONCLUSÃO

Nossa intenção era a de expormos um quadro representativo da situação vivida pelas crianças portadoras de distúrbios globais do desenvolvimento no tocante ao seu processo de escolarização. Na tentativa de construir hipóteses que expliquem a realidade verificada, discorremos acerca dos complexos aspectos envolvidos nesta problemática.

Esperamos ter evidenciado que no processo de escolarização de uma criança estão envolvidos, além de si mesma, seus pais, os clínicos encarregados do caso e os educadores. Impõe-se a necessidade de que a noção de escolarização seja reavaliada em todos os âmbitos, bem como a influência dos profissionais neste processo: devemos trabalhar, sempre, com a suposição de que a criança é um sujeito, para além de sua sujeição às incapacidades que lhe sejam previstas.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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