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Estilos da Clinica

Print version ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.2 no.2 São Paulo  1997

 

ARTIGO

 

Limites da intervenção analítica diante da vitimização infantil1, 2

 

 

Silvina Gamsie

Psicanalista de crianças. Coordenadora da Área de Interconsulta do Serviço de Psicopatologia do Hospital de Niños "Ricardo Gutierrez" de Buenos Aires. Supervisora Clínica nos Serviços de Psicopatologia Infantil em Hospitais da cidade de Buenos Aires, Argentina

 

 

Não só os culpados morrem, os inocentes também. Contrariamente ao discurso que proclamava um ideal de infância protegida, sustentado no bem-estar alcançado no pós-guerra, observamos hoje o crescente desamparo das crianças. Paradoxalmente, quando se acreditava que os castigos que atormentavam a infância estavam finalmente distantes - poucos eram os que, no começo do século, chegavam à idade adulta - neste final de século, a morte das crianças nos hospitais nos levam a recordá-los.

As crianças morrem de câncer, desnutrição, Aids e infecções que acreditávamos erradicadas; mas também por ser objeto da violência dos adultos. Se, tempos atrás, o imaginário coletivo justificava o injustificável com um "por algum motivo será", a qual justificativa poderá recorrer para evitar que os inocentes também morram, e morram espancados?

Referir-se aos limites de nossa intervenção diante da vitimização infantil3, nos convoca a repensar nossa posição diante do horror que esta produz. Particularmente, porque a criança é situada em relação a certas expectativas compartilhadas. Assim, não se espera que um ser humano morra, não, ao menos, antes que seus progenitores. É ainda menos esperado que morra em suas mãos.

Quando ocorre um episódio com estas características, a tradição de nosso hospital, com uma série de normas estabelecidas, consiste em acionar uma equipe integrada por uma assistente social, um médico clínico e um membro de interconsulta em Psicopatologia. Cobertos assim os aspectos clínicos e o estudo do contexto social e familiar, fica conosco a tarefa de tentar restituir nestes progenitores a dimensão perdida de uma infância ideal. Testemunhar os vestígios de uma suposta vitimização infantil, envolve sempre um forte incômodo. Porque além do caráter das lesões em si, não há uma certeza imediata de que se trate efetivamente de uma agressão. Os adultos envolvidos - em geral os pais ou familiares próximos - não costumam relatar os fatos tal como estes ocorreram. Ocultam, tergiversam, dissimulam o ocorrido. E diversas versões de um mesmo episódio vão se entrelaçando à medida que o tempo da internação se prolonga.

Em relação aos termos em que estamos habituados a intervir como analistas, torna-se difícil, quando não impossível, precisar, nestes casos, uma demanda que situe um sujeito que assuma alguma responsabilidade, ou que, apareça demonstrando alguma preocupação. Me refiro ao fato de que nos pais destas crianças, freqüentemente não há nada que os angustie ou lhes retorne sob a forma de uma pergunta. Eles nos procuram, é verdade, mas sem implicar-se nas agressões das quais são agentes; não se inquietam sequer por aquilo no que evidentemente estão tomados e tornam-se, de alguma forma, também vítimas. Não encontramos, infelizmente, nada da ordem de um "Não sei o que me ocorre" ou "Não posso impedir-me de espancá-la? " ou ainda "Como evitá-lo? ".

O que situa toda a dificuldade é: como posicionar-se quando alguém não se implica diante do que, por estar em risco a vida de um terceiro indefeso, haveria urgência em constituir como sintoma?

A demanda de cura de um corpo não dá lugar, por si, a uma interrogação. Na maioria das vezes, o fato de espancar uma criança aparece como algo a ser ocultado por ser simplesmente objeto de uma sanção social. Resta saber se é possível ou não, nestas condições, fazer deste não-lugar, um espaço acessível à nossa intervenção.

O incômodo não se apresenta, a princípio, em relação à reprovação im- plicada já na denominação de vitimização infantil. A questão da decisão a ser tomada, e inclusive, as implicações punitivas desta decisão, apresentam uma dificuldade muito maior, e até mesmo certa inquietude. Mas como analistas de crianças, temos presente a interdição de fazer deles o objeto de nossos caprichos. É uma das conseqüências da função normatizante do Complexo de Édipo, que institui na morte do pai que nem tudo é permitido. Porque há castração, o gozo não é permitido. A proibição do incesto recorda aos adultos que a fronteira que separa as gerações não deve ser transposta, e que poderia sê-lo.

Assinalemos, em relação a isso, que o conceito de proteção à infância modificou-se ao longo do tempo, em nossa cultura. E que existe atualmente pelo menos a intenção explícita de que o castigo ou o abandono infringido a um menor fique registrado, merecendo uma penalização. Há limites estritos, e vemos que no artigo 19 da Convenção dos Direitos da Criança - que foi recentemente incluída na reforma da Constituição - são mencionadas as ações que deveriam ser tomadas pelo Estado a fim de prevenir "qualquer tipo de abuso físico, mental, descuido, trato negligente, maus tratos, exploração, enquanto a criança se encontrar sob a tutela dos pais, de seu tutor ou de qualquer outra pessoa que a tenha sob sua responsabilidade". Não se trata somente de uma condenação moral, mas de uma exigência de que sejam tomadas medidas efetivas na realidade.

Pelo fato de pertencermos ao Hospital de Crianças, atuamos em uma dessas instituições nas quais uma legislação ainda não implementada com clareza -por não ter sido ainda promulgada a Lei de Violência Familiar- nos obriga a tomar todas as precauções necessárias para detectar e atuar de modo a garantir a proteção do menor.

Não é a detecção em si de uma suposta vitimização infantil o que constitui o problema maior. Ainda que não seja sempre simples e possa, às vezes, ficar dissimulada como um acidente. A verdadeira dificuldade se apresenta em seguida à sua comprovação, quando as expectativas institucionais nos apressam a definir uma direção de intervenção. Assim, à problemática de intervir quando não aparece uma demanda por parte dos pais, se associa a carência de critérios legais aceitos por parte da instituição. Porque apesar dos anos transcorridos, não foram estabelecidos mecanismos espontâneos que sirvam de elo com a instituição judicial, e lhe permitam ordenar, processar e acelerar a informação legal, dando lugar à possibilidade de uma ação conjunta.

Um dos efeitos palpáveis desta ausência, é que muitas vezes nossa intervenção fica homologada a uma simples imputação formal do fato. Nos convertemos em um tipo de detetives, peritos em determinar a existência real da vitimização, e mais ainda, nos encarregamos de denunciá-la. Mas permanecemos na incerteza de ignorar com exatidão a quem irá dirigida nossa denúncia, como será recebida, nem o que se deduzirá de nossos relatórios. Também não podemos antecipar com exatidão as conseqüências que as decisões tomadas a partir dos relatórios terão sobre os menores vitimizados. E isso porque apesar de que as normas tenham sido estabelecidas há muito tempo, a instituição em seu conjunto vacila em apropriar-se delas. As normas são consideradas privativas a algum grupo específico, como o "Comitê de Maltrato", ou àqueles que, por sua posição no hospital, são chamados a intervir nos referidos casos: os clínicos ocasionais, os membros do social, os da equipe de interconsulta em Psicopatologia, ou aqueles de consultórios externos que, pela curta idade da maioria das crianças vitimizadas, atenderiam aos pais no caso de que concordassem com isso.

Estas normas são desconhecidas pela maioria dos pediatras. Muitas vezes, eles são levados a mentir aos pais sobre o estado de seus filhos, procurando rastrear através da mentira-verdade a origem verdadeira das lesões. Ainda quando a partir dos critérios da medicina legal está claro que certo tipo de feridas não coincide com o que se relata delas, o estupor e a paralisia que a agressão provoca, impedem, freqüentemente, desmascarar a tentativa de acobertá-la. Posto que fazê-lo eqüivale a uma acusação, e o médico desconhece as conseqüências que esta pode chegar a ocasionar.

Em relação a esta demanda social que implica em que nem tudo é permitido, que não se pode fazer qualquer coisa àqueles que, por ocupar o lugar de objeto na estrutura, tendem suas vítimas, como fazer para que nossa intervenção não confirme estas crianças em uma posição de submissão? Trata-se em geral de crianças que não dispõem plenamente da palavra, devido à sua idade, ou que se encontram sem recursos diante de um sadismo que as priva da mesma. São as marcas em seus corpos as que falam, as que fazem falar, as que nos convidam a tomar a palavra por elas.

Por isso, a cada novo caso, reaparece a necessidade de esclarecer o que motiva esses pais a trazer seus filhos ao hospital. O que se erige, nesta oportunidade, como limite à morte e que não poucas vezes é ultrapassado como informam quotidianamente as páginas dos jornais? O que leva alguém a tornar público uma vitimização, seja aquele que realiza o ato ou que funciona como cúmplice - ativo ou passivo - vítima por sua vez, testemunha muda, aterrorizada diante do mesmo? Sem dúvida, há neste tornar público, neste vir ao hospital, um apelo ao Outro. O que não exclui a necessidade de precisar se esse chamado se dirige a uma instância capaz de deter uma compulsão, um ritual que adquiriu a forma de gozo irrefreável, ou se trata-se simplesmente de uma busca de reparação de um corpinho no qual prolongar a agonia.

Quanto a isso, a casuística permite distinguir uma grande variedade clínica de traços e situações, cada uma apresentando, evidentemente, certa singularidade. Mas a intolerância do adulto ao choro e ao que é experimentado como uma demanda avassaladora, se verifica em todos os casos, encontrando-se na origem de um tipo de vazio intolerável, que atua como mola propulsora que busca a qualquer preço calar a queixa infantil.

Em Los delincuentes por sentimiento de culpabilidad (cf. Vários tipos de caracter descubiertos en la labor analítica), Freud assinala que algumas crianças se comportam às vezes de modo a provocar a punição dos pais. Isso é extensível aos pais que procurariam o alívio de um castigo ao recorrer à instituição? Poder determinar qual é a relação com a culpa e com o sentimento de culpa dos pais agressores, avaliar como operou neles a proibição, a elasticidade de seus limites, seu rigor, são questões decisivas a considerar.

Às vezes encontramos algo similar ao "não fui eu" das crianças pequenas que, ao negar a responsabilidade, procuram renegar a realidade efetiva do fato ocorrido. Outras, as acusações proliferam, e as suspeitas recaem sobre figuras diversas. Sem um sinal de culpa, de mal-estar, de sofrimento, é impossível conceber a construção de um mínimo espaço de reflexão e intervenção que leve em conta o sujeito. O que situa os limites da viabilidade de qualquer aproximação analítica a um adulto agressor.

Para concluir, ressaltarei que freqüentemente percebemos no recurso à Justiça - que toma obrigatoriamente o caminho de um chamado à Lei encarnada na instituição judicial - a produção efetiva de um alívio na família. Por isso, acreditamos que uma relação mais fluida com os profissionais do âmbito judicial, que coordene as ações entre ambas instituições e delimite nossa atuação, permitirá evitar que aquilo que se quer prevenir, o desamparo ou o dano de um menor, se converta, por descuido ou omissão, em uma nova instância de castigo.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FREUD, S. (1973). Vários tipos de caracter descubiertos en la labor analítica. In: Obras Completas. Madrid: Biblioteca Nueva, vol. III, p. 2.413 - 2.428. [1916]         [ Links ]

 

NOTAS

1 Artigo publicado em Psicoanálisis y el Hospital - publicación semestral de practicantes em Instituciones Hospitalarias, n. 6, dezembro de 1994, p. 62-66.
2 Optamos por traduzir "maltrato infantil" por "vitimização infantil" (N.T.).