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Estilos da Clinica

Print version ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.2 no.2 São Paulo  1997

 

ARTIGO

 

O gravador que gravava o que lhe dava vontade

 

 

Norma Susana Filidoro

Membro da equipe de Psicopedagogia Clínica do Centro Dra. Lydia Coriat - Buenos Aires, Argentina

 

 

Na primeira entrevista que realizamos, Miguel, de 9 anos, se interessa por um livro com figuras de animais. Nomeia, olha e aponta os animais. Se detém na imagem de um leão. A partir deste momento, começa a se constituir algo que a princípio parece uma cena de jogo. Aproxima seu dedo da boca do leão, se sobressalta, retira a mão bruscamente, dizendo: "Morde!" e dá risada. Repete a seqüência algumas vezes e eu o acompanho em seu susto e na risada. Em seguida me pede que seja eu quem coloque o dedo, advertindo-me: "Cuidado que morde!". Fazemos isso várias vezes: ele põe o dedo... depois eu... até que... Miguel sai correndo! Derruba sua cadeira e se esconde agachando-se sob outra cadeira do consultório. Imóvel, encolhido, com cara de horror, grita que o leão vai comê-lo. A cena de jogo se apagou deixando-o à mercê de um terrível monstro devorador.

Esta cena que acabo de ilustrar se reproduz várias vezes com idêntica estrutura quando trabalhamos com crianças psicóticas. Às vezes o que se torna ameaçador é uma letra, uma palavra, um número, um brinquedo. Algumas vezes a criança reage gritando, outras agredindo, outras agredindo-se. Em algumas ocasiões, as condutas não são tão espetaculares: a criança se limita, por exemplo, a apagar com gozo, a rasurar um desenho, a rasgar sua folha ou simplesmente se nega, sem aviso prévio, a continuar uma atividade na qual parecia estar interessada.

As intervenções diante deste apagamento da possibilidade da criança sustentar-se em uma cena simbólica, diante das irrupções do real, do não representado, têm a ver com a forma que conceitualizamos, a partir do processo de aprendizagem, uma intervenção possível. Uma alternativa seria pensar em relação às possibilidades da criança de ajustar-se à realidade. Pensar nos recursos de que uma criança dispõe para, a partir destes, nos orientarmos pelo atalho de uma "reconstrução" do eu. Assustar-se, aterrorizar-se por uma imagem vista em um livro a ponto de esconder-se sob uma cadeira, é, certamente, uma conduta inadaptada2 e se constribuíssemos com informação empiricamente comprovável a partir de um suposto3 critério de realidade, estaríamos então instrumentalizando Miguel com o objetivo de facilitar-lhe uma via de circulação social. Podemos acalmá-lo, mostrando que se trata apenas de um livro, que eu posso deixar meu dedo na boca do leão sem que algo me aconteça. Podemos oferecer-lhe informação sobre os leões, explicar-lhe que vivem na savana, muito longe das pessoas, que quando estão nas cidades estão no zoológico, presos em jaulas... Mas, não é justamente na psicose que o eu não se constitui? A que processo secundário estaria apelando então? Como reconstruir o que nunca se construiu?

Considero que este modo de intervenção, esta resposta formulada exclusivamente a partir do Ideal, produz um efeito de mecanização, de robotização, deixando fora tudo aquilo que tem a ver com a subjetividade. A criança fica submetida a um fazer estereotipado, sem sentido, que se "parece bastante" a um reforço de seu lugar de objeto. Trata-se de um fazer que a confirma na alienação. Miguel poderia repetir a partir disso que "...os leões vivem na savana, não vivem em Buenos Aires..." ou que "...os leões do livro não são leões de verdade...", mas teríamos tirado dele a possibilidade do acesso ao sentido por havermos recorrido às suas possibilidades em relação à linguagem, excluindo-o porém da cena discursiva.

Outra possibilidade de intervenção seria pensar que a cura não consiste em um eu adaptando-se a uma certa realidade, mas, justamente, na constituição de um eu e na construção de uma realidade. Ou seja, que as possibilidades de aprendizagem nas psicoses não o são à margem do processo de estruturação da subjetividade. Quando falamos de psicoses em crianças, falamos de uma estrutura que está nos "tempos de sua construção" (E. Coriat, 1995). Trata-se, portanto, de "jogar" com as possibilidades da criança de construir o que ainda não pode sustentar, construir a cena que lhe permita jogar do ponto de vista em que se encontra. Re-situar, a partir de nós, a cena discursiva à espera de que ali se instale algo da ordem do sentido; oferta que espera uma demanda possível (Dimarco e Favre, 1991).

As formas que tomará esta descrição conceituai podem ser inúmeras, mas, a título de exemplo, posso lhes contar como continuou a história de Miguel e seu leão: eu me assustei tanto como ele, e, também, junto com ele, lutei contra este monstro devorador. A situação era indignante! Não era possível que fosse permitido que os leões circulassem por qualquer lugar! Claro que o expulsamos a tiros e o prendemos em uma jaula segura. Em seguida propus que fizéssemos cartazes que proibissem a livre circulação dos leões. Durante bastante tempo este foi o tema central de nossos encontros: desenhar leões, riscá-los, escrever cartazes que diziam coisas como: "É proibida a entrada de leões" ou "proibido sair da jaula" ou ainda "proibido morder as pessoas". Foi assim que Miguel, aos nove anos, começou a se interessar .pela escrita, iniciando o caminho que o levaria à possibilidade de alfabetizar-se.

Esta introdução propõe um enquadre para a intervenção psicopedagógica na psicose. Mas falamos de um contexto no qual certamente poderiam inscrever-se também as intervenções de outras práticas clínicas. Se começo por este ponto, é porque quero ressaltar que quando falamos de psicose não há especificidade do cognitivo, não há especificidade referida à aprendizagem. Quero dizer que as psicoses não se definem pelas alterações nos processos de desenvolvimento cognitivo ou de aprendizagem, mas pelas sucessivas falhas na estruturação psíquica de uma criança a partir da ausência de inscrição do significante Nome-do-Pai que deixa a criança sem possibilidades para separar-se de sua mãe e de ser alguma outra coisa além de seu objeto.

Agora, que os processos de estruturação subjetiva produzam efeitos nos mecanismos do desenvolvimento da inteligência e da aprendizagem de uma criança, isso já é outra história. Mais que isso, a hipótese aqui sustentada é que tanto o processo de construção das estruturas cognitivas como as próprias estruturas cognitivas adquirem uma peculiar forma de funcionamento e organização, produzindo, por sua vez, efeitos particulares no processo de aprendizagem.

A intervenção psicopedagógica nas psicoses é possível se leva em conta que se trata de um processo de subjetivação. A educação e a aprendizagem não são alheias ao processo de estruturação de um sujeito (Cazenave, 1992). O psicopedagogo, agora sim, a partir de sua especificidade, contribui com objetos de conhecimento, propostas de atividades vinculadas a situações de aprendizagem, visando que, a partir de sua produção, a criança obtenha uma representação de si: se trata de um fazer sim, mas de um fazer que a situa e lhe outorga a possibilidade de uma localização (Dimarco, 1990). Mas não se trata de oferecer qualquer objeto nem de propor qualquer atividade à criança: trata-se de oferecer objetos muito valorizados por nossa cultura, objetos privilegiados no momento de pensar em sua circulação social, objetos que se apresentam com uma legalidade que lhes é própria, e que a criança constrói apropriando-se dela. É nesse sentido que poderíamos dizer que existe uma especificidade dos processos cognitivos do pensamento nas psicoses: formas peculiares de organização nas estruturas cognitivas (aspectos estruturais); funcionamento peculiar do mecanismo de passagem de uma forma de organização a outra (aspectos funcionais); modalidade particular na implementação de recursos para resolver situações problemáticas (aspectos procedurais).

Agora vou me referir a cada um destes três aspectos do pensamento: estrutura, funcionamento e procedimentos, procurando mostrar-lhes em primeiro lugar a peculiaridade à qual me refiro e que, de acordo com o que venho formulando, se encontra indissociavelmente ligada à construção psíquica da criança. Ou seja, as características do pensamento às quais farei referência terão a ver com falhas nos processos fundantes do eu, terão a ver com uma criança que não atravessou com êxito as vicissitudes da constituição subjetiva4. Em segundo lugar, veremos como estas formas de organização das estruturas cognitivas, do processo de equilibração e dos procedimentos, incidem no processo de aprendizagem para, por último, poder pensar de que maneira podemos intervir, a partir dos objetos de conhecimento, a partir dos próprios processos de aprendizagem, levando em conta que estas intervenções incidem na constituição da subjetividade.

 

AS ESTRUTURAS COGNITIVAS

Começaremos com os aspectos estruturais do conhecimento. Observamos que as falhas que impedem que a criança possa advir como sujeito não impedem, no entanto, a construção de noções e estruturas lógicas. Crianças com diagnóstico de psicose apresentam possibilidades de construção cognitiva ainda no nível das operações concretas, sem que isso implique que possamos situar a criança em um nível operatório.

Em minha experiência, nunca me deparei com adolescentes ou jovens que apresentassem o diagnóstico de psicose infantil e que atingissem o nível das operações formais. Mas, ainda que não seja este o tema deste artigo, gostaria de ressaltar que a situação daqueles jovens nos quais o desencadeamento se produziu durante a puberdade ou mais adiante, é outra; jovens que tiveram uma infância "normal", que foram à escola primária comum e que puderam iniciar o ginásio. Nestes casos, observamos, na maioria das vezes, estaituras cognitivas que atingem o nível das operações formais. Com isso, o que quero destacar é que, do ponto de vista do desenvolvimento cognitivo e da aprendizagem, devemos diferenciar as psicoses infantis das chamadas psicoses desencadeadas, porque existem diferenças significativas entre elas no que se refere ao desenvolvimento da inteligência e aos processos de aprendizagem.

Antes, quando me referia às crianças, dizia que podíamos encontrar construções no nível operatório sem que isso implicasse situar a criança no nível das operações concretas. O que isso quer dizer? Acontece que uma das características destas construções é que a noção de conservação está defasada em relação às demais noções. A criança atinge um nível operatório em relação às classificações e seriações mas com uma significativa defasagem no que diz respeito à noção de conservação. Trata-se de uma criança que atinge as operações lógicas mas de maneira incompleta. O que ocorre com as outras crianças, a maioria, que se situam em um nível pré-operatório em relação à classificação e à seriação? Encontramos nelas a mesma defasagem?

As identidades qualitativas e individuais são o antecedente necessário das conservações (quantitativas). Trata-se de uma noção que depende da noção de estrutura pré-operatória da classificação. O fato de ter construído a noção de identidade é o que nos permite isolar, em um objeto ou situação, aquelas características que permanecem estáveis através das transformações, desconsiderando estas últimas e retendo somente as primeiras. Na vida quotidiana, é o que permite à criança saber que sua professora é a mesma ainda que tenha cortado o cabelo, ou que um carro que foi pintado de azul continua sendo "o mesmo carro, mas de outra cor", ou que seu corpo continua o mesmo, apesar de seu crescimento. No campo das psicoses observamos que crianças que conseguiram construir a noção pré-operatória da classificação, não atingem, contudo, o nível das identidades de ordem qualitativa. O que acontece então? Quais são as consequências desta alteração no nível das estruturas cognitivas para a aprendizagem?

A noção de identidade é básica em relação às propriedades do objeto. É suporte de todas as propriedades. Todo conhecimento requer a construção de certa estabilidade já que, "caso contrário, o mundo não seria outra coisa além de um fluxo contínuo" (Castorina, 1988). Não podemos prever nada de um objeto que já é outra coisa pelo simples fato de mudar de posição ou de forma. Poderíamos pensar então que uma intervenção destinada a favorecer a construção de referidas identidades produziria efeitos no funcionamento do aparelho psíquico no sentido de constituir um sistema de atraso que possibilitaria os desvios pertinentes para que o aparelho pudesse passar da identidade perceptiva à identidade de pensamento? (Bleichmar, 1984). E poderíamos, portanto, pensar que a não instalação do processo secundário é o antecedente do fracasso na construção das identidades de ordem qualitativa?

Mas voltemos um pouco: quero retomar a pergunta sobre as conseqüências, os efeitos desta não-construção das identidades e conservações. Mencionarei três características do pensamento nas psicoses que no nível da organização das estruturas, parecem revelar esta ausência na construção da estabilidade. Em primeiro lugar, os esquemas de ação ou representativos perdem sua função estruturante. Segundo, os esquemas assim construídos - na ausência de identidades - coordenam-se com muita dificuldade ou não conseguem coordenar-se com outros esquemas. Em terceiro lugar, observamos que se produzem falhas nos processos de integração de esquemas. Analisar cada uma destas características separadamente torna-se algo bastante complicado, pois elas necessariamente se inter-relacionam. Nas situações clínicas que irei apresentando, ressaltarei uma por vez, ainda que em todos os casos elas apareçam entrelaçadas.

a) Os esquemas de ação ou representativos perdem sua função estruturante

A realidade se apresenta para nós de forma ordenada. É o sujeito que a organiza a partir de sua atividade estruturante. "Um esquema... é um enquadre assimilador que permite compreender a realidade... que permite atribuir-lhe uma significação" (Coll, 1982). Acontece que, a partir desta defasagem em relação às noções de conservação e identidade, os esquemas de conhecimento ficam como que "soldados" ao objeto ou situação que lhes deu origem, perdendo, desta maneira, sua funcionalidade: atribuir significações à realidade a partir do jogo entre a assimilação e a acomodação. "Coordenações de noções para nada" (Jerusalinsky, 1988), que não estando sustentadas na construção das identidades, deixam a criança aprisionada no idêntico, na insistência da estereotipia.

Rubens tem dez anos e um bom nível de linguagem. Diz que quer escrever e reproduz uma série de círculos com riscos aos quais denomina "os A":

 

 

Rubens pode preencher folhas e horas com esta atividade. Qualquer sugestão que tente tirá-lo deste ponto o desorganiza e desestrutura a ponto de bater a cabeça contra a parede. Penso passar ao "E", ao "I", ao "O"... Rubens preenchendo dias com "A", dias com "O"... Não é difícil imaginar... No entanto, apoiar-nos nesta "facilidade" da criança para repetir infinitamente aquilo que poderia supostamente tratar-se de uma aprendizagem, me parece sumamente arriscado. Implica distanciá-la cada vez mais da possibilidade de apropriar-se de sua produção conseguindo a partir dela outra forma de representação. Assim, decido começar a jogar com os "A" de Rubens, dar-lhes cor, oferecer-lhe diferentes materiais para fabricá-los, introduzir variações em relação ao tamanho, às posições. Com o tempo, nos papéis, já não estava escrito "A", mas Rubens podia ler:

 

 

Com esta intervenção Rubens não aprendeu o "A" nem a diferenciar o "A" do "E". Pôde, a partir do que dispunha, construir algo que tem a ver com a possibilidade de representação e a simbolização. Ainda que não houvesse uma busca da forma, o que ocorria não era uma formulação antecipatória do que iria estar "escrito" ali, mas algo que fazia e em seguida "lia o resultado" que ali se impunha. Rubens se apropriava de sua produção ao mesmo tempo em que esta produção lhe possibilitava separar-se do objeto, separar-se da ação. Se a princípio Rubens parecia estar presente somente a partir desta cadeia de "A", em um segundo momento podíamos ver um Rubens produzindo. É por esta via que introduzimos a criança na possibilidade de uma alfabetização que lhe permita fazer laço com outros sem ficar aderido à materialidade das formas, já que é nesta situação que o esquema de ação perde seu valor estruturante, e então nos deparamos com crianças que supostamente escrevem mas que na realidade apenas copiam, ou com crianças que supostamente somam mas que na realidade apenas contam. Crianças que ficam capturadas pela materialidade da escrita, que perde então todo valor enquanto representativa, passando a ser lápis ou tinta sobre um papel. Crianças que ficam capturadas pela materialidade do som... pela cadência do "um... dois... três... quatro...", números que perdem então todo valor enquanto construções que permitem organizar a realidade, passando a ser um som localizado em um lugar particular de uma construção sonora.

Os esquemas se solidificam, indiferenciando-se do objeto a partir do qual se construíram, perdendo assim a possibilidade de serem generalizados a novas situações. A falha na construção das identidades faz com que cada modificação da situação original provoque que o já construído caia na escuridão. Não há registro das semelhanças nem das diferenças: tudo é igual ou nada é a mesma coisa.

Ainda deveríamos pensar se é possível chamar de "esquema" estas construções uma vez que este conceito faz referência "... ao que em uma ação é de tal maneira transferível, generalizável ou diferenciável de uma situação a outra... ao que há em comum nas diversas repetições ou aplicações de uma mesma ação" (Piaget, 1967). Quando falamos em esquema, falamos do transferível, do generalizável, do diferenciável, do que há em comum... Justamente tudo o que aqui parece não poder se produzir. Porque então continuar falando em esquemas? A princípio, e para não desviarmos de nossa temática, indicarei somente que também não se trata de meros condicionamentos, produto de aprendizagens por experiência (acomodação), mas de verdadeiras construções que, como tais, guardam em si a possibilidade de sua generalização (algo como "esquemas à espera de").

Esta espécie de "esquema congelado" nos leva muitas vezes a interpretar erroneamente uma situação relativa a uma aprendizagem que consideramos efetuada. Um exemplo: Frederico pode averiguar o preço de um carro somando ao valor básico os valores correspondentes aos diferentes "opcionais" (ar condicionado, rádio, tapetes, etc). Em uma concessionária de carros obtivera algumas planilhas nas quais selecionava os dados necessários para saber "quanto custa um Renault 12 com rádio e acendedor" ou "um Renault 19 com estofado de veludo". Mas se lhe perguntava quanto dinheiro necessitaríamos para preparar uma pizza a partir de um gráfico que representava as estantes de um supermercado nas quais se encontravam os ingredientes necessários - ele sabia quais eram - com os preços correspondentes, Frederico não sabia o que fazer. Se desorganizava, se desestruturava, e apareciam as atuações. Dizia: "pizza bunda... falemos da merda... você é um bunda... " ou corria subindo na mesa e atirando-se em seguida com um grito estilo Tarzan.

O que aconteceu? Frederico esqueceu o que havia aprendido? Na realidade não havia aprendido nada e se tratava de um mero condicionamento? Frederico se nega a responder por efeito de uma intervenção que não se limita a observar o que ele é capaz de produzir mas que lhe demanda algo mais?

Todas essas perguntas podem ser respondidas afirmativamente, não poderíamos descartar nenhuma destas possibilidades (ou qualquer outra), mas devemos re-situá-las em relação a esta peculiaridade das estruturas cognitivas nas psicoses, que consiste em que os esquemas e as operações construídas em um contexto encontram enormes obstáculos para poder transferir-se a uma nova situação.

Se todo processo de construção do conhecimento, em toda criança, requer a intervenção do outro que ocupa o lugar de mediador em relação aos objetos; se todo processo de construção do conhecimento ocorre de maneira contextualizada e não no vazio, quando falamos de psicose na infância, estes fatos parecem exacerbar-se em níveis difíceis de assimilar a partir de nossa lógica.

...E Frederico nos introduz na segunda das características mencionadas.

b) Os esquemas coordenam-se com muita dificuldade ou não conseguem coordenar-se com outros esquemas.

Desde a mais remota infância e a partir dos sistemas de regulação, os esquemas tendem a coordenar-se. Assim, com escassos meses de vida, o bebê coordena o esquema de visão com o de preensão conseguindo assimilar o que vê e olhar aquilo que sua mãozinha encontra fortuitamente.

Nas psicoses infantis, observamos que esta coordenação não se obtém de maneira tão rápida e espontânea. É comum ver crianças que, enquanto mexem em um objeto, dirigem o olhar à parede, à janela, ao vazio... Crianças que não coordenam os esquemas da visão com os esquemas auditivos...

Quando os esquemas representativos se relacionam atendendo a determinadas leis de composição interna, se transformam em operações. Por isso dizemos que as operações isoladas não são operações, pois é próprio das operações formar sistemas. Mas o que aconteceria se ocorresse esta impossibilidade? Poderíamos supor que isto é o que ocorre quando o eu não se constitui, quando não há uma função unificadora, uma imagem unificada à qual remeter a desordem da realidade. Falávamos que a realidade não se apresenta, para nenhum de nós, de maneira sistemática. A maior ou menor coerência do observável terá a ver com as possibilidades que cada um tenha de construir, em cada momento de sua história, a parcela de realidade de que se trate. É a criança quem constrói a realidade, é a criança quem constrói o observável. É a criança quem, por encontrar-se sustentada por um Outro, pode, conseqüentemente, supor-se sempre a mesma, apesar das mudanças que se operam tanto nela como nas situações e objetos que a rodeiam. A constituição do eu está sempre sustentada por essa rede do simbólico que o Outro tece para esta criança. Agora, se esta rede é esburacada antes do tempo, a criança cai, a imagem se desfaz. O eu se constitui em partes justapostas. Os esquemas construídos a partir destas partes não unificadas também não conseguem "unificar-se", coordenar-se, formando verdadeiros sistemas.

Uma criança psicótica que tinha adquirido a leitura e a escrita, que escrevia de maneira alfabética, que tinha escrita espontânea, explicava sem perturbar-se que quando "uma palavra é a mesma coisa pode-se ler como quiser...", o que traduzido significa que uma mesma palavra escrita admite vocábulos diferentes. Se o texto dizia "O gato toma leite", José afirmava que era a mesma coisa ler "O gato toma leite" ou "Miki toma leite" "... porque Miki é o meu gato". Tamanha era sua segurança neste ponto que chegava a afirmar que se quiséssemos escrever "Miki" e "Gato" tínhamos que repetir duas vezes "Miki" ou duas vezes "Gato" "... porque é igual senão não é ..."

Esta descrição do que ocorre no nível dos esquemas sensório-motores e representativos pode ser observada também em relação à construção dos esquemas de conhecimento5 em geral. Assim, uma informação e a seguinte são assimiladas de maneira sucessiva sem que cheguem a coordenar-se.

Jogo com Adriano uma versão simplificada e caseira do "Indícios"6. Eu dou as pistas e ele tenta adivinhar:

- É um animal...

- Muuuuu.

- Come cenoura...

- Mamu... (nome de sua avó)

- Um animal... que come cenoura...

- Cachorro...

- Come cenoura?

- Mamu...

Uma intervenção que possibilitou que Adriano coordenasse ambas informações conseguindo uma síntese, foi oferecer-lhe um universo restrito de opções que permaneciam à vista da criança: "What's my name?"7. Isto é, a partir da unidade que o objeto apresentado com um suporte figurativo lhe oferecia, ele podia, a posteriori, compor uma informação. Esta não podia ser produzida a partir da segmentação original.

c) Produzem-se falhas nos processos de integração de esquemas

O esperado é que os sistemas, esquemas e estruturas de nível inferior se integrem nas estruturas de nível superior. No interjogo dos sucessivos desequilíbrios e reequilibrações, os esquemas se reconstróem, permitindo coordenações cada vez mais rápidas e reversíveis e com maiores possibilidades de generalização no espaço e no tempo.

Este mecanismo parece não ocorrer espontaneamente nas crianças de que aqui nos ocupamos. Tudo ocorre como se os sistemas fossem construídos de maneira paralela sem que se produzissem as integrações e reconstruções esperadas. Assim, observamos que a criança que hoje pode interagir com os objetos assimilando-os a esquemas de ordem representativa, amanhã poderá somente lambê-los ou atirá-los pelo ar. E se não acho pertinente falar em regressões é porque considero que não se trata de uma estrutura que "desaparece"8 mas de duas formas, de dois sistemas estruturais de níveis diferentes que funcionam de maneira paralela. O porquê de uma criança responder a partir de um nível ou outro não parece ser, no momento, passível de ser generalizado. Podemos pensar em muitas variáveis: os objetos oferecidos, a situação em que são oferecidos, o modo de intervenção do outro mediador dos objetos de aprendizagem, o significado peculiar que o objeto pode ter para a criança... É possível também que não se trate de eleger uma variável mas de cruzá-las e de pensar em como atuam umas em relação às outras e, em seguida, em relação à resposta da criança.

Tiago, um menino de 5 anos, sem linguagem, cuja característica é estar em constante movimento, pode um dia conectar-se com um brinquedo destes que operam por causa-efeito: uma caixa com quatro cordas diferentes que ao serem acionadas fazem com que se abram as portinhas correspondentes às casas de quatro animais que aparecem cada um na porta correspondente. Tiago se detém neste jogo durante 15 minutos. Pode acionar cada corda de maneira adequada: girando uma, pressionando outra, puxando a terceira. Fecha as portinhas e volta a começar a série. O mesmo Tiago, na sessão seguinte, diante do mesmo jogo, pode somente passar sua língua sobre ele.

Os esquemas de ação se agrupam respeitando certas leis de composição interna9, ficando assim definida a primeira estrutura intelectual: o grupo prático de deslocamento aperfeiçoado pela construção do objeto permanente.

Não há dúvidas de que Nicolau - um adolescente de 16 anos com diagnóstico de psicose infantil e que adquiriu a leitura, a escrita e o cálculo - atingiu a construção da categoria de objeto permanente. Isso nos levaria a supor uma certa estruturação espaço-temporal e causal do universo prático; levar-nos-ia a pressupor, por exemplo, que certos aspectos parciais que dizem respeito à construção do espaço prático se encontram já integrados em uma totalidade, o que implica que, ao menos neste nível (sensório-motor), atingiu a reversibilidade. No entanto, vejamos como Nicolau se comporta em relação ao espaço: como parte de um projeto a longo prazo que incluía a possibilidade de que ele viajasse sozinho, proponho-lhe excursões para explorar o bairro. Assim, saímos para dar uma volta no quarteirão. Nicolau leva um caderno no qual vai anotando detalhadamente os estabelecimentos comerciais e instituições que encontramos neste "passeio": mercearia, lavanderia, clube, escola... Realizávamos o percurso no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio; havíamos percorrido três quadras quando encontramos um bar. Nicolau propõe que tomemos um suco. Fazemos isso e continuamos nosso caminho: a quadra que faltava para voltar ao ponto de partida. Na sessão seguinte, Nicolau diz que trouxe dinheiro para que pudéssemos voltar ao bar para beber algo. Eu aceito; Nicolau pega o caderno e saímos para a rua. Começa a fazer o mesmo caminho que fizemos na vez anterior; enquanto caminha vai lendo as anotações de seu caderno como se seguisse um mapa. Andamos três quadras para chegar a um bar que fica somente a uma quadra! Uma vez no bar, usamos seu caderno para representar graficamente o percurso. Desenhamos a quadra, colocamos os nomes das ruas, localizamos o consultório e o bar. Marcamos com uma cor o percurso que realizamos para chegar até lá: Nicolau traça-o sem problema. Em seguida, peço-lhe para marcar o caminho que faremos para voltar: rapidamente aponta a quadra que separa o bar do consultório. Combinamos que continuaremos com estas excursões na próxima sessão. Nesta vez, antes de sair, peço-lhe para abrir seu caderno para que vejamos por onde iremos. Nicolau aponta o percurso das três quadras.

- Há outra maneira de ir?

- Não.

- E para voltar?

- Por aqui... (aponta o percurso de uma quadra)

- E nós poderíamos ir por aqui? (aponto o percurso de uma quadra)

- Não, é para voltar...

- E se eu quiser ir e voltar pelo mesmo caminho?

- Uf! Norma, você está maluca? O que está dizendo? Já está falando besteira!

O que acontece? Entendo que poderíamos pensar esta dificuldade de Nicolau de inúmeras maneiras. Não menosprezo a segurança que lhe trazia o caminho "conhecido", já provado e experimentado com êxito. Mas me pergunto pelo que acontece no nível das estruturas cognitivas que não lhe permite resolver com êxito o problema que eu lhe formulo: um esquema - neste caso de ordem topológico - se encontra somente parcialmente integrado a uma estrutura - neste caso do nível sensório-motor - e como resultado desta dificuldade na integração, observamos - no caso particular de Nicolau - que os espaços parciais não conseguem compor-se em um espaço global para atingir a reversibilidade de ordem prática.

Antes de passar ao tema seguinte gostaria de abrir um parênteses para esclarecer um ponto que poderia levar a um mal-entendido. Pensar no que ocorre no nível das estruturas cognitivas ou em relação aos aspectos funcionais ou procedurais do pensamento em crianças psicóticas não implica substituir um modelo de análise por outro; não implica supor que, a partir de agora, todas as condutas da criança poderiam ser explicadas a partir de uma teoria do desenvolvimento da inteligência. Nas psicoses observamos que as formas de pensamento são qualitativamente diferentes das apresentadas por crianças neuróticas, não se trata de que a criança não chegue a, de que não consiga... A criança psicótica nos mostra uma estrutura cognitiva na qual os elementos se organizam tomando formas particulares ou um modo de funcionamento que apresenta outras irregularidades que as já conhecidas na criança neurótica. Torna-se necessário conhecê-las, assim como quando trabalhamos com qualquer criança com dificuldades no cálculo ou na leitura e na escrita, torna-se imprescindível conhecer o nível em que a criança está, seu funcionamento cognitivo, suas estratégias e procedimentos, suas teorias e hipóteses sobre os objetos de conhecimento que lhe oferecemos. Portanto, não se trata de pensar a psicose a partir do cognitivo, mas de que ao pensarmos nos transtornos de aprendizagem nas crianças psicóticas possamos referir-nos a algo mais do que a "uma falha no simbólico".

 

O FUNCIONAMENTO MENTAL

Até aqui abordamos os aspectos estruturais do desenvolvimento da inteligência. Abordaremos agora os aspectos funcionais, isto é, do funcionamento dos mecanismos responsáveis pelo desenvolvimento, o mecanismo causai das equilibrações e reequilibrações.

Utilizarei o seguinte esquema para pensar o que ocorre nas psicoses:

 

 

A seguir, apresentarei algumas das características observadas em crianças com diagnóstico de psicose infantil para, depois, tentar explicitá-las a partir de situações clínicas. A primeira é que aparecem defeitos nas três formas de equilibração. Em segundo lugar, as perturbações não operam como causa de desequilíbrios e, por último, os estados de desequilíbrio não resultam em regulações e compensações.

a) Defeitos nas três formas de equilibração

O modelo da equilibração com sua "teleonomia" (Piaget, 1978), com sua "necessidade maximizadora" e por constituir "em si mesmo um processo de superação" expressa certa ambigüidade, assim como também uma certa incapacidade para explicitar o que são essas "ações conservadoras", o que é o "regulador interno" ou de que maneira o sistema como totalidade desempenha um papel regulador "impondo a conservação do todo". No entanto, o modelo em funcionamento é rico e sumamente útil para pensar não só sobre o desenvolvimento da inteligência, mas também sobre a construção dos conhecimentos no processo de ensino e aprendizagem (Coll, 1982).

Falo de defeitos nas formas de equilibração: a que se refere este equilíbrio? Ao que deve dar-se entre assimilação e a acomodação:

  • assimilação dos objetos aos esquemas e acomodação destes aos objetos;
  • assimilação e acomodação recíproca entre sub-sistemas;
  • assimilação de um sub-sistema a uma totalidade (integração) e acomodação desta ao sub-sistema (diferenciação).

Durante muito tempo pensávamos que ocorria na psicose um predomínio da assimilação e falávamos então de assimilação pura ou assimilação deformante (Kitsikis, 1981). Inclusive diferenciávamos psicose de debilidade mental, dizendo que na primeira observamos um predomínio da assimilação, enquanto na segunda observamos um predomínio da acomodação. Atualmente, penso que não se trata exclusivamente de um predomínio da assimilação sobre a acomodação, mas de falhas ou defeitos na equilibração que podem redundar, tanto em um funcionamento predominantemente assimilador como em um funcionamento predominantemente acomodador. Por acaso não vemos crianças repetindo e copiando esteriotipadamente?

Como afirma Elsa Coriat: "...muitas das crianças chamadas 'super-adaptadas' estão psicóticas porque seus atos não se sustentam na elaboração e entrosamento das próprias marcas, mas no olhar e no gozo de um Outro encarnado em qualquer outro" (que poderia muito bem ser um professor ou... um psicopedagogo).

Quando a mamãe de Júlio vem à primeira entrevista, traz "O Pato Renato": o caderno que o filho havia utilizado durante a pré-escola era uma "maravilha" de ordem, prolixidade e perfeição. O mesmo acontecia com seus cadernos de primeiro grau., "lindos cadernos" cheios de escritas e cálculos, todo completo, tudo bem resolvido, sem que nada neles mostrasse alguma dificuldade.

Comecei a trabalhar sobre a hipótese de problemas no nível da equilibração a partir da seguinte observação: viajava em micro-ônibus com um grupo de três crianças psicóticas quando um deles, Sebastião, começa a pôr os dedos no nariz, literalmente espalhando suas melecas por toda parte, diante da visível perturbação de sua ocasional companheira de viagem, que começou a repreendê-lo amavelmente, sem que o menino sequer a olhasse. Quando estávamos chegando a nosso destino comecei a pedir-lhes que se levantassem e este mesmo menino disse:

- Temos que descer pela porta de trás.

- É que o ônibus está cheio.

- Deve-se descer pela porta traseira.

- Sim, mas agora não há tempo para ir até lá, somos muitos, há muita gente.

- É proibido descer pela porta dianteira.

Então me dirigi ao motorista solicitando sua autorização para descer pela frente. Mesmo com a autorização do motorista, tive que insistir muito e ainda pegar Sebastião pela mão para conseguir descer todos a tempo.

Vemos aqui um menino que em um primeiro momento é incapaz de acomodar-se a uma norma social para, minutos depois, aderir a uma regra da qual não pode separar-se, ainda quando a situação demandava.

Durante o primeiro grau, nas palavras de seu professor, Max "fala pouco, mas trabalha muito". No caderno, vemos: "Muito bem, 10!" Em compensação, nas sessões de psicopedagogia, Max preenche compulsivamente folhas e folhas de seu caderno com tantos riscos pretos que quase ficam cobertas. Onde está Max? Na prolixidade de seu caderno de classe? Na negrura e compulsão do caderno que construía nas sessões de psicopedagogia? Nos dois lugares? Em nenhum? E que difícil pensar na intervenção! Quantas vezes nos vemos tentados a supor um sofrimento maior nesta criança que acata tão ao pé da letra as prescrições advindas do lado escolar! Mas me pergunto: É lícito pretender que a criança abandone estas produções? Ajudaria esta criança se pudesse levar seus "riscos" à escola? E por outro lado: Aprende? Ou, há benefício em freqüentar uma escola comum nestas condições?

Quando nos deparamos com uma criança que unicamente bate garrafas de plástico na parede, ou caminha abraçada a uma boneca, pensamos que é adequado sustentar estas produções, ainda que pobres e estereotipadas, construindo cenas que lhes outorguem alguma significação. O barulho da garrafa ou o abraço ao boneco transformam-se, para nós, no ponto de partida para a intervenção. Agora, quando nos deparamos com uma criança prolixa, meticulosa, que não questiona, que não pergunta, que copia o que vê e repete o que ouve, por que pensar que a intervenção será "tirar do meio" tudo isso para que "a criança se expresse'?

Não me parece em absoluto que as resposta a todas estas perguntas sejam óbvias.

b) As perturbações não operam provocando desequilíbrios e/ou os desequilíbrios não são fonte de regulações e compensações.

Considerarei estas duas características de forma conjunta, como reflexo do indiscriminado do fazer da criança. Na realidade, muitas vezes não podemos inferir das ações da criança, se para ela não há ali conflito algum; se há conflito, mas este não chega a provocar-lhe um desequilíbrio cognitivo ou se, terceira possibilidade, há conflito e há desequilíbrio cognitivo, mas este não conduz a nenhuma regulação.

Os fatores de aquisição mais fecundos estão constituídos pelas perturbações que geram situações de conflito (Piaget, 1978). Em termos gerais, o conflito surge quando, por falhas na equilibração entre assimilação e acomodação, ou por falhas na coordenação de esquemas, ou por lacunas no conhecimento, ou ainda, por resistências do objeto, se produz um desajuste entre as antecipações do sujeito e o que a realidade lhe apresenta. Agora, se por não ter atingido o nível das identidades, a criança não consegue construir semelhanças e diferenças, então, ou fica aprisionada pelo idêntico, ou fica à mercê do encontro fortuito com os objetos.

Para uma criança aprisionada no idêntico, um conflito pode ser devastador, tirando-a de sua única referência. Quando Alan escreve tudo com uma longa série de letras "A", e a psicopedagoga procura mostrar-lhe outras formas de escrita, outras letras, Alan responde agredindo-a com insultos. Esta intervenção o afunda na desorganização e no caos, culminando em uma tentativa de auto-agressão.

Muitas vezes devemos sustentar estas produções repetitivas (e sublinho a palavra 'sustentar', que implica suportar - ser suporte de - e de nenhuma maneira estimular ou incentivar); sustentá-las ao mesmo tempo em que propiciamos situações nas quais algo da diferença possa aparecer.

Acontece que, um dia, sugeriram a esta criança, que era atendida em um contexto grupai, que construísse gorros para todos os companheiros do grupo. O problema era que Alan não queria que os gorros se confundissem. Cada um deles tinha um destinatário previamente fixado. Os gorros tinham sido confeccionados com o mesmo papel, da mesma cor, tamanho, forma... A psicopedagoga lhe sugere que cole em cada gorro o nome de seu dono. Alan pede que ela escreva os nomes de seus companheiros. O que fez? Escreveu em todos os gorros uma série de letras "A", mas ao de Patrício acrescentou um "P", ao de Hernani um "H" e ao de Francisco um "F".

Para muitas crianças psicóticas as mudanças costumam ser catastróficas. É por esse motivo que toda situação de mudança deve ser introduzida com uma certa antecipação e a partir de certos eixos de permanência que permitam à criança sustentar-se.

Por outro lado, dizíamos que algumas crianças ficam à mercê do encontro imprevisto com os objetos e situações. O conflito parece não atingi-las. Frente à menor dificuldade, desistem: é que para elas a dificuldade não é essa. Não há ponto de referência que lhes permita notar que algo se modificou. Falo destas crianças que, quando deixam cair ou perdem um objeto, não tentam recuperá-los. Com elas, procuramos intervir criando hábitos, seqüências, nas quais o diferente possa adquirir estatuto enquanto tal. É por isso que em âmbitos institucionais realizamos intervenções que têm a ver com a confecção de horários e agendas (quando há possibilidades de representação), ou as recebemos com a mesma canção, ou ordenamos os brinquedos em determinadas caixas, ou penduramos cada casaco ou mochila em um lugar preciso. Não se trata de favorecer automatismos, adaptações passivas e mecânicas, criar hábitos pelo que estes tenham de positivo. Trata-se de criar um contexto no qual esta criança possa situar-se, situar seu próprio corpo para, a partir disso, criar uma distância que lhe permita encontrar-se com os objetos que pretendemos apresentar-lhe enquanto objetos de conhecimento. Trata-se de criar as condições a partir das quais o conflito indague a criança.

É pouco freqüente observarmos crianças instaladas em uma situação de desequilíbrio cognitivo que não gere regulações e compensações. Ao contrário, a criança recorre seguidas vezes à repetição do esquema inicial sem que se produza nenhuma modificação. Outras vezes, pelo contrário, o que observamos é o imediato abandono da atividade.

Enfatizando o interesse e o esforço de Lucas para resolver operações aritméticas, seu professor me mostra uma folha de seu caderno onde realizara quinze vezes o cálculo 3+7, declarando - nas quinze vezes! - 9 como resultado, mesmo quando o docente dissesse, desde o começo, que não era essa a resposta correta.

Em outra ocasião observei uma criança que, durante 10 minutos, ininterruptamente, se esforçou em enfiar um recipiente dentro de outro muito menor até que finalmente abandonou a atividade. O curioso é que esta mesma criança podia ordenar, sem dúvidas, uma série de três elementos e também indicar corretamente qual era o objeto maior ou o menor de uma determinada série.

Para esclarecer este tema, gostaria de recordar que o perturbador é o fato inesperado. Na medida em que não se encontre constituída certa legalidade, a criança não espera nem desespera. Somente quando atingiu certo nível de construção é que, frente ao inesperado, aparecem a repetição estereotipada de um esquema (com a qual a criança tenta anular aquilo que a incomoda?) ou o desencadeamento de uma situação de crise que a desorganiza.

 

OS PROCEDIMENTOS E ESTRATÉGIAS

Para finalizar, faltaria mencionar certas características que se dão em relação aos aspectos procedurais. As estratégias e procedimentos formam as ações reais ou virtuais que os sujeitos atualizam na resolução de situações problemáticas. Aqui observamos, em primeiro lugar, que a criança opera de próximo a próximo perdendo de vista o fim. Segundo: acontece que o procedimento termina transformando-se em um fim em si mesmo. Por último, observamos falhas nos encadeamentos temporais.

a) As ações se encadeiam de próximo a próximo

Gustavo10 se interessa por gravadores e cassetes. Um dia a fita de um cassete se rompe e ele se irrita. A psicopedagoga sugere que ele o conserte e ele aceita dizendo: "Consertar cassete..." Imediatamente se levanta e vai buscar na cozinha uma faca, que tenta usar como chave de fenda para abrir a caixa do cassete. Obviamente, a faca não entrava no pequeno espaço no qual estava o parafuso. Apesar disso, Gustavo insiste até que a psicopedagoga sugere que pegue outro instrumento na caixa de ferramentas. Gustavo, sem falar, se levanta e pega a caixa na qual seleciona uma chave de fenda excessivamente grande para a situação. Tenta um pouco até que larga a chave de fenda e volta a pegar a faca, mas desta vez a insere no encaixe entre as duas tampas do cassete, utilizando-a como alavanca até que uma das tampas se quebra. Gustavo olha satisfeito e diz: "...cola plática..." Pede à psicopedagoga a cola plástica com a intenção de utilizá-la para colar a fita que tinha se rompido.

Além da adequação ou inadequação das estratégias que Gustavo utiliza, quero ressaltar essa forma de proceder que chamo de 'de próximo a próximo'. Os procedimentos que se encadeiam em uma seqüência temporal para alcançar um fim: "ter êxito". Cada procedimento implica sub-procedimentos. Se em cada passo não levamos em conta o objetivo final, pode acontecer que alguma das ações realizadas obstaculizem ou impeçam sua obtenção. O procedimento para consertar a fita cortada de um cassete implica em pelo menos três passos: abrir o cassete, unir a fita, fechar o cassete. Gustavo conhece esta seqüência, mas perde de vista a finalidade. Cada passo está relacionado com o seguinte, mas o mesmo não ocorre com o objetivo final. Esta situação chega a tal ponto que Gustavo, tão familiarizado com os cassetes, não se preocupa quando vê a caixa quebrada. Pelo contrário: muito satisfeito, pede a cola plástica para continuar sua tarefa.

As intervenções que visam antecipar os passos do procedimento não operam neste caso, pois não é este o ponto da dificuldade. Trata-se de manter o fim "à vista" da criança, de torná-lo presente a partir de fora, de criar-lhe as relações que ele não pode, por si só, estabelecer. Foi importante para Gustavo atravessar esta experiência de confronto com um fracasso, situação que outras crianças não poderiam tolerar.

b) O procedimento ocupa o lugar do fim

Os Pacientes de um grupo 11 decidem montar um cartaz recortando palavras de diversos materiais gráficos. Luís procura nos lugares adequados os materiais necessários selecionando corretamente os que podem ser recortados... mas esta atividade não termina nunca. Passam os dias e Luís continua acumulando prospectos de propagandas, jornais, revistas, passagens, caixas de alimentos ou de medicamentos. A psicopedagoga faz diversas intervenções que tendem a localizá-lo em relação a qual era o objetivo de procurar palavras impressas, o qual previa que Luís começasse a recortar... mas Luís não pára mais de recortar. Para Luís, cada procedimento se transforma em um fim em si mesmo.

Em repetidas ocasiões observei como o fato de incluir um terceiro em relação à produção faz com que esta questão dos procedimentos que se repetem infinitamente ceda "naturalmente". Como é isso de incluir um terceiro? Como proceder para realizar tal inclusão? Quando o projeto está dirigido materialmente a outro, Luís consegue inibir este "fazer por fazer". Por exemplo, quando o objeto que estava construindo era um presente para um destinatário previamente determinado; ou quando o cartaz estava destinado a que os pais de um grupo de crianças pequenas tivessem informação sobre os planos de vacinação ou sobre as possíveis excursões previstas para as férias de inverno.

O porquê destas intervenções produzirem este efeito pode ser pensado pelo fato de que nestas situações colocamos em jogo uma certa legalidade à qual tanto o paciente como o psicopedagogo ficam submetidos. As datas (aniversários, dias de...) se impõem para nós de fora. Há um público (conhecido ou não) que "espera" receber este objeto. Ambos ficamos sob as leis da circulação social. Não se trata de produzir para ele, nem para mim... nem sequer para o grupo. Trata-se de uma produção que nos transcende e parece que é justamente este "além de" que produz a distância que permite a Luís realizar este corte que cria a seqüência de procedimentos que se encadeiam até alcançar um fim.

Em relação a este ponto, gostaria de ressaltar que, freqüentemente, observamos crianças e jovens que permanecem "colados" a certos instrumentos materiais sem conseguir fazer nada com eles: gravadores, computadores, máquinas de escrever, são manuseadas com extrema habilidade para nada. É claro que não se trata de tirar o "incômodo" aparelho do meio, mas sim de delimitar seu uso no sentido de que adquiram seu valor específico: são "instrumentos para".

Nestor manuseia o gravador com uma habilidade pouco usual, mas não o utiliza nem para escutar música. Incluir o gravador em um projeto que o integre como instrumento poderia possibilitar a Nestor desdobrar suas habilidades outorgando-lhes uma significação que vá além da mera manipulação e lhe sirva no momento de fazer laço social12.

c) Produzem-se falhas nos encadeamentos temporais

Isso pode acontecer sob duas formas diferentes: alteram-se os passos a seguir, altera-se a ordem dos passos ou há passos que se omitem, parte do procedimento se encontra ausente.

Um paciente de 16 anos que trabalhava sobre a escrita a partir da temática do futebol, propõe ir comprar uma revista especializada, sem notar, nem a partir de minhas intervenções, que antes deve implementar algum recurso para obter o dinheiro necessário (ainda que este consista simplesmente em pedi-lo emprestado). E isso quando se tratava de um jovem acostumado a manusear dinheiro de maneira independente.

Outro paciente, também adolescente, que estava envolvido em um projeto de construir uma "revista de figuras" (tratava-se de um jovem que não lia nem escrevia), não podia encontrar a maneira de construir a seqüência de estratégias e procedimentos para conseguir levar a cabo sua própria proposta, e literalmente se "enredava" em um labirinto: "Vamos tirar xerox... e depois juntamos revistas... e as colamos... e podemos fazer um desenho e o colamos e o xerocamos e fazemos cada folha com um número... mas falta a capa... a compramos... a vendemos... Podemos vender a revista?"

Observamos que ele tem uma certa idéia de quais seriam os passos intermediários, mas na medida em que o objetivo implicava a diversificação e multiplicação de procedimentos, ele se perdia sem conseguir montar a seqüência adequada.

A seguinte intervenção foi efetiva para este jovem: propus-lhe montar a seqüência de maneira inversa, ou seja, partir do objetivo final e ir reconstruindo um a um os passos para chegar ao ponto de partida.

Finalizo lendo o texto produzido por um paciente no contexto de seu tratamento psicopedagógico individual:

"Era uma vez um gravador que era muito mágico e se ligava e se apagava quando ele queria. Seu dono guardava canções mas se não lhe interessavam as apagava e gravava o que lhe dava vontade, mas gravava vozes."

Inácio, como tantas outras crianças, pedia que o ajudássemos a "guardar" o que lhe interessava... Que o ajudássemos a "apagar" estas outras vozes que lhe faziam interferência e que escapavam "magicamente" a todo controle... É certo que seu pedido nos comove, mas sobretudo nos compromete a não nos transformarmos nestas vozes que se gravam sem que a criança possa dar conta delas... Estas vozes existem, são escutadas, mas não possibilitam sua apropriação por parte da criança deixando fora a possibilidade de sua constituição enquanto sujeito.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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NOTAS

Tradução de Daniela Waldman Teperman
1 Este trabalho é uma síntese, depois corrigida e aumentada, do trabalho apresentado nas Segundas Jornadas de Encuentro y Actualización sobre la problemática de la Discapacidad organizadas pela Universidade Nacional de Morón e da conferência proferida nas II Jornadas Inter-hospitalarias Psicopedagógicas organizadas pela Universidade Nacional de Lomas de Zamorra, ambos no mês de novembro de 1995.
2 Pensando a inadaptação no sentido que damos a este conceito no uso cotidiano e não como o entende a psicologia genética em termos de equilíbrio entre assimilação e acomodação.
3 "Suposto"... pois se trata da realidade de quem?
4 Sem esquecer que quando falamos de crianças e sobretudo de crianças pequenas, falamos de uma estaitura que está "nos tempos de sua construção": o eu não se faz "de uma só vez pronto e definitivo"... "A psicose não é um atributo do ser" (Elsa Coriat, 1995).
5 Um esquema de conhecimento é a "... representação que possui uma pessoa em um momento dado de sua história sobre uma parcela da realidade; um esquema de conhecimento pode ser mais ou menos rico em informações e detalhes, possuir um grau de organização e de coerência interna variáveis e ser mais ou menos válido, quer dizer, mais ou menos adequado à realidade; um esquema de conhecimento comporta esquemas de ação e representativos no sentido piagetiano..." (César Coll, 1982).
6 "Indícios" é um jogo de Edukit que consiste basicamente em dar ao opositor um número determinado de pistas sobre um objeto, lugar, pessoa, etc. para que o outro, a partir da informação recebida, possa deduzir qual é o objeto, lugar, pessoa, etc. escolhido. Os cartões com as pistas estão ordenados por tema: geografia, ciências naturais, personagens, etc.
7 "What's my name?" é um jogo de Ravensburger que consiste em um tabuleiro quadriculado que apresenta uma figura em cada quadrado. Ainda que o jogo apresente certas dificuldades pois funciona como dupla entrada, o usávamos de maneira que eu dava pistas sobre um dos objetos ali representados. Neste jogo, as pistas não estão escritas mas é aquele que as apresenta que deve criá-las. Isso torna-o mais fácil que o "Indícios" pois o adulto pode dar pistas que definam claramente o objeto mas, ao mesmo tempo, torna-o mais complicado pois a criança tem que abstrair características do objeto para dar a pista ao outro. As crianças com maiores dificuldades não podem evitar dar o nome do objeto "como se fosse uma pista".
8 Barbei Inhelder, em seu texto "O diagnóstico do raciocínio nos débeis mentais", fala de "desaparecimento" das estruturas para dar conta de um processo no qual a criança começa dando respostas em um nível que "corresponde mais a uma lógica adquirida que a uma elaboração pessoal", razão pela qual, à medida que o entrevistador avança com suas intervenções a criança abandona "essas maneiras adquiridas de funcionar" para mostrar "seu nível real".
9 Tratam-se das leis de composição interna, de associação, de reversibilidade e de identidade que caracterizam o grupo de deslocamento e que permitem uma estruturação espaço-temporal e causal do universo prático.
10 Este adolescente participa de uma oficina grupai de psicopedagogia no contexto de hospital-dia. A situação aqui descrita se encontra registrada neste contexto.
11 Aqui também se trata de um grupo que tem atividade de psicopedagogia como parte do atendimento recebido no contexto de hospital-dia.
12 Até este momento, o manuseio do gravador era uma atividade vazia que de nenhuma maneira lhe permitia criar vínculos com outras pessoas, se tratava de uma atividade que não propiciava forma alguma de enlace, "... exibição de uma repetição automática, que é circular, autista e, de nenhuma maneira, significante..." (S. Sosa e V. Paz, 1992).