SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.2 número2O gravador que gravava o que lhe dava vontadeFamília e hospital-dia: intervenções dentro e fora índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.2 no.2 São Paulo  1997

 

EXPERIÊNCIAS INSTITUCIONAIS

 

Começando uma travessia pelo Ponte

 

 

Fernando Colli e colaboradores

Pediatra, psicanalista, coordenador do Projeto Ponte
Equipe do Projeto Ponte: Alecxandra Mari Ito, Carla Biancha Angelucci, Denise Gomes Banzato, Madelise A. Salles Varallo, Nelson Passagem Vieira, Valéria Amâncio

 

 

A Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida funciona na USP desde 1990, com o intuito de trabalhar com crianças psicóticas, autistas e neuróticas graves à luz da teoria psicanalítica Lacaniana, promovendo assim, sua inserção social. Dentro desta estrutura, e com o mesmo embasamento teórico norteando o trabalho, está o Projeto Ponte, que tem como objetivo o ingresso e convívio destas crianças em escolas, preferencialmente, normais. Pode-se entender a relevância desta inserção na escola segundo três aspectos fundamentais apresentados por Alfredo Jerusalinsky1:

O diagnóstico de uma criança, em sua grande maioria, não está definido e esta indefinição é característica da infância. Sendo assim, a privação do convívio e da inserção na escola não poderia ser justificada apenas por este diagnóstico.

As condições de aprendizagem, apesar de limitadas, existem. A "obstrução das transformações simbólicas não permite que as crianças tenham curiosidade", porém, "dependendo do grau de extensão que tenham as metáforas não paternas que a criança psicótica venha a constituir para encontrar pontos de referência que mobilizem seu desejo de aprender, sua curiosidade" e com a ajuda de um professor que deseje e esteja disponível para um trabalho singular, há a possibilidade do surgimento de "curiosidades parciais".

Já do ponto de vista individual, a criança pequena tem sua "insuficiência simbólica" atribuída à idade, atenuando o processo de estigmatização que costuma ocorrer. Na adolescência a aceitação social é mais difícil, pois as atitudes desses jovens são consideradas, em geral, inapropriadas. A escola, mais uma vez, ocupa um lugar de suma importância como espaço potencial para a ocorrência de novas inscrições que permitam uma elasticidade simbólica.

Em terceiro lugar, o efeito terapêutico causado pela inserção destas crianças na escola pode ser entendido a partir do indivíduo ou da ordem social. Isto pois, sendo a escola "do ponto de vista da representação social (...) uma instituição por onde circula em certa proporção, a normalidade social", observa-se a diminuição do 'horror à loucura' propiciado pela convivência entre as diferenças.

Isto é ressaltado pelos efeitos deste convívio para as crianças normais que "também se beneficiam aprendendo solidariamente a reconhecer e respeitar as diferenças individuais" (Caniza de Páez, 1994).

Não se pretende aqui fazer uma defesa incondicional da inserção escolar das crianças com Distúrbios Globais de Desenvolvimento, uma vez que a experiência de trabalho deste grupo e de outras instituições reafirma a necessidade de que algumas pré-condições sejam atendidas por estas crianças, sendo imprescindíveis a "elasticidade e a estabilidade (...) das metáforas não-paternas". Além disso é necessário que haja, por parte da equipe que acompanha esta criança, estudo e a permanente reflexão acerca dos efeitos desta convivência para cada uma delas. O cuidado não se refere apenas aos prejuízos para a criança dita diferente, mas também à criança dita normal que, quando pequena, pode apresentar complicações em seu processo de formação de identidade e identificação por estar "submetida aos riscos da ruptura do espelho no qual se reconhece" (Jerusalinsky, 1996).

Desta forma, para proporcionar um convívio escolar - parte importante do tratamento de nossas crianças - trabalhamos com o professor, profissional que está diretamente ligado a elas e, portanto, coadjuvante fundamental deste processo. Este professor está sustentado pelo seu próprio desejo e autorizado pelos pais a exercer a função de inserir a criança no âmbito social.

A escolarização dessas crianças precisa estar lastreada no desejo do professor pois este, ao apontar seu desejo para o aprendizado da criança, supõe nela um sujeito também desejante e, portanto, capaz de aprender. Desta disposição das subjetividades é que poderão surgir as curiosidades que abrirão acesso ao sujeito em aprendizagem.

Como forma de apresentação do Projeto Ponte, optamos pelo relato do caso de Ana2, atualmente com 9 anos, que foi encaminhada, no início de 1995, para classe especial3 de uma escola pública da rede oficial de ensino. A intenção ao relatar este caso é a de demonstrar um trabalho da equipe de escuta de professores, através do referencial psicanalítico, viabilizando o resgate da relação professor-aluno que propicie a aprendizagem e a inserção social destas crianças.

Iniciamos o trabalho com essa escola no final de 95 mas, para apresentação, remontaremos o caso com fatos que antecederam nossa atuação.

Ana é uma das 25 crianças atendidas pelo Lugar de Vida. Ela já havia frequentado uma creche e sua permanência nesse espaço fora definida pela atendente que a acompanhava como "difícil", devido às suas atitudes agressivas. Essa mesma atendente em reunião com a equipe Ponte, lembrou-se de Ana com muito carinho e mencionou passagens que demonstraram o benefício que essa experiência trouxe a ambas; no caso da menina, a possibilidade de construir relações com atitudes socialmente aceitas e, para a atendente, o desejo de se tornar uma professora de classe especial.

Sua saída da creche deveu-se à idade, tendo as diretoras a preocupação de encaminhá-la para uma escola Estadual, comunicando à coordenadora como Ana se encontrava naquele momento. Segundo a escola, sua permanência estava condicionada a uma experiência, porém durante este período sua mãe efetuou a matrícula. Isto acabou provocando na instituição sentimentos de traição e de ruptura de um contrato informal feito com a creche.

A recepção de Ana foi marcada por dificuldades na convivência com a escola, afirmada por todos os níveis hierárquicos. Houve solicitação por parte da escola aos responsáveis pelo atendimento dela no Lugar de Vida, de um laudo psicológico que demonstrasse a necessidade de sua transferência para uma escola Especial. As atividades do Ponte estavam iniciando e houve tentativa de aproximação com a equipe da escola, porém a resposta foi negativa, uma vez que apenas interessava um laudo sobre as condições de aprendizagem de Ana, que oficializasse seu desligamento. Apesar das intervenções da equipe do Lugar de Vida, Beatriz, sua professora, continuava afirmando que era a mãe quem se negava a deixar Ana em sua sala, preferindo a professora Célia.

A permanência de Ana na escola foi aos poucos se tornando possível.

Com a professora Célia, ela perdeu as atitudes agressivas e a de se despir, permanecia em sala de aula e fazia algumas atividades.

O Ponte conseguiu a inserção na escola através desta professora, que nos convidou para assistir a uma exposição de artes de sua classe. Na exposição, a professora Célia apresentou os trabalhos de Ana como objetos que demonstravam sua falta de coordenação motora e dificuldade de aprendizagem. Demonstrava também questionamentos a respeito da permanência da menina na escola. A intervenção da equipe foi a de procurar estabelecer um trabalho com a escola através da escuta, da compreensão de suas dificuldades e do reconhecimento do trabalho feito com as crianças. Mostramos o quanto Ana pôde se beneficiar com a escolarização e suas conquistas, tais como: permanecer em sala de aula, submeter-se a um trabalho com objetivos pré estabelecidos, a possibilidade de ouvir sugestões de colegas e, a partir disso, modificar sua produção. A professora Célia, preocupada com a aquisição de conteúdos programáticos escolares, até então não voltara seu olhar para os avanços de Ana nas relações sociais. A partir da nossa leitura, ela pôde reconhecer os progressos de seu trabalho e a importância deste para sua aluna.

Devido à restruturação do ensino na rede pública4 Estadual no início deste ano, Ana voltou a estudar com a antiga professora, Beatriz. A mãe, no entanto, recusou esta situação e passou a não levá-la mais à escola.

Na retomada dos trabalhos do Ponte, novo convite foi formalizado à escola e aceito pela professora, que passou a frequentar reuniões quinzenais com a equipe.

Durante as reuniões, a professora Beatriz contou dos sucessos que obteve com seus alunos em sala. A postura da equipe foi de incentivar a sua fala para que pudesse aparecer o motivo que a levou ao Ponte e seus questionamentos, acolhendo-os.

Segundo a professora, os obstáculos colocados pela diretora para a permanência da menina eram tantos que a própria equipe do Lugar de Vida começava a acreditar que o melhor era mesmo a sua saída. Algumas atitudes da criança, apontadas pela escola na tentativa de justificar o desvio de comportamento, eram reduzidas à indisciplina, sendo a responsabilidade atribuída à educação familiar. Por sugestão do Lugar de Vida, Ana permanecia uma hora por dia na escola. Ainda de acordo com a professora, todos estes fatos eram motivo para que a diretora, D. Diva, quisesse a saída da menina.

Diante da possibilidade do Ponte solicitar a transferência da menina para uma nova escola, as atitudes da professora Beatriz passaram a deixar claro o quanto dependia dela construir uma situação através da qual Ana pudesse ser aceita. Ao mesmo tempo em que dizia querê-la como aluna, insistia em colocar nas mãos da diretora a decisão final a este respeito: "Eu morro de dó da Ana, é desumana a situação dela. Eu sinto vontade de conversar com a D. Diva sobre essa criança e com a D. Diva a gente tem que falar com jeitinho".

A partir da sua própria fala e da atuação do Ponte, a professora Beatriz começa a se implicar em seu desejo de permanecer com Ana, mas ainda atribuindo a responsabilidade deste à Diretora. "É claro que a D. Diva não queria ver a Ana fora da escola". "Vou dizer o quê para D. Diva, vou me responsabilizar por isso?". "Quando acontece de pegar uma criança destas eu não falo nada para ninguém, senão a diretora se pega nesse discurso e a expulsa de lá". "Como você chega na diretora e pede para a Ana ficar?". "A D. Diva é bem coesa, porque vai tentar todas as formas para só depois falar que não dá mais". O desenrolar disto levou a professora a pedir diretamente à diretora, D. Diva, uma chance para Ana permanecer na escola. O trabalho do Ponte foi o de evidenciar para Beatriz, o seu próprio desejo de ficar com a menina.

A partir deste momento, passa a falar de planos de trabalho, apresentando várias alternativas caso um deles não funcionasse: "A Ana passou a ser um desafio para mim. É impossível que não haja uma forma de trabalhar com ela, tem de haver um jeito... Eu sei que vai demorar...", "vou fazer um trio de trabalho dentro da sala... às vezes eles se entendem melhor do que com o professor", "Se não der para ela ficar na sala, vou para a quadra... estou pensando em ir com eles ao zoológico, ao parque...".

Após a notícia da possibilidade de Ana voltar à escola e os planos de trabalho da professora, o não comparecimento da menina às aulas deixou Beatriz muito inquieta, não bastando a informação de que sua mãe viajara a fim de um tratamento de saúde: "Precisaria que a mãe não ficasse na escola, porque a Ana, perto dela fica mais agressiva, e ela sabe que a mãe fica no portão"."O problema da Ana é a mãe...".

Apesar disto, a volta de Ana reservou a todos grandes surpresas. Conta a professora que para aquele dia estava marcado um passeio ao Museu. "Levei um tapa com luva de pelica da Ana... pensei em não deixá-la ir ao passeio porque ela iria colocar o Museu 'de cabeça pra baixo', e ela se comportou muitíssimo bem". Este encontro pareceu-nos importante para que a professora Beatriz passasse a ver Ana de uma forma diferente, como uma aluna com algumas dificuldades emocionais, mas capaz de aprender. Isto possibilitou à criança partilhar das atividades de seus colegas e construir laços sociais. A professora Beatriz não questiona mais se a escola é um lugar para Ana, pois tem certeza de que lá existe um lugar para ela; "Se eu for usar o critério do Q.I. (...) então só sobra 1 ou 2 na classe, a Ana é muito inteligente". Questiona agora o papel do professor, podendo colocar algumas dificuldades da relação professor-aluno que considera como principal problema dentro da sala de aula: "algumas crianças não deveriam estar em classe especial porque o problema é a professora que não usa a linguagem correta e não consegue se comunicar."

A professora está agora passando por um período em que pode questionar o que considerava definido, levantando novas idéias, começando a se ver de maneira diferente no seu papel de professora. Isto faz parte de um processo que ainda está longe do final, mas que já implica em uma mudança de posições da professora e da aluna.

Percebemos a importância da estratégia de trabalho5, uma vez que esta é responsável pela mudança de discurso e posição. A possibilidade de um espaço no qual o professor possa ser ouvido sem ser avaliado, sentindo-se respeitado em seu trabalho, reconhecido e valorizado por este, deixa-o à vontade para trazer o que considera importante, da forma que acredita ser correta. Disto é que surgirá sua implicação com seu próprio desejo, que tornará possível o giro de seu discurso e, conseqüentemente, uma mudança de olhar em relação a seus alunos e até a si mesmo. Não será mais necessário tentar mostrar-se impotente para atuar, culpabilizando a criança, a família, ou a escola, nem sequer esconder-se por trás de normas e estatutos que justifiquem a transferência da criança para uma escola especial. Ele será capaz de se comprometer com seu desejo e com os destinos desta criança.

Isto poderá ser ampliado à comunidade escolar, uma vez que a criança diferente leva a florescer "perguntas, prejuízos, medos, questionamentos, interesses que requerem de uma escuta atenta que permita sua circulação" (Enright & Mokotoff, 1994). Este pode vir a ser um dos caminhos possíveis para a integração plena a que se refere Caniza de Páez.

Sabemos que muito ainda temos que caminhar e aprender neste processo, mas já percebemos que muito ganhamos e que a cada vez que retomamos o que já foi feito, mais nos enriquecemos com as reflexões, e esta, provavelmente, é a grande contribuição da psicanálise ao nosso trabalho, o de permitir uma ressignificação constante de tudo que está aparentemente posto.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CANIZA DE PAEZ, S. M. (1994a). Efecto búmerang: lamado a la reflexion sobre la integración de personas discapacitadas a diferentes instâncias de la vida comunitária. Escritos de la Infância, v. III, p. 29-38.         [ Links ]

_____. (1994b). Integración en y desde la família. Una responsabilidad compartida. Escritos de la Infância, v. IV, p. 31-41.         [ Links ]

_____. (1989). Integración: iderecho u obligación? Trabalho apresentado nas Jornadas de Integración; Santa Fé. (mimeo).         [ Links ]

ENRIGHT, P. & MOKOTOFF, N. (1994). ?Integración dei nióo discapacitado en el jardín común? Una respoesta que se arma en la singularidad. Escritos de la Infância. v.IV, p.51-55.         [ Links ]

FOLBERG, M. (1993). Criança psicótica e escola pública. In: FLEIG, M. (org.) Psicanálise e sintoma social. São Leopoldo: Editora da Unisinos, p. 157-167.         [ Links ]

JERUSALINSKY, A. (1993). Psicose e autismo na infância: uma questão de linguagem. Boletim da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, v. IV, n.9.         [ Links ]

_____. (1996). A educação é terapêutica ? Seminário apresentado no Curso Psicose e Autismo na Infância: Diagnóstico, Tratamento e Escolarização. Pré-escola terapêutica - Lugar de Vida, IPUSP, São Paulo, (mimeo).         [ Links ]

SALDANHA, L. B. (1993). A escola: da transmissão à promessa. In: FLEIG, M. (org.) Psicanálise e sintoma social. São Leopoldo: Editora da Unisinos, p. 149-156.         [ Links ]

 

NOTAS

1 Extratos de uma palestra proferida no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo em 17 de junho de 1996.
2 Os nomes aqui mencionados foram mudados a fim de garantir o sigilo às pessoas a quem se referem.
3 Na rede estadual paulista, a classe especial atende crianças definidas como deficientes mentais leves.
4 No início de 1996, o Estado de São Paulo promoveu uma mudança nas escolas, que entre outras coisas, acabou redistribuindo o local de trabalho de muitos professores.
5 Também é oferecida aos professores, a oportunidade de participarem de cursos semestrais organizados pela Pré-Escola Terapêuica Lugar de Vida, onde podem obter mais informações para um melhor entendimento de seus alunos.