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Estilos da Clinica

Print version ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.2 no.2 São Paulo  1997

 

RESENHA

 

Laznik - Penot, M-C. Rumo à palavra. São Paulo, Escuta 1997

 

 

Monica Seincman

Psicanalista, mestranda do Programa de Psicologia Clínica da PUC-SP, pesquisadora do Laboratório de Psicopatologia Fundamental da PUC-SP

 

 

Marie-Christine Laznik-Penot teve publicado, recentemente, seu primeiro livro: Vers la parole. Trois enfants autistes en psychanalyse. É um livro eminentemente clínico no qual encontramos o relato das análises de três crianças autistas acompanhadas pela autora. A publicação de casos clínicos em psicanálise está nitidamente relacionada com a sua evolução. Segundo Widlöcher (1996), esta é sempre uma das formas mais importantes de demonstrar novas perspectivas técnicas e teóricas.

Ao longo de Vers la parole, há alguns diálogos que vão se entre tecendo. O primeiro diálogo se dá com o leitor.

A partir de três casos - Mourad, Halil e Louise -, os relatos clínicos de Marie-Christine e sua teorização vêm com um tom quase que coloquial, um tom que não procura o rococó ou o hermetismo, tom sempre presente, aliás, em suas falas. O que é, diga-se de passagem, a meu ver, intencional, casando com bastante leveza uma clínica difícil e complexa com a teoria que lhe serve de suporte. Nesse diálogo com o leitor - mais especificamente, neste caso, o leitor sendo eu -, surgiu um efeito muito interessante: da primeira à última palavra do livro, não consegui me desvencilhar da voz da autora. Vers la parole foi-me, dessa forma, como que lido, contado com as entonações e cortes que são peculiares a Marie-Christine, adquirindo o estatuto de uma fala, passando, assim, do registro da escrita para o registro oral. A princípio, pensei que essa sensação passaria, que fosse, talvez, devida ao fato de ser o relato de um caso. Apesar das explicações que procurei e de algumas hipóteses que levantei, não cheguei a uma conclusão.

O segundo diálogo se dá numa triangulação: Kanner, Marie-Christine e Lacan. O livro começa assim:

Kanner, em seu texto princeps de 1943, declarava que no autista a linguagem não foi feita para comunicar: não via nenhuma diferença, nos autistas, entre os que falam e os que não falam. A quantidade de salmos e poemas que alguns pais lhes ensinam não seria, pergunta-se ele, uma das causas de seus problemas de comunicação?

Em uma pesquisa que conduziu trinta anos mais tarde, ele observa que, paradoxalmente, as crianças embebidas de linguagem são as que conheceram as evoluções mais favoráveis. É difícil deixar de pensar que essas palavras, mesmo que decoradas, produziram neles efeitos de mutação estrutural. No entanto, a partir de 1946, Kanner falava de sua surpresa diante da capacidade poética e criadora da linguagem das crianças autistas. Ora, somente o anátema que estabeleceu sobre essa linguagem passou para a posteridade, marcando com sua influência várias gerações de educadores e terapeutas (p. 13).

A síndrome que Kanner nomeou em 1943 é caracterizada atualmente pela Associação Psiquiátrica Americana (1980) pelos seguintes critérios:

a. início dos sintomas antes da idade de 30 meses; b. ausência constante de reação em relação ao ambiente; c. grande déficit do desenvolvimento da linguagem; d. se a linguagem existe, apresenta formas particulares, como linguagem metafórica, inversão pronominal e ecolalia diferida; e. respostas bizarras a diferentes aspectos do ambiente como, por exemplo, resistência à mudança, interesse ou apego particular a objetos animados ou inanimados; f. ausência de fantasmas, alucinação, perdas de associações e incoerência, contrariamente à esquizofrenia.

Ainda é esse, majoritariamente, o quadro considerado característico do autismo pelo saber médico, quadro que dá lugar à fixação do autismo como uma patologia sem saída, sem possibilidade de trabalho que pressuponha uma mudança de posição psíquica.

Mesmo tendo sido advertida, logo de início, a respeito do segundo Kanner, não pude deixar de esquecê-lo durante a "escuta" do livro, indo recuperá-lo somente no último terço. Esse segundo Kanner, o de 1946, mostra, em seu artigo "Irrelevant and metaphorical language in early infantile autism", "como ele se deixou ensinar pela clínica das crianças autistas até descobrir a insuspeita riqueza dessa mesma linguagem que tanto havia atacado três anos antes" (p. 192).

Assim, através do relato clínico dos casos de Halil, Louise e Mourad, e tendo como suporte a fundamentação teórica de Lacan, Marie-Christine vai fazendo um acerto de contas apaixonado com Kanner e relatando ao leitor o que ela mesma aprendeu com esses pacientes. A paixão da autora, que contagia e de certa forma maravilha o leitor, já se faz presente desde a dedicatória do livro que está endereçada àquelas três crianças, paixão esta que perpassa o restante dos relatos e do trabalho realizados. O leitor não precisa, necessariamente, ser psicanalista para tirar proveito destes relatos, mas, se assim o for, e se tiver uma clínica com crianças autistas, certamente compartilhará desse maravilhamento, trazendo um alento e a possibilidade de um olhar outro para essa clínica muitas vezes frustrante, devido à nossa onipotência, impossibilidade, ou mesmo ansiedade.

Mas destaquemos, aqui, a questão da paixão, que não pode de forma alguma ser descuidada. Se chegamos ao relato de um caso clínico, ao meu ver, temos de necessariamente estar apaixonados pelas questões que esse caso traz. Mas, como assinalou Widlöcher (1996), o grande perigo dos relatos de caso é a "sedução pela qual o leitor passa a se relacionar com o trabalho psíquico do analista." Quem relata um caso espera poder ilustrar um ponto de vista técnico ou teórico e, com isso, provocar um debate.

O leitor encontra prazer em se relacionar com o trabalho psíquico do psicanalista, mas não está interessado na tese proposta. Ao ler o caso, o leitor "se sente como um psicanalista" sem ter de sofrer as dificuldades reais do tratamento - a resistência do paciente e a do próprio analista, as trivialidades e repetições das quais se tiram os traços significativos. Em suma, todo o trabalho que deve ser feito é, na verdade, evitado, e somente o atalho entre as palavras do paciente e a demonstração do autor permanece.

Esta observação aguçada de Widlöcher serve de advertência à sedução proposta pelo texto de Marie-Christine aos leitores desavisados. Na verdade, o trabalho com autistas e "pós-autistas" é um trabalho duro, complexo, penoso e demorado (sendo que nada disso retira-lhe o caráter instigante), e, por vezes, leva-se muito tempo para que os avanços sejam vistos. Se o leitor conseguir não ceder à tentação de maravilhamento desses relatos, poderá encontrar um fértil campo de discussão enlaçando teoria, técnica e clínica.

Se o primeiro diálogo do livro fora com o leitor, e o segundo com Kanner, já o terceiro coloca a autora como uma interlocutora de si própria. Em outubro de 1995, quando apresentou, em Salvador, no Encontro O Século da Psicanálise, um caso que acompanha de uma criança autista que faz cortes cinematográficos, dizia que esse caso lhe colocava uma questão: como poderia esse menino fazer uso da linguagem cinematográfica, se o autista não tendo ainda se constituído como sujeito não tem linguagem, não acedeu ao simbólico? Essa questão, como o atesta o caso de Louise publicado no Boletim de Novidades4 de dezembro de 1992, já estava presente anteriormente e trazia à cena a questão da subjetivação. Quando é que o infans se torna sujeito, e quais são as características desse sujeito, sujeito do inconsciente, sujeito alienado, sujeito desejante? Surgem, então, para Marie-Christine dois tempos, um da alienação e o outro da separação.

Logo na introdução ela escreve o que deveria ser óbvio, mas que de maneira alguma o é:

Quando o analista assume o tratamento de uma criança autista, faz uma aposta que, ao reconhecer em qualquer produção da criança, gestual ou linguageira, um valor significante e ao se constituir, ele mesmo, como lugar de endereçamento do que considera desde então como mensagem, a criança vai poder se reconhecer a posteriori como fonte dessa mensagem. O analista toma, então, por momentos, o lugar do Outro primordial. Mas ele antecipa também o sujeito a vir, ao interpretar toda a produção como um ato colocado pela criança como tentativa de advir a uma ordem simbólica que lhe preexiste.

O trabalho com uma criança autista se efetua inversamente à cura analítica clássica: o objetivo do analista não é interpretar os fantasmas de um sujeito inconsciente já constituído, mas permitir a um determinado sujeito advir. Ele se faz aqui intérprete, no sentido de tradutor de língua estrangeira, ao mesmo tempo em relação à criança e em relação aos pais. [...] Esse primeiro trabalho de tradutor vai permitir aos pais olhar a criança em seu brilho de chama lá onde não viam, por vezes, mais do que um dejeto. Dessa forma, a mãe poderá reencontrar sua capacidade de ilusão antecipatória; ou seja, sua aptidão para escutar uma significação lá onde talvez só haja massa sonora - o que Winnicott chama a loucura necessária das mães. (pp. 14-15)

E, baseada nesse princípio, vai empreender os seus tratamentos com autistas, ocupando várias vezes essa posição de Outro primordial que possibilita o nascimento do sujeito. Mas ela lembra também que somente a subjetivação não é suficiente, ou seja, só a alienação não basta, é necessário haver a posterior separação entre dois sujeitos já constituídos, para daí haver a possibilidade de fantasmatização. Amplamente exemplificados pelos fragmentos de sessões e seus comentários, estes e outros conceitos são discutidos.

E, lembrando mais uma vez Widlöcher, se o leitor não for levado pela sedução, as questões colocadas nesse livro servirão como fonte para uma rica reflexão daqueles que, em sua clínica, trabalham com autistas, com crianças e, por que não, daqueles que trabalham na clínica psicanalítica.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

WIDLÖCHER, Daniel. (1996) Um caso no es um hecho. Libro Anual de Psicoanalisis, v.II, p. 229 - 240.         [ Links ]

LAZNIK-PENOT., M. Christine. (1992) O espanto do Outro materno. In: Boletim de novidades da Livraria Pulsional, n.44.         [ Links ]