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Estilos da Clinica

Print version ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.2 no.3 São Paulo  1997

 

ARTIGO

 

O sujeito na clínica do desenvolvimento infantil

 

 

Domingos Paulo Infante

Diretor do serviço de Psiquiatria e Psicologia do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas da FMUSP; psiquiatra e psicanalista

 

 

Abordemos a questão pelo seu aspecto mais urgente: a direção a dar ao tratamento de uma criança. Tomemos como exemplo uma situação em que habitualmente a demanda não chega ao psicanalista. Refiro-me a bebês, com poucos meses de idade, e que podem apresentar distúrbios de várias ordens. Vamos restringir ainda mais nosso debate, escolhendo um sintoma: o refluxo gastro-esofágico (RGE). Ele é assim chamado pelos pediatras e consiste numa incoordenação do fluxo alimentar que leva a frequentes regurgitações; a reações inflamatórias do estômago e esôfago; a distúrbios nutricionais, além de riscos de aspirações pulmonares que, por sua vez, podem levar a distúrbios respiratórios.

A medicina cerca o RGE com seu aparato. Pesquisa-se a técnica alimentar; mede-se o nível de acidez ou alcalinidade; examina-se em loco as mucosas gástrica e esofágica; o grau de abertura entre esôfago e estômago; verifica-se o potencial alergênico da alimentação, etc. Dessas mensurações chega-se a um diagnóstico e este leva a um tratamento: medicações; orientações quanto ao decúbito; medidas em relação à consistência dos alimentos e, em última instância, à intervenção cirúrgica para diminuir a abertura entre o estômago e o esôfago, que seria incontinente.

Toda essa abordagem parte de pressupostos mecanicistas e biológicos. Nesse contexto a criança é objeto de pesquisa para uma medicina cada vez mais científica. O impensável para o discurso médico, sobretudo no que diz respeito à primeira infância, é que o RGE possa ser uma resposta do sujeito. não por um particular desprezo pelo sujeito, mas por uma exclusão exigida pela ciência.

O que está em jogo é uma questão de causalidade. O sintoma, para o discurso médico, remete necessariamente a uma causalidade da ordem do organismo, de base anatomo-clínica e aí se esgota.

Freud, já no Esboço, parte da hipótese de uma causalidade psíquica. O sintoma nesse contexto é decifrável e não depende de nenhuma disfunção do organismo. O sistema psi, no seu funcionamento prazer-desprazer, recalque, substituições, formação de sintoma, não necessita de nenhuma lesão localizável para ter sua lógica de sustentação.

Para enfatizar a diferença entre uma abordagem e outra, podemos citar o caso de uma criança de três meses que começa a apresentar um refluxo importante e cuja mãe, fonoaudióloga, nos relata que a criança começou uma atividade de chupar o polegar, a qual ela impedia em nome de uma profilaxia da futura dentição e do aparelho fonatório. A retirada da interdição, imediatamente, eliminou o sintoma. O RGE era a resposta do sujeito a uma intrusão do Outro. O importante a notar, na aparente banalidade desse caso, é que à intrusão materna poderia se seguir a intrusão dos cuidados médicos, com provável acentuação do sintoma e uma evolução desastrosa para a criança.

A questão que nos colocamos, a partir desse exemplo, tomado da clínica médica, é se relações e articulações podem se estabelecer entre o que a psicanálise teoriza e verifica na ordem da subjetividade, e os outros campos, seja ele médico, pedagógico ou psicológico.

Podemos responder quanto ao que se refere à clínica médica, com a qual trabalhamos. A inclusão do sujeito modificaria, certamente, a clínica como ela vem sendo praticada até aqui, haveria, sem dúvida, uma redistribuição de prioridades nas escolhas terapêuticas, os diagnósticos não seriam concluídos somente a partir do olhar clínico, mas também de uma escuta do sujeito. Otimismo exagerado? Talvez, mas a alternativa seria manter os impasses que a cientificidade médica acentua, na sua tentativa de excluir o sujeito. De qualquer forma, isso não depende da boa vontade deste ou daquele médico, mas dos efeitos de um discurso.

A psicanálise não é uma teoria desenvolvimentista. A constituição da subjetividade não é um dado natural com um moto próprio, que a garantiria a partir de um núcleo qualquer. A estrutura da subjetividade, através da dialética entre os registros real, simbólico e imaginário. Não há nada ao nível do instinto ou do inato que possa garantir o advento do sujeito. O discurso psicanalítico tem um tempo próprio, que não é o da linearidade cronológica. Seu tempo é o da escansâo e o do efeito retroativo (après coup), cuja matriz é dada pelo grafo de Lacan:

Lacan, no Seminário 11 formula as duas operações lógicas da constituição da subjetividade: a alienação e a separação. O sujeito advém de uma alienação à linguagem, no Outro, e pela separação do objeto, um resto não passível de inscrição e que é a causa do desejo. Já no Seminário 4, Lacan nos dá uma lógica da estruturação do sujeito em termos da dialética pré-genital através da dialética entre frustração, privação e castração. Se essa dialética não é cronológica, ela tem, porém, uma seqüência lógica de escansões na constituição do sujeito, cujas vicissitudes dependem do dispositivo dado pelo Outro para que o sujeito possa se efetuar.

Mais recentemente, Marie-Jean Sauret em sua tese Do infantil ã estrutura (1989) retoma, via Freud e Lacan, a lógica da constituição subjetiva e as coordenadas estruturais, que marcam cada escansão dessa lógica.

Assim, partindo do irredutível de uma transmissão (Lacan, 1987): o desejo materno, com sua equivalência criança-falo, e a lei paterna temos:

1- Incorporação simbólica.

Momento da inscrição pulsional, da dialética entre o grito e a função simbólica da mãe, na sua alternância de presença-ausência. F pela mediação simbólica da mãe que o grito será tomado como apelo em seu valor diferencial. A partir da inscrição do grito como significante, a tensão fisiológica que antecede à experiência de satisfação será identificada como gozo do Outro. Temos aí a separação em dois complexos mencionados por Freud no Esboço, o lado da cadeia do desejo na metonímia dada pela inscrição significante do grito e do das Ding, a coisa da satisfação que, como tal, fica no real não inscrito. Separação, portanto, entre desejo e gozo. Essa metaforização do gozo fará o leito de todo fantasma vindouro.

Se a mãe aqui exerce uma função simbólica, o objeto é o objeto da necessidade no registro do real. A significação da tensão fisiológica como gozo do Outro, designa o sujeito como frustrado.

É o excesso de gozo pela intrusão do Outro que dará suporte aos eventuais sintomas. As vicissitudes da incorporação pelo simbólico vão do autismo aos efeitos psicossomáticos até à melodia pulsional (termo freudiano), que coordena funções corporais-simbólico.

2 - O infantil propriamente dito.

Transmutação do objeto da necessidade, do registro do real, em objeto de dom simbólico do amor materno, concomitante à transmutação da mãe do registro do simbólico (alternância presença - ausência) para o registro do real. Mãe toda potência, pois detém os objetos da satisfação.

O objeto de dom é insatisfatório de estrutura, por representar apenas o amor materno e não sê-lo. Frustração novamente, mas desta vez frustração amorosa e não de gozo, como no momento anterior.

Entre a frustração amorosa e a frustração de gozo se estabelece uma dialética de compensação, onde a frustração do objeto de dom tentar-se-á compensar com o objeto da necessidade. É numa dialética desse tipo que se inscrevem a obesidade e a anorexia, por exemplo.

3 - A neurose infantil.

A frustração amorosa, dada pela degradação do objeto de dom, aponta para além desse objeto e a potência da mãe real é atingida. Algo falta à mãe. Angústia, portanto, frente a essa castração materna, não sem a tentativa de ser ou ter aquilo que falta à mãe. Angústia que só será apaziguada pela significação fálica, dada pelo complexo edípico e seu declínio.

4 - Complexo de Édipo e seu declínio.

Descoberta da significação fálica, resposta ao enigma do desejo e da castração maternas. É a função paterna que aí deve atuar para promover a assunção do falo imaginário a falo simbólico e a introdução da lei no desejo. O sujeito, via metáfora paterna, terá uma identidade no sexo e recalcará o mito individual como fantasma.

5 - Tempo de latência. Segue-se ao recalcamento do mito individual e corresponde ao tempo para compreender a castração.

As teorias desenvolvimentistas, inspiradas ou não na psicanálise, tendem a criar uma clínica baseada no deficitário, a criança como um adulto subdesenvolvido, e não nas escolhas do sujeito.

As escansões acima delineadas não se prestam a nenhuma psicoprofilaxia médica ou psicológica.

O que leva uma criança à análise é o excesso de gozo, tendo como suporte o sintoma. O que visa a análise é a recondução do sujeito, assim fixado ao gozo, ao seu processo de efetuação como sujeito. Em outras palavras, visa a metaforização do gozo para que ele reapareça na lei invertida do desejo. Nesse sentido, podemos dizer até onde deve ir a análise de uma criança. Ela deve permitir que o sujeito vá até o fim do processo correspondente a cada escansão.

A escuta do discurso familiar tem sua importância, pois é a partir dos significantes disponíveis nesse discurso que podemos discernir o lugar que a criança ocupa no imaginário dos pais e ao qual ela responde, às vezes, com seu sintoma.

Não existe uma psicanálise da criança. A psicanálise é uma só e se dirige ao sujeito. Tal afirmação faz com que o significante criança retorne para o discurso analítico como enigma. O que é uma criança? Responderíamos com MJ. Sauret (1989): condensador ou localização do gozo do Outro; prova falsificada da ex-sistência da relação sexual entre o pai e a mãe; enfim, fantasma fundamental constitutivo do inconsciente: no que a travessia do fantasma coincidiria ao mesmo tempo com a renúncia do pai e com o desabonamento do inconsciente.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

LACAN, Jacques. (1973). Le seminaire, livre 11. Paris: Seuil [1964]         [ Links ].

LACAN, Jacques. (1987). Deux notes sur 1' enfant. El Analiticón. Correo: Paradiso 3.         [ Links ]

LACAN, Jacques. (1994). Le seminaire, livre 4. Paris: Seuil [1956-1957]         [ Links ].

SAURET, Marie-Jean. (1989). De Vinfantile à la structure. Tese de doutorado apresentada à Universidade de Toulouse.         [ Links ]