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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.2 no.3 São Paulo  1997

 

ARTIGO

 

A palavra e os sons: um caso clínico1 de uma criança surda e muda

 

 

Rinaldo Voltolini

Psicanalista; doutorando em Psicologia Escolar na USP; bolsista do CNPq

 

 

Flávio2 nos chega ao consultório aos 11 anos. Absorvido em uma surdez severa (quase absoluta segundo os exames médicos), ao que tudo consta, de nascença, e que traz como consequência uma mudez artificial, instalada não porque não tem a voz, mas porque é incapaz de ouvi-la.

Flávio nos coloca um problema: como conduzir uma análise (se é que é possível) de alguém que não fala e não ouve?

Contam-nos que Flávio fora encontrado ainda pequeno na rua, por volta dos 5 anos (idade calculada pois não houve documento encontrado) abandonado, e que todas as tentativas de localizar sua procedência foram frustradas. Sua história, até esta idade, permaneceu e permanece até hoje "em silêncio". A única coisa construída discursivamente sobre este período é a suposição de que sua deficiência teria sido o motivo do abandono.

De lá pra cá, o menino que foi acolhido por uma instituição que cuida cia orfandade, divide seu tempo diário entre esta e outra instituição, escolar, especializada em educação para surdos-mudos. E é esta escola que solicita à "instituição-mãe" que encaminhe o menino para um atendimento psicológico.

Flávio não lê, não escreve, nem aprendeu a linguagem dos sinais. Isto tudo, entretanto, é creditado na conta de sua deficiência, ocupando posição apenas periférica na queixa. Em relação a isto, diríamos, Flávio é visto como "objeto" de sua deficiência.

A queixa colocada pela escola é que após uma atividade com sucata feita em aula, em que Flávio construiu uma bicicleta e levou-a "para casa", teve-a completamente destruída, depois do que nunca mais fora o mesmo. Ficara introvertido, indisposto, triste.

A instituição-mãe diante das solicitações feitas pelos técnicos da escola, mobilizou-se a buscar o atendimento psicológico, mediante o fato (é importante ressaltar) de que existia um convênio3 entre nossa clínica e a Federação de entidades assistenciais da cidade, que custeava os atendimentos e do qual ela podia se beneficiar. É assim que Flávio nos chega.

Não podíamos nos abster do fato de que sua deficiência nos aparecia como uma interdição ao tratamento analítico. Aceitamo-lo, contudo, condicionadamente, mas qual paciente não é ouvido em entrevistas preliminares com a condição de que sua entrada em análise está em suspense?

Aceitamo-lo, pois, um analista não rejeita um pedido de análise "sem escutar".

Na primeira entrevista marcada comparece apenas a coordenadora da instituição mãe, sem o menino. Na sala, a coordenadora, "toma a palavra" e fala do menino de maneira bastante diferente dos técnicos da escola. A tal cena da destruição da bicicleta nem é enunciada; o que ela enuncia são os avatares da "deficiência" dele e os problemas que isto causa à instituição.

O centro de suas preocupações pode-se resumir em uma frase, enunciada por ela mesma: "o que será dele quando 'sair' da instituição, quando fizer 18 anos?"

O menino "não" quer ir à escola (às vezes desaparece no horário que o ônibus passa, ou se atrasa de propósito para não poder ir), "não" está aprendendo um ofício do qual pudesse se valer para se sustentar, "não" consegue aprender as condições mínimas para se comunicar (é curioso destacar que em nenhum momento ela coloca que alguém na instituição aprendeu esta linguagem para se comunicar com ele ou ainda estimulá-lo).

Flávio nunca está no lugar "desejável" (melhor dito, ideal); seria Flávio "indesejável"? Por que se preocupar com o que lhe acontecerá quando "sair" da instituição? Por que não supor (como o faz a maioria dos pais que chegam ao consultório) que a analista gostaria de ver o menino já no primeiro encontro, de escutá-lo também? Será que é porque ele "não" fala? Ou será que havia um receio de que ele escutasse o que iria ser dito? Já que ele "não..." podemos "deixá-lo lá"?

Já se havia escutado algo importante; já se havia escutado como a "mãe fala do filho" era necessário agora "ouvir o que tem o filho a falar!"

Mas ele é mudo! Será?

A noção de linguagem que a psicanálise faz advir supera a condição fonoaudiológica. Não se trata de ser capaz de fonoarticular sons comumente partilhados para que se possa ser chamado de "ser-falante". Trata-se, isto sim, de se engatar em uma cadeia de significantes que representam o sujeito para outro significante, ou seja, trata-se da possibilidade de ocupar lugares em relação ao Outro, fazer laço social. Lugares que não são naturais porquanto não se definem a partir de uma relação instintivamente determinada e não se repetem igualmente em todos os seres da espécie, mas, antes, lugares construídos em relações específicas e que fazem com que todas as relações posteriores comportem as vicissitudes desta especificidade.

Além disto, sabemos, que os surdos-mudos podem desenvolver a "linguagem dos sinais", podem "ouvir com os olhos" e "falar com as mãos". Magnífica força do significante, capaz até de contornar as adversidades do aparato biológico, dada a pujança da "necessidade" (?) de falar.

Alguns preferem ver neste fato uma tendência "inata" para a adaptação: na falta ou defeito de funcionamento de um órgão, vale-se de outro para improvisar a função. E isto por questão de "sobrevivência.

Mas se assim for, como explicar então, a existência de pessoas (como Flávio, por exemplo) que não desenvolvem a linguagem dos sinais? E sua tendência inata à adaptação? Eles são deficientes também nisto?

Esta abordagem que biologiza o homem traz como consequência a idéia de que as diferenças são sempre defeitos. Não há espaço para se pensar em uma singularidade, uma vez que um deve funcionar como todos.

Falávamos acima de "necessidade" de falar. Este termo é equivocado, pois falar não é uma necessidade.

O termo necessidade como nos assinala Freud e Lacan remete a algo da ordem do instinto, que possui uma ritmicidade que submete o indivíduo a buscar uma satisfação que tem a ver com sobrevivência.

Falar, por sua vez, nos ensina a psicanálise, tem a ver com o desejo, que não está submetido ao instinto, pois cria uma nova ordem fazendo nascer uma singularidade onde só existia "funcionamento geral".

Os animais selvagens (aqueles que não foram "d'homesticados", ou seja, não sofreram os efeitos do "banho de linguagem" do homem) não falam, mas sobrevivem.

Falar, portanto, embora também possa ser uma função (é como a capta a fonoaudiologia) é muito mais do que isso. Supõe instaurar uma outra realidade, não natural, organizada a partir de um centro constituído e não inato que gera um saber singular, uma "tese de vicia", irrepetível em sua íntegra.

Por isto, por princípio, haviam razões para supormos que o "não aprender a linguagem dos sinais" de Flávio não era alguma coisa a ser creditada na conta de sua deficiência (até porque, a obviedade o atesta, outras crianças com a mesma deficiência aprendem), mas, antes, algo a ser imputado ao sujeito Flávio. Estávamos diante muito mais de um problema de aprendizagem do que de uma deficiência. O que Flávio "nos falava com isso?"

Magnífica força do significante, dizíamos, capaz tanto de fazer outros órgãos operarem "fora de sua função" como também "não operarem", reduzindo muitas possibilidades, é verdade, mas em nome de alguma coisa imputável ao desejo.

Mas o "fora de sua função" já é alguma coisa que só podemos dizer a partir da posição que vê uma relação necessária e natural entre voz e linguagem. A boca, por exemplo, não seria suposto que sua "natureza" fosse a de comer? Não é verdade, entretanto, que a usamos para beijar, tocar um instrumento, assobiar, etc. É a cultura que define o uso do aparato biológico, não alguma natureza intrínseca.

Podemos supor, especulativamente, que se na aurora da humanidade os homens tivessem privilegiado os braços para através dos gestos se comunicarem e a tradição tivesse se composto a partir deste dado, hoje os mudos seriam aqueles que não têm braços. Poderiam então, usar a voz como substituto. Não há nenhuma razão para supormos a voz como sendo o lugar "natural" da linguagem.

Não é verdade que tudo começou para Freud com o fato de que os exames médicos feitos nas histéricas não revelavam disfunções dos órgãos, capazes de justificar as paralisias? Magnífica força do significante, que pode gerar efeitos no real, pode "falar pelo corpo".

A surdez clínico-médica de Flávio, portanto, não era razão suficiente para pensarmos nele como estando "fora da linguagem" (até porque para a psicanálise não são os surdos-mudos que estão nesta condição).

Flávio vem para a primeira entrevista, entra na sala, senta-se (tudo sempre conduzido pela analista) e frente ao gesto da analista, tentando dizer-lhe que ali haviam coisas disponíveis para ele usar, a princípio, não demonstra reação.

A analista, então, vai até uma pequena lousa e escreve o nome dele e o dela apontando para ambos designativamente (esse gesto iria se repetir todo início de sessão a "pedido dele").

Flávio, após uma apresentação da sala feita pela analista pega o material gráfico e desenha. Os temas de seus desenhos são sempre os mesmos: carros e prédios.

O desenhar o absorve por bastante tempo e com isto termina-se a sessão.

Nas sessões seguintes tal dinâmica iria se repetir. Flávio entra na sala, senta, sugere a escrita dos nomes na lousa, pega o material gráfico e desenha prédios e carros. As intervenções da analista, no sentido de explorar o desenhar e o desenho, de fazê-lo falar, não operam nenhum efeito, quer seja, não despertam nele reação.

Tais atividade, portanto, (as que ele realiza em sessão) parecem estar na posição de permitir que "ele não fale".

Estranho paradoxo, este em que Flávio parece se encontrar: ele "diz à analista que não quer falar".

Sua mudez, portanto, é mais extensa e se decide como dizíamos a partir das tensões do desejo e não se reduz a uma mera deficiência de seu aparato biológico. Tautologicamente, diríamos: seu "não-falar" não é tanto uma clis-função, mas um "não querer falar".

Mas porque ele não quer falar?

Mencionamos o "significante" fato de que na instituição-mãe ninguém pretendeu desenvolver a linguagem dos sinais para falar com ele. Será que a mãe deseja que o filho não fale?

Além do que, e isto também sublinhamos, ele aparece no discurso da instituição-mãe como o que "não..." Não é que Flávio não seja olhado pela mãe, é que ele é olhado como aquele que "não..."

Talvez ele pudesse ter se identificado com esta posição, com este lugar no "desejo materno".

Flávio não vem às sessões de maneira estereotipada. Suas vindas se alternam; ora vem e repete a seqüência que descrevemos acima, ora vem e nada faz.

O curioso é que neste último caso, apesar de sua inatividade em sessão, não "pede para ir embora" (tal pedido ocorreu uma única vez, no final de seu tratamento), ou seja, mantem-se preso à posição de "não-falar". Fica a mercê de uma "autorização da analista", que se vem ele segue de imediato. Permanece ali o tempo que lhe for solicitado; com o abandono ele parece estar acostumado.

Bem entendido, não falo dos abandonos reais que ele sofreu (embora estes devam ter sido decisivos em sua história de sujeito), mas do abandono enquanto posição ocupada em relação ao Outro, abandono, portanto, enquanto inscrito no simbólico.

Flávio vinha às sessões trazido pelo transporte da instituição, quase na totalidade das vezes sem quem o acompanhasse e por várias vezes ficava na sala de espera após o fim da sessão bastante tempo (abandonado) a espera do retorno do transporte para pegá-lo.

Outro fato ainda, a instituição-mãe, na figura de seus representantes, jamais nos solicitaram, "espontaneamente" uma entrevista para falar do menino. Só vinham ou ligavam se chamadas.

O menino havia sido "abandonado em sua análise". Tais abandonos reais (sublinhamos no início quando mencionamos o fato de que Flávio não fora trazido na primeira entrevista, tendo sido "deixado lá") assinalam o desejo da mãe em relação a este filho.

Que outro lugar lhe era oferecido para identificar-se que não o do abandonado?

Talvez por isto Flávio não parecesse muito incomodado com esta posição; haveria um gozo ali?

Por essas razões supomos que a repetitiviclade de suas atividades em sessão não era uma estereotipia ao modo do autista, por exemplo, um ato "tendente à eternidade", sem um antes e um depois, e sim a repetição "transferenciai" de um "não-quero-falar".

Transferência, aliás, com a analista que fica evidente quando por ocasião da necessidade dela se ausentar por duas semanas, não podendo atendê-lo. Volta na sessão seguinte "introvertido, indisposto, triste". Ter-se-ia destruído sua bicicleta de sucata?

A escansão do termo repetição nos dá: repedir, pedir novamente. Da analista ele espera que não o ouça e que o abandone; é isto que ele parece repedir, quando, por exemplo, se absorve em desenhos.

Flávio, portanto, fala e é possível ouví-lo, mas como podemos falar-lhe para que ele ouça?

Num momento a "deficiência" desloca-se dele para nós. mas isto é só parte da questão.

O provérbio de Goethe, citado por Freud (apuei Flarari, 1990): " o que quer que tenha herdado de teus pais, eleves fazê-lo teu", parecia aplicar-se totalmente.

O aparato biológico (herança genética) precisa ser "significantizado" (fazê-lo teu) para que funcione, não em seu automatismo, mas inscrito na cultura, fazendo laço social.

Flávio apesar ele seu aparato biológico apresentar uma deficiência, tinha se construído (com significantes) como um deficiente (algo, aliás, bastante frequente dado o discurso social que é sustentado em relação aos portadores ele anomalias funcionais).

A direção do tratamento parecia ser a ele elesestabilizar esta posição construída. Por aí tentou-se avançar.

Flávio faltou em alguns atendimentos e a esta época nos chega o aviso (é sua escola quem nos avisa) que ele havia sido transferido ele instituição-mãe. Cometera uma falta considerada grave. Segundo informações, ele havia molestado sexualmente, durante a ne)ite, uma menina. Tal fato fora registrado em boletim ele ocorrência, condição jurídica, nos parece, para que se justifique o pedido ele transferência. Havia chegado a hora ele Flávio "sair" ela instituição, e isto antes elos dezoito anos.

Seu tratamento, portanto, é interrompido4 nestas circunstâncias e o eles-tino ele Flávio elepenele agora ele uma decisão jurídica que outorgará a alguém sua tutela.

É curioso notar que este "ponto final" parece definir retroativamente o sentido daquela fala que construía miticamente a razão ele seu abandono pela mãe biológica: "eleve ter sido por causa de sua deficiência".

Fora sua deficiência agora o ejue determinara um novo abandono? Mas ele que deficiência estaríamos falando? Da surdez? ou elaquela que fazia o menino não portar-se da maneira como dele se esperava?

 

CONCLUSÃO

Certamente, a condução desta análise suscita inúmeras questões. Que peso joga os cinco primeiros anos de vida do menino, de cuja história nada se sabe? (está "em silêncio") Que diferença faz ele ser uma criança "institucionalizada", ou seja, como é ficar entre uma mãe biológica desaparecida, uma instituição-mãe que o acolhe e uma escola que busca instrumentalizá-lo? Que peso cada uma destas teve em sua constituição?

A questão, entretanto, por onde pretendemos encaminhar nossa reflexão sobre este recorte do caso é a da linguagem: como é conduzir uma análise de uma criança que não fala e não ouve?

A questão, a princípio, se coloca ao modo de um "versus": linguagem funcional X linguagem como estrutura.

Não se trata de Lima disjunção do tipo "ou uma ou outra", mas sim de uma questão de ênfase.

Muito da psicologia caminhou no sentido de estudar a "questão da sur-dez". A polêmica entre os "oralistas", os "gestualistas" e os "bilinguistas" (Souza, 1995), a outra sobre a necessidade da existência ou não de instituições especiais que criam meios culturais separados da cultura geral.

Todas essas questões trabalharam com a ênfase na linguagem "funcional", com o objetivo de melhorar a situação social "do surdo" (enquanto categoria de pessoas).

Neste sentido, a partir deste ponto de vista, uma análise (ou uma psicoterapia) com um surdo-mudo passa a ser considerada como possível apenas se puder cumprir uma especificidade técnica: a da comunicação entre o par terapêutico, que deve ocorrer através de um código comum.

De outro lado, para a psicanálise, cuja a ênfase se dá na linguagem como estrutura, as questões a serem enfrentadas são de outra ordem. De começo pode-se falar que não existe o "surdo-mudo" (oli ainda que isto é apenas uma ajireensão imaginária), enquanto categoria de pessoas. Se existe tal sujeito com essa característica.

Flávio nos mostrou que apesar de sua deficiência funcional está inscrito na linguagem, pois se é capaz de colocar-se em um lugar em relação a um Outro, é porque organiza-se a partir de um centro construído, singular e não-natural.

Mas como, se Flávio não ouve? Não nos mostra a clínica analítica e as centenas de casos relatados que isto se passa pelas palavras?

Só se pode constatar silêncio no mundo de Flávio ao preço de confundir sons com palavras. A palavra não é um fonema, mas um elemento de Lima cadeia que funciona como vetor de ordem, gerando efeitos de sentido. Por ter seu sentido sempre submetido à relação que tem com outras palavras e não de maneira a colar significante e significado, coloca para o sujeito a condição de estar sempre em relação.

Neste particular, pode se dar sem o veículo sonoro, muito embora a ausência deste veículo crie dificuldades evidentes e permaneça para nós um enigma e um desafio teórico o pensamento de Flávio.

Mas como ficam aquelas observações sagazes de Freud e Lacan acerca da proximidade "sonora" de certas palavras que suscitam os atos falhos?

A tradição psicanalítica. sem dúvida, está toda constituída a partir da palavra "sonorizada". Vem daí nossa angústia inicial, como aliás também as de Cristina Kupfer (1996) acerca do atendimento de crianças psicóticas que às vezes não sonorizam a palavra, sobre atender ou não Flávio.

Mas o que é o som? Uma vibração específica que pode ser captada dependendo de sua intensidade (sabemos que há limiares distintos para diferentes espécies) pelo receptor orgânico que chamamos ouvido.

Como vemos é algo essencialmente físico, sujeito às leis da física e da biologia. Mas não é verdade que a psicanálise não faz outra coisa a não ser alardear que o humano não pode ser "todo explicado" pela física e pela biologia? Ou melhor dizendo, que naquilo que podemos ser explicados por estas duas ciências em nada somos essencialmente diferentes de qualquer outro animal?

Como nos diz Jerusalinsky (1996) "o homem não existe, só 'ex-siste' ", ou seja, existe fora de sua substância (esta sim apreensível pela física e pela biologia). O "verbo", construtor da "ex-sistência" humana, não obedece as leis da física e da biologia; constrói uma realidade própria que obedece outras leis.

Os profissionais que atendem institucionalmente os surdos-mudos comprovam isto quando anotam um fato sugestivo, que, aliás, rompe com uma tradição de pensamento: é possível que sujeitos aprendam (é o caso de alguns surdos-mudos) a língua escrita, sem ter antes a língua falada (oral ou gestual).

Isto mostra que a palavra e o som não são indissociáveis. Mas será que o inconsciente freudiano seria indissociável do som? O assunto é complexo e polêmico, mas achamos que não. Pode-se cometer um ato falho teclando um telefone, ou escrevendo em um papel.

O inconsciente freudiano se revela pela emergência de um sentido onde não se pretendia (egoicamente) que ele aparecesse. É a demonstração de que entrarmos no mundo da "palavra" nos divide.

Flávio estava dividido (pudemos comprová-lo clinicamente). Ele "dizia" (enunciação) que "não-queria-falar" (enunciado).

Além do mais, ele estava aprisionado (alienado em termos lacanianos) ao significante do Outro. A condução de sua análise deveria possibilitar-lhe a separação, quer seja, uma travessia de uma posição subjetiva à outra. E isto, como bem o demonstra a clínica analítica de crianças, também pode ser manejado a partir dos pais (no caso de Flávio, a instituição-mãe).

Este fato já seria razão suficiente para tornar injustificável uma recusa a priori e geral de se tomar em tratamento uma criança surda-muda, alegando ser "tecnicamente" impossível tal condução.

Talvez pudéssemos dizer que para a psicologia, Flávio falar (como qualquer criança surda-muda) era o objetivo, pois isto lhe daria condições de uma melhor "adapatação ao meio", todo ele estruturado a partir da "normalidade que inclui sons".

E por isto que muitas vezes, surgem práticas, nestes meios profissionais, propondo a estas crianças ou mesmo adultos "sentirem" os sons pelo tato.

Estas práticas, curiosamente, em que pesem suas intenções inequivocamente boas, acabam preconceituando o surdo, na medida em que realçam a deficiência, supervalorizando a percepção dos sons. Claro está que elas possuem outros valores importantes que, muito embora, não adentraremos aqui, sob pena de fugirmos de nossa questão.

O fato é que se é assim que a psicologia tem até então, abordado a "questão da surdez", para a psicanálise as coisas se passam de maneira diferente.

O objetivo de Flávio falar não e para um psicanalista, o da possibilidade de uma melhor adaptação, mas o de movimentá-lo de sua posição de "não- querer-falar", ou seja, "desadaptá-lo" daí. E isto, bem entendido, vale para Flávio, não para "todos os surdos-mudos".

Assim o é, pois para Flávio isto está posto como um sintoma. O "não-quero-falar" de Flávio é algo que articula os registros do simbólico, do imaginário e do real. É um posicionamento, condição da linguagem, que tem estrutura intersubjetiva, significante e por isso sensível a ser trabalhado pela via da palavra, está aberto à interpretação.

Neste sentido, não é legítimo falar-se em "deficiência", pois não se está trabalhando com comparações a partir de um padrão normativo.

O "não-falar" de Flávio é tão significante quanto qualquer outro sintoma de qualquer outra pessoa. Como vemos é a noção de linguagem que é tratada diferentemente por ambos os registros: psicologia e psicanálise.

Claro está que a condução deste caso trouxe dificuldades evidentes, por conta da "ausência dos sons", mas a dimensão da palavra não esteve ausente.

Ademais, poderíamos dizer: não é verdade que existem casos em que há presença de sons, mas pouco se fala? E nestes casos nunca se fala em deficiência.

Nesta concepção de linguagem enquanto estrutura, não é uma deficiência física que opõe "resistência" à análise, mas a própria estrutura de fala, dividida entre a enunciação e o enunciado.

Terminemos, pois, ao modo laca-niano, dizendo: não será mesmo que tocla resistência é resistência do analista? O campo das possibilidades da condução desta análise permanece para nós mais composto de questões do que respostas, é um campo a construir. Foi-nos preciso, entretanto, não correr o risco de resistir. Pelo menos podemos "dizer" que a mudez de Flávio nos fez falar.

 

NOTAS

1 Embora esta análise não tenha sido por mim conduzida, pude acompanhá-la do começo até sua interrupção, na condição de "intervisor", membro de um grupo de analistas que discutem os casos atendidos.

2 O nome da criança foi alterado.

3 Tal convênio financia os atendimentos, ficando a cargo da instituição apenas o pagamento de um valor simbólico.

4 Os parâmetros do contrato conveniado impedem a manutenção do tratamento sem que a criança esteja sendo amparada por alguma instituição filiada.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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JERUSALINSKY, A.(1996). Seminário proferido em 05.04.96 e apostilado pela CAC Escolar - USP        [ Links ]

KUPFER, MC. (1996). A presença da psicanálise nos dispositivos institucionais de tratamento da psicose. In: Estilos da clínica, ano 1, n.l, p. 18-33.         [ Links ]

SOUZA, R.M(1995) Educação especial, psicologia do surdo e bilinguismo: bases históricas e perspectivas atuais. Temas de Psicologia, n" 2. p. 71-87.         [ Links ]