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Estilos da Clinica

Print version ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.2 no.3 São Paulo  1997

 

EXPERIÊNCIAS INSTITUCIONAIS

 

Algumas considerações sobre a prática clínica na universidade

 

 

Cristiane SammaroneI; Fernando C. S. MegaleII; Silvia Maia B. M. OlíveiraIII

IPsicanalista; mestranda em Psicologia Clínica na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; professora da Universidade São Judas Tadeu
IIPsicanalista; mestre em Psicologia Escolar pela Universidade de São Paulo; professor da Universidade São Judas Tadeu
IIIPsicanalista; mestranda em Psicologia Clínica na Pontifícia Universidade Católica de ão Paulo; professora da Universidade São Judas Tadeu

 

 

O presente trabalho tem como objetivo percorrer algumas questões que se impõem quando falamos da Psicanálise inserida na universidade. Três eixos básicos estão em jogo e se colocam permanentemente como pontos de reflexão e discussão. Estamos falando da Psicanálise, da formação na universidade e do atendimento à clientes em uma instituição de ensino.

O primeiro eixo indica o lugar da Psicanálise na questão do ensino universitário e que tipo de inserção é possível e desejável que se tenha. Produz-se, com efeito, uma mudança do campo clínico, na medida em que passa-se a pensar a Psicanálise fora do âmbito tradicional, qual seja, o consultório particular e o trabalho individual. Nesse caminho, a Psicanálise passa a sofrer reconstruções em sua origem e em seu lugar "confortável", para se deparar com outros elementos. Aqui falamos da instituição e da cultura que permeiam essa "reconstrução".

O segundo eixo nos fala, ao mesmo tempo, de um processo de formação curricular, permeado pela relação professor-aluno, supervisor-aluno, e de um espaço mobilizado inexoravelmente pelo discurso do mestre. E, sabemos, que há, entre o discurso analítico e o discurso do mestre, oposições, embates e contradições.

O terceiro eixo fala, sobretudo, da clientela que demanda algum tipo de atendimento à instituição e as implicações culturais e de linguagem que batem à porta desta instituição. Estamos diante de contextos culturais e sociais diferentes entre si e complexos em suas peculiaridades.

O trabalho ao qual nos referimos, acontece no Centro de Psicologia Aplicada (CPA), que funciona como clínica-escola do curso de Psicologia da Universidade São Judas Tadeu, onde são realizados atendimentos voltados principalmente para a comunidade da Zona Leste de São Paulo.

Desde o início, nossa proposta foi alvo de muita reflexão, mudanças e, portanto, movimento. Sempre nos questionamos como faríamos isso, onde nos apoiaríamos para poder "ensinar" algo aos nossos alunos. A nós, se apresentava como uma idéia nova. Temos uma formação em Psicanálise e estamos habituados a trabalhar com um modelo tradicional, dentro de um determinado setting, sem um tempo específico para o término do tratamento. Na realidade, só tínhamos um caminho: refletir sobre a prática com a qual nos deparávamos.

O nosso trabalho é de diagnóstico, porém, não se limita apenas a esse objetivo. Partimos de uma crítica a um modelo clássico de formação, onde o psicodiagnóstico é visto, muitas vezes, apenas como um processo intermediário e via de acesso a uma psicoterapia, como propõe Ocampo (1981) e mais recentemente Arzeno (1995), em seus respectivos trabalhos sobre o assunto. Essas autoras tiveram um papel importante ao analisar o processo psicocliagnóstico sob a luz da Psicanálise. Introduziram um pensar psicanalítico em um processo que, até então, se limitava quase a um exercício técnico, porém, caracterizaram o psicocliagnóstico, como uma prática bastante "estreita", com o principal objetivo de investigação. Segundo Ocampo, o processo visa conseguir uma descrição e compreensão o mais profunda e completa possível da personalidade do paciente ou do grupo familiar, e que uma vez atingido esse objetivo, caberia ao profissional formular um diagnóstico e por fim uma indicação clínica.

O que percebemos é que esse modelo tradicional passa a não responder àquilo que ocorre durante o processo. O trabalho proposto realiza-se em, aproximadamente, doze sessões. Na maioria dos casos, recebemos um grupo familiar que se apresenta em torno de uma "queixa", mas nossa escuta visa percorrer de forma mais ampla e rica a demanda em questão. Em grande parte dos atendimentos, optamos por um trabalho paralelo onde pais e crianças são atendidos sem interrupções ao longo do processo, não simplesmente concentrando o trabalho de devolução nas últimas entrevistas. É um trabalho que se propõe interventivo desde o início e requer uma postura mais ativa de ambas as partes.

O trabalho procura escutar esse cliente que nos chega, com sua demanda e produzir efeitos de deslocamento nessa mesma demanda que, inicialmente, pode aparecer como um pedido muito específico ou aprisionado em uma certa imagem de que o estagiário-terapeuta terá uma resposta ou um saber estabelecido a priori. Nessa indicação clínica proposta, isto é, recolocá-lo frente a sua própria demanda, tenta-se promover algo da ordem da mudança. Mas que mudança é essa?

Isso significa estarmos, enquanto supervisores, experimentando o que pensamos ser uma outra forma de trabalho com o aluno e, consequentemente, com o cliente, que não visa a eliminação de sintomas mas sim um posicionamento perante às questões e ao sofrimento que a doença coloca. Portanto, frente à dor e ao desespero de uma criança e seus pais (e mesmo professores, médicos ou qualquer outro que tem seu narcisismo abalado por aquele que falha, que não responde adequadamente e que nos remete à imagem não ideal ele nós mesmos mas sim, à uma imagem fratura ela pela inserção de uma falta ou ele uma insuficiência ele funcionamento), convidamo-os a que falem mais. Isto é, frente ao sofrimento elo outro que nos demanda a cura, respondemos com um "Porejue não sei sobre seu sofrimento, é preciso que você fale".

Nesse sentido, o que se produz nesse espaço, forjado entre o estagiário-terapeuta e o/os clientes, provoca, no mínimo, uma rotação ele posição ejue recupera e outorga importância a um saber próprio elos clientes, antes marginalizado, desacreditado e. muitas vezes, nomeado como patológico. Mesmo, em diversos clientes que nos chegam, onde, por vezes, os referenciais organizadores ele sua vida não parecem indicar um sentido para a mesma, as intervenções tentam reconstruir e produzir um lugar ele sujeito reconhecido em sua dimensão desejante e, por que não, ele cidadão.

Em um certo sentido, trata-se de um processo similar às chamadas Entrevistas Preliminares, já que nestas também há um movimento ele deslocamento ela demanda e ela elesalienação ele sua fala. Como diz Mannoni (1981): "Estamos em presença ele um discurso - quer se trate elo discurso elos pais ou daequele elo filho - que se pode qualificar "de alienado", no sentielo etimológico elo vocábulo - em vez de mentiroso, como somos tentaelos a dizer por imagem, já que ele não é o discurso elo sujeito, mas elos outros, ou ela opinião."

As intervenções, mesmo sendo um trabalho com delimitação ele tempo, não se encaminham em uma suposta imagem ele adequação social do cliente ou em um desejo ele harmonização e felicidade, recusando a dimensão elo conflito, elas interrogações e elas incongruências da ordem elo humano. A escuta permite reconsiderar os recursos e potencialidades elo cliente, assegurando-lhe um lugar de sujeito, entretanto, movimentando os sentidos e versões faladas e reinventadas na relação com o estagiário-terapeuta. Os "resultados" indicam mais um repensar elo cliente sobre suas relações, sobre si-próprio e sobre as questões que trouxe do que uma suposta eficiência imaginária, no estilo ele: "descobrimos o ejue você tem, ou o que acontece com você é...".

Entretanto, sabe-se das armadilhas e elos fortes apelos que o apaziguar, o harmonizar, que uma tentativa ele restabelecer o bem-estar psíquico, colocam-se para aquele que está frente à alguém sumamente angustiado e desesperado. E grande o ganho narcísico para um estagiário, que começa a tomar contato com a clínica, ver seu cliente frente ao "nada quero saber sobre o que me faz sofrer, apenas quero ser curado" e ter, surpreendentemente, ao longo de alguns encontros, seu sofrimento aplacado ou mesmo um sintoma desaparecido abrir mão do lugar de conivência com esses efeitos terapêuticos que o escutar um outro, no mais das vezes, proporciona. Entretanto, como supervisores, é preciso que estejamos sempre a postos para sinalizar que esse é um mau lugar: confortável para cliente e terapeuta, mas um lugar equivocado.

Em verdade, essa parece se constituir uma das maiores dificuldades da prática de supervisão: fazer ver que aplacar, sugerir, orientar, dar respostas, tranqüilizar pode conduzir a uma alienação sintomática ainda maior e provavelmente um sofrimento ainda mais nefasto. Entrando em um lugar de maestria, impondo um conhecimento educativo sobre os clientes, induziríamos a mais uma alienação ou a mais um nome ou doença.

E interessante que para um aluno que chega para seus primeiros encontros com um paciente supondo nada saber e constrangido, muitas vezes, com a obrigatoriedade de um currículo que lhe diz em determinado momento: "Agora, pronto ou não, disponha-se a ouvir pessoas que sofrem psiquicamente", ele descobre muito surpreso e grato, que há um algo (a transferência) que o constitui, ainda que no mais das vezes ele recuse e resista, nesse lugar suposto de saber sobre um sofrimento e desde onde lhe é endereçada uma demanda de cura. Fica perplexo (e com razão) que tal qual na teoria, já havia sido previsto, que essa tal transferência se instala e produz seus efeitos pelo simples fato dele estar ali à disposição de ouvir. No entanto, muitas vezes, por não ter podido fazer ele mesmo a experiência do inconsciente, ficam tomados nas malhas transferenciais, respondendo identificados aos lugares que o discurso dos clientes os colocam.

É preciso muita paciência, delicadeza e firmeza para poder apontar a um aluno que no lugar onde as entrevistas "clerrapam", não há técnica, sugestão ou conselho a ser seguido que possa reconduzir as coisas pelo " bom" caminho. Que, nesse momento, já não é mais do cliente que se fala, mas sim do cliente que ele forjou de acordo com seus pontos fantasmáticos implicados e sobre os quais é necessário lançar luz, desfazer certezas. Geralmente, é no próprio espaço de supervisão que uma certa transferência se joga e que é endereçada ao supervisor uma demanda de "restabeleça a ordem do atendimento, faça-me não sofrer com essa experiência de ignorância necessária ao desalienar do outro que me torna com interlocutor de seu sofrimento". Frente a ela, o que faz o supervisor? Indica técnicas, oferece receitas e conselhos? Sim, se quiser fazer de seu supervisionando sua imagem e semelhança, que lhe devolva uma imagem acabada de potência frente à experiência de impossibilidade de engano que é tratar daquilo que resiste a ser tratado, isto é, um sintoma. Ou então, se cala, e convida ao outro que fale ainda mais sabendo-se implicado nessa fala que lhe é dirigida e que lhe pergunta sobre a eficácia da palavra para tratar dos males da alma.

É possível que nessa leitura se pense que isso se dá o tempo inteiro. Entretanto, são, quem sabe, em alguns momentos privilegiados que isso realmente acontece.

Desde estas considerações que fizemos e com caráter de conclusão, arriscamos dizer que há uma dimensão de cidadania (e por que não dos alunos e nossa também) que passa por esse desassujeitamento em relação a tantos outros que nomearam o cliente das mais diferentes formas: um corpo doente, uma mente doente, uma mãe não tão boa, um pai ausente, uma família desestruturada etc. Recontar sua história é, muitas vezes, livrar-se desse "recheio indigesto" patológico, reassumindo uma outra posição, posicionando-se diante destes outros. Isto não quer dizer parar de tomar medicação em alguns casos, por exemplo, mas interrogar-se e ao outro do sentido desse procedimento. Concordamos com Costa (1989) quando afirma que "não existe doença independente de seu modo de expressão. A idéia de causalidade faz parte da maneira como a doença se constrói. A representação da causalidade é indissociável da subjetividade que a produz".

Procuramos, com estas indicações, refazer o caminho de construção do sintoma, de suas vertentes que o sustentam, reiterando, como nos diz Freud, os sentidos desses sintomas nas experiências dos clientes. Tentamos garantir aquilo que se apresenta como a questão fundamental ao falarmos da clínica da Psicanálise, ou seja, a escuta. Escuta que perpassa a clientela e suas diferenças culturais, sobrevoa o espaço de supervisão marcado por suas contradições e retorna à experiência que se constrói na relação entre o estagiário-terapeuta e os clientes. Constitui-se um tipo de formação que pretende implicar os que a produzem em suas práticas e em suas ações, sejam os professores-supervisores, sejam os alunos-terapeutas, sejam os clientes-cidadãos.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

MANNONI, M. (1981). A primeira entrevista em psicanálise. Rio de Janeiro: Campus.         [ Links ]

ANCONA-LOPEZ, M. (org.). (1994). Psicocliagnóstico: processo de intervenção. São Paulo: Cortez, 1995.         [ Links ]

COSTA, J. F. (1989). Psicanálise e contexto cultural: imaginário psicanalítico, grupos e psicoterapias. Rio de Janeiro: Campus.         [ Links ]

OCAMPO, M. L. S. (1989). O processo psicodiagnóstico e as técnicas projetivas. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

ARZFNO, M. F. G. (1995). Psicodiagnóstico clínico, novas contribuições. Porto Alegre: Artes Médicas.         [ Links ]

MILLER, J. - A . (1997). Psicoterapia e psicanálise, in Forbes, J. ( org.) Psicanálise ou psicoterapia, Campinas: Papirus.         [ Links ]