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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.3 no.4 São Paulo  1998

 

DOSSIÊ

 

A contribuição de Winnicot para um trajeto na psicanálise1

 

Winnicott's contribution to a course on psychoanalysis

 

 

Maud Mannoni

Psicanalista, fundadora da Escola Experimental de Bonneuil-sur-Marne, falecida em 15/03/1998

 

 


RESUMO

Seminário inédito proferido por Maud Mannoni em 8 de dezembro de 1997 em Espace analytique - Association deformation psychanalytique et de recherches freudiennes. A autora expõe as influências recebidas do pensamento winnicottiano, bem como sua passagem por Kingsley Hall. Aborda a problemática do manejo clínico no campo da psicose, as teorizações de Paio Alto, o engodo das terapias familiares para, finalmente, recolocar o problema da formação dos analistas no contexto de uma problematização da tradição psiquiátrica hospitalar-universitária, conforme alertara Winnicott.

Winnicott; psicanálise; Mannoni.


ABSTRACT

Unpublished lecture given by Maud Mannoni at the Espace analytique - Association de Formation et de Recherche Freudienne, on December 8, 1997. The author relates the influence she received from Winnicott's ideas as well as her passage through Kingsley Hall. She approaches the problematic of clinical handling in the field of psychosis, the Palo Alto's theorization, the wile of family therapies and eventually relocates the question of the analysts formation in the context of the problems regarding the hospital/university psychiatric tradition, in accordance to Winnicott's warnings.

Winnicott; psychoanalysis; Mannoni.


 

 

Alguns de vocês me pediram para vir falar-lhes de Winnicott. Aceitei trazer-lhes, modestamente, um testemunho, o de um trajeto, o meu, durante os anos 60.

Muito cedo, nos limites da análise, vi-me em face de um certo tipo de pacientes psicóticos, adolescentes ou adultos que tinham apenas um sustento da família pontuado por duas ou três sessões de análise por semana.

Influenciada por Winnicott, que eu encontrava regularmente em Londres, compreendo que alguns jovens pacientes têm necessidade de um lugar para eles onde possam viver com afeição. Pois a análise só é possível quando um mínimo de segurança existe primeiro no cotidiano da vida.

A criança, sua "doença" e os outros2 é escrito durante os anos em que tenho como interlocutores privilegiados Lacan, Dolto e depois Winnicott e Laing. Alguns capítulos deste livro foram objeto de um debate no Instituto Psicanalítico de Londres. Naquela ocasião, Winnicott me fala de seu pesar de que os adolescentes psicóticos não tenham, nos momentos de crise, um lugar onde delirarem (sem que esse delírio seja imediatamente cortado por uma quimioterapia apressada). Ele lamenta também que o analista aceite tão mal o desmoronamento de um adolescente. Tem-se, diz ele, muito freqüentemente a preocupação de reerguer, de fazer manter-se em pé um sujeito que pede uma ruptura e que precisa primeiro existir na recusa. Por que, me diz ele, você fala de "curar" quando muitas vezes basta "acompanhar" um ser em seu sofrimento?

No livro em questão, eu tento, a propósito da criança sobre a qual vêm consultar, definir o que faz parte de um mal-estar coletivo. Tento explicar, por exemplos concretos, que quando os pais trazem ao analista de seu filho desejos de morte deste último, trata-se muitas vezes menos da criança real que do outro imaginário do pai ou da mãe, isto é, da parte que sofre no pai ou na mãe projetada na criança. Daí o risco de suicídio para esta se seu próprio mal-estar não foi levado em conta. No tratamento de uma criança, realmente acontece que a resistência pode ser lida do lado dos pais ou do analista.

Distingo então dois tipos de discurso:

a) Por discurso fechado, entendo uma narração diante do analista em vez de para o analista. Da parte dos pais, há então, efetivamente, recusa da experiência analítica. Eles vêm ao analista para ter a confirmação de um diagnóstico de irrecuperabilidade. O que não significa que o analista deve parar aí (como me observou Winnicott).

b) Por discurso de drama, entendo a existência de um pedido de ajuda. A análise é então possível e o que deve poder ser encontrado no tratamento, é o que, na palavra do adulto, pôde marcar a criança no plano do corpo.

Mostrei depois, através de exemplos concretos, (e marcada pela influência de Winnicott e de Lacan) como os limites que o analista encontra com tal ou qual paciente constituem primeiro e antes de tudo os próprios limites do analista - no que ele pode ou não suportar da prova em que se acha, levado por seu paciente. O analista que se deixa interpelar pela loucura (a esquizofrenia especialmente) aceita, com efeito, deixar-se questionar no campo de seu próprio "não analisado". Esse ponto cego do analista, é por onde se faz nele a abertura do interesse terapêutico. É assim que acontece que um analista (como foi o caso de Freud com os adultos), por meio de seu paciente, chega a compreender o que, nele, analista, tinha ficado até então ao abrigo de qualquer dúvida, ou seja, um aspecto da "loucura" nele.

Alcanço então, sem o saber, o que se encontrava, naquela época, no centro de algumas discussões londrinas. Trabalhos do grupo Winnicott tentam, de fato, numa prática - evidenciada de modo medíocre teoricamente - substituir a escuta de um discurso pela concepção dos graus de desenvolvimento: por trás do discurso do doente e sua família, fazem surgir a trama de uma situação psicotizante, de um modo especialmente nítido nos delírios de influência, estados paranóides e halucinações. Os analistas, a um certo momento da história da psicanálise, chegaram - à maneira dos psiquiatras - a falar da doença, mas não do doente. Ora, se se escuta um discurso coletivo, não é raro encontrar uma paciente descrita num primeiro instante como "boa" , "normal" , até que progressivamente ela seja designada como "má" e depois "louca", para alívio da família. Mas há uma verdade no delírio que o ambiente colmata. Desde o instante, por exemplo, em que uma paciente, em vez de dizer que sua mãe não a deixa viver, diz que sua mãe matou sua filha, desde esse instante os pais não somente perdoam a "maldade" mas aceitam o enclausuramento de um ser que manifestamente "não sabe o que diz" . É bem a impossibilidade para o sujeito de projetar seu ódio sobre sua mãe, que se torna, nesse momento, o elemento desencadeador de um episódio psicótico. As acusações contra a mãe, como observa muito claramente Laing, são na maior parte do tempo acusações em que o sujeito é falado pelo adulto que ele acusa. Falado por comandos diversos, este sujeito chega a viver tais instantes como um perigo. Identificado à vida, mas acusando-se de querer destruir, ele se diz num outro tempo que é a própria vida que vai destruí-lo. É aí que se faz então verdadeiramente a entrada no que chamamos de "psicose".

 

VILLE-EVRARD

Isto me leva a evocar que em 1964 Hélène Chaigneau me abre generosamente sua instituição em Ville-Evrard. Ela espera que eu possa ajudar um tipo de pacientes adultos que descrevo, quando eram crianças, em A Criança retardada e sua mãe3. Ora, encontro no asilo os esquizofrênicos e paranóicos descritos por Lacan. Prisioneira da Instituição, sinto aqui a extensão de minha impotência. Alguns pacientes hospitalizados há vinte anos, que fizeram do asilo seu lar, não desejam mais sair de lá. Uma estratégia de "cuidados" é no entanto realizada através de mediações introduzidas (clubes, reuniões, trabalho), cuja função é possibilitar à relação estereotipada do paciente uma abertura para o mundo exterior (o que os analistas chamam de possibilidades de simbolização). Tudo o que se sustenta como discurso inscreve-se no entanto num lugar transformado em cárcere pelos usos administrativos.

Ao longo dessa experiência, são os pacientes que me fazem compreender os limites de um território a ser respeitado. Preciso de tempo para assimilar o sistema de regras, convenções e proibições que organizam, nesse lugar, a relação dos indivíduos entre eles. Modelados pela Instituição psiquiátrica, os pacientes agem com efeito de maneira a aumentar sua paralisia. Lembro-me que no dia em que me introduzo de modo não esperado na sala de televisão reservada aos doentes, agridem-me e só devo minha salvação a um enfermeiro de passagem. Por outro lado, recebo os doentes numa sala: estes sabem que tenho um livro em gestação e nenhum deles ignora a ajuda que devo lhes trazer. Histórias, eles estão prestes a me fornecer, escritos também, codificados à maneira dos dossiês para doutores. Mas eles falam melhor num outro lugar que numa sala reservada para tal fim.

Ser investida como expert por um paciente paranóico também vai marcar o caráter de intrusão conferido a minha experiência, o que participa dos temores que esse paciente, de raça negra, nutre a respeito das perseguições exercidas pelo governo contra os estrangeiros. Desde o instante em que desejo vê-lo, ele corre o risco - conforme a lógica de seu delírio interpretativo - de ser marcado por mim como indesejável, pois sempre que esse paciente tenta se perceber como desejante, ele é remetido a uma forma de dissolução de identidade: ele é um outro, cativado por uma imagem maternal (narcísica e rival), uma vez que sua masculinidade só pode se sustentar deste modo.

Na décima terceira sessão, esse paciente me informa que é inútil continuar aquelas sessões na Instituição. O simples fato de minha presença é por ele sentida como uma provocação: "Fazem-me uma crueldade mental , me diz ele, que eu acumulo. Minha tia está com ciúme de mim, ela colabora para minhas desgraças. Meu destino se determinou antes de meu nascimento. Fico diante da senhora na posição de prisioneiro, sem dinheiro, não posso dar-lhe uma rosa. Estou sem dinheiro. Nem quero sua caridade. Exijo que me façam justiça. Exijo que me devolvam minha dignidade. De que serve este locutório, senão para seu próprio prazer? A senhora me tira meu prazer e me rejeita como um cão."

Georges me significa assim que a ambigüidade de meu status o põe em perigo e desperta o que ele próprio define como sendo de natureza persecutória. É o direito à revolta que ele reivindica, deixando escapar um laivo de verdade, ficando a meu cargo interrogar-me sobre os efeitos produzidos pela alienação social sobre a alienação mental no que se havia tecido para ele como destino.

 

KINGSLEY HALL

Na verdade consigo suportar Ville-Evrard porque tenho a oportunidade de ficar em Kingsley Hall. Devo esse encontro a Winnicott, que se interessa pela experiência institucional implantada em Kingsley Hall e que, é preciso lembrar, lamenta que não haja mais lugares apropriados para receber pacientes em crise, que os analistas não sejam mais inventivos em suas instituições e que a menor perturbação mental seja tão prontamente medicalizada.

A alma de Kingsley Hall é incontestavelmente Laing. Sua palavra produz frutos, tanto mais que ele não mora mais lá. Uma dezena de pacientes vive nesse lugar com psiquiatras americanos em sua maioria. Recebo lá, após ter sido posta à prova, uma acolhida calorosa da parte dos pacientes. Eles querem saber se sou paciente, médica ou visitante. Deste último, eles desconfiam: é a inquisição que é temida. Não lhes escondo que sou efetivamente visitante, convidada por Laing e que não vou residir com eles, tendo eu mesma uma necessidade visceral de um lugar de repouso fora de uma coletividade em que a loucura existe 24 horas por dia. Tentam convencer-me que um pouco de haxixe ou L.S.D. distenderia a atmosfera. Respondo que uma xícara de chá me faria o maior bem e que esse tipo de "viagem" só me assustaria. As questões se tornam mais prementes: acontece-me às vezes de pensar que eu poderia ser louca? De ouvir vozes, de enxergar morcegos ou lagosta? - Por que não?, digo-lhes. Sou capaz de fazer funcionar um cinema interior, de ter medo, de me fazer medo, mas ser louca de verdade, como o descrevem nos manuais, é menos provável. Pertenço mais à classe dos capazes de fingir de louco. Ser louco de verdade é um estado de graça que não é concedido a todo mundo.

Então a senhora não é igual a nós?

- Não sei, o que eu sei, é que talvez eu tenha em mim, escondido, um jardim de loucura, mas louca como se descreve nos manuais, isso eu não sou.

- Esta é a diferença, me explica o paranóico "de plantão", com os psiquiatras daqui. Eles dizem que são iguais a nós, mas nós sabemos que não é dado a todo mundo ter a sorte ou a desgraça de ser louco.

Num psiquiatra, mesmo antipsiquiatra, há sempre um policial adormecido, me explica o hóspede da casa. E conta rindo a história que aconteceu na noite anterior: os vadios do bairro invadiram a casa. Os antipsiquiatras chamaram a polícia. A senhora está vendo, me diz ele, disso, nós nunca seríamos capazes.

Vejo Laing em reuniões de amigos. Minha fobia da droga o diverte. Meu desejo de tratar certos assuntos com seriedade (como a psicose) também o diverte. Ele me diz que confundo "acompanhamento de uma pessoa em sofrimento" e "preocupação de curar" (to heal e to cure). Ele me adverte contra um perigo: o de me deixar alistar nas forças do recalque.

Portanto, se Winnicott me aconselha nessa época a frequentar o meio lainguiano, é certamente para que eu perca um pouco da minha segurança no saber... Mais tarde, ele mesmo rompe com Laing, ao recusar aceitar a apologia da droga que este último faz num momento de seu trajeto. No entanto, nessa ruptura, a amizade existente entre estes dois homens vai se manter.

 

OS DEBATES DECISIVOS DOS ANOS 60: LONDRES

Durante esse período, o acaso me faz encontrar em Londres - por intermédio de Winnicott e Laing - jovens universitários engajados numa pesquisa sobre psicanálise, principalmente sobre meus trabalhos. Surgem discussões sobre conceitos de Laing e Lacan, o que me vai me obrigar a me definir quanto às diferentes correntes de pensamento. A literatura inglesa não é então difundida além de um círculo de iniciados. Além disso, como a teoria deles repousa sobre a biologia, o desenvolvimento, o humanismo, ela não dá bem conta do trajeto clínico efetuado. Uma distância subsiste entre a prática, tal como é vista em exercício por grandes clínicos e uma teoria que dá mal conta dela.

O que me parece importante é não procurar na prática uma pura aplicação da teoria. As concepções de Winnicott e de Lacan, que parecem opostas em alguns pontos (como o da relação do objeto), coincidem em noções como as de presença/ausência ou a de mestria simbólica necessária à criança para poder, num certo momento, superar uma perda sem desmoronar como sujeito. Se Winnicott se interessou particularmente como pediatra por todas as crianças bem pequenas (até mesmo os bebês desde sua vinda ao mundo), Lacan centrou seus interesses na criança de mais idade e no adulto, enquanto Dolto forneceu de seu lado elementos essenciais para compreender as crianças de 0 a 3 anos, contribuindo assim para o esclarecimento em vários pontos de certos aportes de Lacan. Uma atitude dogmática só poderia tornar o analista surdo ao que o paciente tenta fazê-lo compreender na língua dele, com suas próprias palavras. É claro que, em minha própria experiência, sou levada, conforme os fatos concretos que se apresentam na prática, a privilegiar ora o aporte de Lacan, ora o de Winnicott ou de Bleger, etc. Mas não me proíbo traduzir esses diferentes aportes numa língua que me é própria. Pode-se, conforme as situações, querer opor Winnicott a Lacan, do mesmo modo que se pode esclarecer o aporte de Winnicott com o de Lacan, sem nada anular das pesquisas de um e de outro. Por exemplo, a noção de holding defendida por Winnicott está de acordo com o que Lacan tentou sublinhar como captura de si no espelho, tendo esta experiência como referente (na fratura da unidade do filho com sua mãe) a presença do olhar da mãe que vem garantir à criança a realidade separada de sua própria existência. É em função dessa relação do eu (moi) com o outro que Lacan faz surgir um eu (Je) em devir. Quando me perguntam com que referências eu trabalho, respondo: com todas essas referências, sem esquecer as indicadas pelo próprio paciente. Pois é este que serve de guia. Quanto à teoria, ela permite em seguida encontrar as palavras para explicar o que se passou numa situação que engloba o inconsciente do analista e de seu paciente.

 

ABORDAGEM DA PSICOSE

Muito cedo, fui sensibilizada pelo fato de que o neurótico vem para a análise por si mesmo (mesmo se sua busca é atravessada pela palavra dos outros), enquanto que o psicótico (e também é assim para a criança) é levado ao analista pelos que o cercam. Não se pode, por conseguinte (o que é ainda mais visível no psicótico) fazer abstração da história e do modo pelo qual um sujeito testemunha às vezes, à sua revelia, efeitos de um simbólico falseado há já três gerações. Um determinado paciente "compensa" a rejeição que sua mãe sofreu da parte de sua própria mãe. Um outro não se autoriza a usar uma herança cujo fruto de um trabalho em várias gerações lhe parece ter sido adquirido ilegalmente: ele dilapida uma fortuna em tempo recorde. Um outro ainda cai numa gravíssima depressão no dia em que uma casa comprada para renda vitalícia lhe cabe, os proprietários tendo falecido pouco depois do ato de venda. Quando a "doença" explode, é efetivamente um drama que se revela, um não-dito que começa a falar na violência do sintoma: Sou o filho que minha mãe teve com meu irmão, sou o filho que meu pai teve com a empregada. A realidade objetiva nem sempre corresponde certamente à "vivência" que faz de repente irrupção na violência, assassinato ou suicídio. Mas uma palavra sua só pode ser reencontrada pelo sujeito interrogando as palavras que, na sombra, veicularam, carregaram, ocultaram a história de uma família (as substituições ocultas de filhos, de pais, as mortes camufladas, as desaparições não verbalizadas, etc). É então apenas pelo preço de abrir os olhos (sem necessariamente vasá-los como Édipo) que um acesso ao eu (Je) se torna possível através de um processo de desidentificação, isto é, do desligamento do sujeito de um drama que é o de um outro. O que assim reteve minha atenção, durante os tratamentos, foram as diferentes posições do sujeito em momento de tensões conflituais em que ele se encontra. O importante é captar de que lugar o sujeito fala e por quem, em certos momentos, ele é falado.

Basta às vezes um pouco de humor ou uma palavra sobre as coisas comuns da vida (isto é, desligada de qualquer vivência persecutória) para desdramatizar uma situação e fazer o sujeito recomeçar o discurso sobre outras bases. Lembro-me assim daquele homem que ameaçava se jogar com seu bebê no vazio do alto da torre Eiffel. Polícia, psiquiatra e bombeiros foram mobilizados. Mas a exibição de forças só conseguia aumentar as ameaças proferidas pelo homem. Chegou uma jovem médica dos hospitais de Paris. Ar estarrecido, ela lhe disse: "cuidado com as correntes de ar, o bebê vai tomar friagem." A crise do homem cedeu imediatamente. Ele não fez nenhuma oposição e desceu os degraus o mais cuidadosamente possível. É que a palavra da médica vinha de um outro lugar que o do Imaginário persecutório do homem acossado e num certo sentido, o despertava de seu delírio.

Em momentos de crise, o analista - mas isto também pode ser verdade para os membros de uma equipe de tratamento -, não se expondo às projeções persecutórias do sujeito, aceita ser o depositário das angústias do paciente.

Outro exemplo, desta vez em Bonneuil: um adolescente se negava todos os dias a ficar sequer um minuto a mais. Uma maleta trancada, que continha todas as suas coisas, esperava todos os dias a partida iminente anunciada por seu proprietário. No entanto faltava muito pouca coisa para desfazer a angústia: lembrar uma perspectiva de convite ou sugerir uma saída bastava para ajudar o menino a não fugir. O nó de sua angústia psicótica aparece no decurso de um tratamento individual num analista. O adolescente pôde um dia revelar em análise o discurso interior que ele mantinha cuidadosamente escondido e que era inteiramente centrado sobre impressões de metamorfoses de seu rosto. Ele lia por momentos no olhar do outro que seu próprio rosto havia tomado os traços de um monstro, o que provocava uma compulsão de fuga (tomar o trem) ou de suicídio (jogar-se em baixo de um carro). Esse monstro era, de alguma maneira, seu duplo. Sua primeira aparição traumática coincidira com a morte súbita de um irmão amado-odiado. Todas as vezes que o sujeito se viu, daí em diante, em face, na realidade, a provas (como um exame), reagiu com um acesso delirante. O que o adolescente necessitava nesses momentos de tensão, era uma mestria: mas além do mestre real, ele enfrentava de modo especular uma relação de captura, de ser tomado pela imagem do outro. Cada vez que ele era intimado a escolher , sentia-se diante de uma ameaça, como se precisasse escolher, vivendo, pagar o preço pela morte de um ser querido. Eis porque ele passava uma vida não vivendo. O que suas defesas velavam, em último termo, era a morte, cuja pulsão está sempre em atividade lá onde o desejo está em jogo.

Tais problemas, por mais difíceis que sejam, podem esperar encontrar uma saída numa análise. Mas ainda é preciso que o sujeito se sinta "autorizado a viver" por seus pais, o que implica, em casos graves, ajudar estes a superar a angústia (especialmente o que acontecerá após a morte deles), a fim de que seu filho possa expor-se ao risco de viver. Uma pensão de invalidez - necessária em certos casos, pode, sendo concedida com demasiada facilidade, transformar um jovem em "asilado por toda a vida" (aposentar-se aos vinte anos - fórmula usada pelos próprios jovens - está longe de ser algo que vai de si).

Ao colmatar as coisas ao nível da necessidade, a administração conduz-se de fato muitas vezes como uma "mãe de psicótico". Ela traz uma solução ali onde uma economia da desordem deveria ainda poder se desenvolver para que através dela o sujeito encontre "uma ordem dele mesmo" compatível com as coerções sociais inerentes a qualquer desejo de empreender. Essa "ordem" do sujeito, seria no entanto mais exato definir em termos de verdade abrindo para um espaço de criação, sendo este último às vezes antinômico ao dos pais.

 

TERAPIAS FAMILIARES, CORRIDA PARA A SELEÇÃO

Para voltar aos anos 60, mesmo interessada pela pesquisa feita nos Estados Unidos pelo grupo de Palo Alto e atraída pelo caráter interdisciplinar de sua experiência, vou ser crítica com respeito à sua aplicação psicosociológica que vai ser feita nas terapias familiares. Estas últimas têm por objetivo adaptar a família à inadaptação ou adaptar o inadaptado à sua família. O que está aqui em vista, da parte do terapeuta, é uma solução a impor ao grupo (ou ao indivíduo tomado num grupo e submetido a uma espécie de "adestramento" moral). O terapeuta "sabe" o que é bom para uns e outros e impõe sua vontade. É pegar ou largar. Vinte anos depois, esta moda vai pegar na França, particularmente para tratar os mais frágeis dos pacientes: os autistas e os toxicômanos. São os analistas que recolhem os desgastes (o método "teachh" treina os autistas e acentua a ecolalia, mal os ajudamos a tornar-se sujeito de uma palavra). Nos anos 70-87, os responsáveis pela saúde mental na França vão ser marcados pelos problemas éticos ligados a certos tipos de "cuidados" dispensados, que se inspiram em métodos que conduzem ao "adestramento". Não é certamente indiferente que uma Simone Veil (sobrevivente dos campos de concentração) se tenha levantado contra tais práticas, nem que uma Michèle Barzach (excelente ginecologista, mas mal-informada sobre psicanálise) se tenha entusiasmado algum tempo por tais práticas, dando sua caução ao dinheiro distribuído com largueza em centros de "cuidados" louvados com a ajuda da mídia, centros a respeito dos quais os especialistas se mostram muito reservados.

Nos anos 60, Thomas Szasz me envia recortes de imprensa, trata-se de caricaturas advertindo os americanos contra a moda de testes que se abate sobre as escolas, desde antes da escola maternal. Desde o berço, poder-se-ia dizer, o "comportamento" do bebê se acha avaliado num alvo seletivo. As mães correm atrás de livros que lhes explicam como tornar seu filho mais inteligente por meio de determinados joguinhos. Os efeitos de uma seleção que não diz seu nome fazem-se rapidamente sentir: as mães têm cada vez mais dificuldade de encontrar um lugar para seu filho na escola maternal ou na escola do bairro. O aluno "médio" não tem mais ali seu lugar: procuram-se os "super-dotados". Caricaturas ferozes inauguram uma era de revolta, as mulheres se interrogam: Será preciso que nosso filho seja um super-dotado para freqüentar a escola do bairro? Nestes anos prosperam oficinas psi de todo tipo, preparando desde o berço crianças para uma vida de competição. Nunca a criança foi tão "bombeada" como agora por seus pais, desejosos de "tudo conhecer o concernente". Uma rotina de vida é preparada. Não se trata mais para o adulto de aprender com a criança. Um modelo lhe é imposto. A invenção inquieta e chega-se a esquecer que a cultura é de todo mundo, como a experiência ou o conhecimento, e que há o que aprender com o erro e o insucesso.

Os professores, nos Estados Unidos, começam, nessa mesma época, a opor-se aos diktats dos questionários a serem preenchidos e denunciam um sistema de que eles se sentem com seus alunos prisioneiros. Será possível, perguntam-se alguns, abordar com os estudantes questões como as do genocídio judeu? - Não é tão claro. Eles são assim levados a descobrir que um sistema (de que eles fazem parte) impede de expor certas perguntas. É essa vontade de silenciar sobre os crimes cometidos em certas gerações (com a cumplicidade de todos) que, numa outra geração, fará no entanto emergir do real um mesmo surgimento de violência inexplicável.

John Holt, sucessivamente professor em Boston, em Massachussets, no Colorado e na California, situa-se na dependência de uma revolta contra as idéias estabelecidas em matéria de educação (e difundidas em milhões de exemplares).

Ele dissocia a aprendizagem da noção de necessidade e desejo. Não hesita em escrever livros para explicar aos americanos como estamos tornando seus filhos débeis. "Minha verdadeira educação", diz ele, "situou-se antes da escola, fora da escola e depois da escola". Afirmação retomada na revolta de maio de 1968 na França. Em 1987, agora é o modelo japonês que fascina: a criança identificada com um computador, programada desde o nascimento para tornar-se "a melhor" (mães chegando a suicidar, se seu filho deixa de ser o primeiro da classe). Assim os analistas reúnem toda uma "patologia" escolar, alternativamente "cuidada" , "reeducada" ou "abandonada" a si mesma, dependendo dos interesses econômicos e a ideologia do momento...

É a assimilação da linguagem a uma variedade de comportamentos que leva os comportamentalistas anglo-saxões (e depois deles, os franceses) a puxar o material que lhes é oferecido (o discurso do paciente e o de seus pais, se se trata de um psicótico ou de uma criança) para o lado de uma adaptação a uma norma (ou para a denúncia de uma conduta inadequada). Mas existe uma outra utilização possível do discurso familiar, a que visa um desvelamento catártico. Ë no desfecho de um drama revivido na transferência que se encontra a chave de certas "curas".

No caso da análise de crianças, o analista se vê muitas vezes diante de um presente a ser descoberto no hic et nunc de uma situação transferencial que engloba os pais. Acontece até mesmo, no caso de crianças muito pequenas, que a intervenção só atinja os pais. A teoria do que se acha em jogo pela escuta analítica do drama (ou do discurso coletivo) quase não foi ainda feita e o analista tem apenas como únicas referências os parâmetros descobertos por ele mesmo em sua própria análise. Quanto às hipóteses teóricas, por mais justas que sejam, elas nem sempre são suficientes em si mesmas para permitir ao analista fazer ato de invenção. Cabe-lhe, conforme uma fórmula de Michel de Certeau, ouvir o que a teoria não diz.

O homem, dizia Freud, não tem nem gosto nem inclinação para receber a verdade. Esta remete ao que é você pela prática da linguagem. Freud deixava entender que a todo "núcleo histórico" correspondiam inscrições ou "impressões" mudas. A história ou o romance familiar que se contam conservariam portanto uma aparência de semblante, um espaço entre uma verdade calada e o que ficou como saber na memória individual do sujeito.

Perguntando: quem fala e a quem? e de que lugar (lugar do outro ou do Outro?) Lacan fixou o eixo em volta do qual deveria ordenar-se qualquer demarche dialética. Assim ele arranca o discurso do paciente da coisificação de que ele fez o objeto (após Freud) e devolve à palavra sua dimensão de jogo e disfarce. Aquele que fala pode, de fato, ocupar o lugar de todas as personagens ao mesmo tempo, ou ser atravessado por um outro que fala de seu lugar , e até mesmo que o comanda contra a sua vontade. A dificuldade é que o analista (se ele se acha preso na miragem das certezas que a crença num eu forte lhe confere) pode impedir o analisando de fazer sua análise ou perturbar por intervenções inoportunas o que Freud, a propósito do delírio, chamava de "processo restitutivo de cura". O interesse da experiência de um Winnicott é que ele traz continuamente o analista para uma posição de humildade, lembrando que o saber, não é ele que o detém. A verdade, ele deixa entender, surge entre o paciente e o analista, ela não pertence a ninguém. Existe, lembra ainda Winnicott, "uma política da análise", no sentido em que a análise deve voltar à sua função de subversão, tanto no plano da terapêutica como no do ensino e das instituições.

 

A DIREÇÃO DO TRATAMENTO

A situação analítica, tal como se destaca na obra de Winnicott, é o movimento de uma relação (a do analista com seu paciente) e a criação comum de um espaço no qual se inscrevem os mecanismos mais primitivos de amor, ódio, introjeção, projeção, represálias, desintegração. Eles podem aí se inscrever porque no início há uma "adaptação" do analista ao sofrimento do paciente. A partir de referências mínimas de segurança, organiza-se um quadro passível de conter as angústias mais arcaicas e desenvolve-se, em liberdade (com o imprevisto), o processo analítico (processo no qual toma lugar a participação inconsciente do analista).

Winnicott nos faz participar da constituição progressiva de um campo (de palavra), com sua lógica própria. É preciso seguir o encaminhamento clínico que ele efetua com o paciente, para ver a que ponto o eixo verdadeiro do trabalho efetuado por ele gira em torno da noção de ausência, condição do desenvolvimento do pensamento simbólico que introduz ao "princípio de realidade" (pois a realidade a ser dominada é a ausência do objeto).

Se Winnicott insiste, entre outras coisas, sobre as frustrações reais que um objeto pode infligir ao sujeito ( num intuito biologizante), o campo operatório onde o conduz sua experiência é bem o do objeto transicional, equivalente, mas diferente, do da criança observada por Freud.

Na teoria analítica, há portanto continuamente uma espécie de bipolaridade: um saber dominado (que se dá conforme o esquema do desenvolvimento, da estrutura ou da lingüística) que constitui, poder-se-ia dizer, o texto de uma língua morta (Harry Guntrip mostrou como o analista pode ficar prisioneiro de sua teoria e arrastar o paciente a um processo pessoal de crença: a teoria, diz ele, tem raiz em nossa psicopatologia, ela deve ser um instrumento e não um mestre). Um outro saber está em exercício, aquele que se destaca na ocasião de cada trajeto (do analista e de seu paciente), ligado pelas coordenadas da interpretação e da construção) o que Freud chama de investigação arqueológica).

Em seu melhor movimento, Winnicott não tem, por seu lado, a ambição de criar uma teoria "totalizante" que teria uma resposta para tudo. Ele segue, penosamente, uma rota com seus obstáculos. O que lhe interessa, é o "nódulo de verdade" presente em qualquer delírio, em qualquer fantasma. Sua exigência na verdade se dirige primeiro a ele próprio.

 

O FALSO SELF

Os trabalhos ingleses se desenvolveram por outro lado sobre uma noção pouco usada na França, a do si (self). Não se trata do sujeito, nem do ego, mas de uma imagem narcísica que funciona como defesa e que o sujeito desenvolve tanto para si mesmo como para os outros; isto permite além disso a distinção entre a noção de identificação - incorporação ao objeto e a da identificação à função do pai, da mãe, do analista, etc. Trata-se mais de um fenômeno subjetivo que de uma estrutura; ele faz aparecer bem o que surge da diferença entre teoria e prática: é "de nossos pacientes, lembra Winnicott, que essa idéia de self surgiu".

O falso self é uma função de defesa que se baseia sobre identificações; ele visa a proteger o "verdadeiro self. O indivíduo pode, por seu sucesso social (isto é, por uma boa organização do falso self), chegar a abordar o outro e esconder sua depressão. Na relação mãe-bebê, o "falso self é o "falso self da mãe; e se a mãe não deixou ao bebê a possibilidade de "ser", ele pode se desenvolver identificado a tal ponto com as insígnias da mãe que ele só deverá sua existência à imitação. O verdadeiro self seria a posição ( na relação com o outro) que permite o gesto espontâneo, o jogo e a criação.

Aquele que se apresenta para a análise sob a única vestimenta de um "falso self (com um perfeito sucesso social) é quase não analisável. Ora, o recrutamento dos candidatos analistas (pelos critérios de seleção) faz-se hoje cada vez mais entre os aspirantes a um "falso self.

Essas hipóteses do "verdadeiro" e do "falso" si mesmo, por mais insatisfatórias que sejam teoricamente, correspondem aos limites da teoria freudiana. O que importa é o que os autores como Winnicott conseguem fazer entender através de uma ação clínica cuja preocupação é de pôr em dia as dificuldades, os obstáculos que nos questionam, em vez de nossos próprios impasses e limites.

 

O PROFESSOR É O PACIENTE

Os trabalhos de Winnicott têm, em sua maioria, uma preocupação didática. Dirigindo-se aos analistas, mas também aos pediatras, aos psiquiatras, ao pessoal paramédico, aos pais, ele procurava às vezes convencer, nunca doutrinar, pois ele não tinha causa a defender. Ele trabalhava sozinho, tendo conservado até tarde em sua vida uma "consulta hospitalar" que era um verdadeiro lugar de análise. Ele respeitava os pacientes; estes últimos não lhe serviam para ilustrar a argumentação desta ou daquela teoria psiquiátrico-analítica. Os poucos alunos que participavam de sua consulta achavam-se introduzidos na "área de intimidade" criada com o paciente e eram parte integrante do encaminhamento que se elaborava através desta dimensão da "preocupação com o outro": do paciente que dirige um apelo.

Como o repete incansavelmente Winnicott, o analista não ocupa uma posição de mestria: o professor é o paciente.

O psiquiatra não é um curador de sintomas, indica ainda Winnicott; ele deve tomar cuidado para não "tratar" o sujeito de maneira a tornar de sua parte qualquer pedido de socorro (através do sintoma) impossível.

Esse aviso tão familiar ao analista, por que este último o esquece quando trabalha no hospital, fazendo-se psiquiatra para os pobres (como se a análise só fosse reservada aos ricos?) Winnicott denunciava assim uma prática hospitalar em que o paciente está ali para a promoção universitária do analista, promoção que só pode se fazer se houver alunos. O paciente é então obrigado a servir de matéria prima para o ensino. Mas se em medicina este ensino pode servir para o bem-estar do paciente, sabe-se bem que tal não é o caso em psiquiatria, na qual o paciente serve para a reprodução de um saber de mestre cujo único efeito é de alienar um pouco mais o sujeito.

Sabendo continuar analista no hospital, Winnicott marcou uma ruptura com uma tradição hospitalar universitária que era responsável pela estagnação da análise (ou em todo caso responsável pela perversão de sua prática).

É a questão da formação do analista que precisaria ser abordada a partir daí.

 

NOTAS

1 Seminário inédito proferido por Maud Mannoni no dia 08 de dezembro de 1997, no Espace Analytique, em Paris. Transcrição em francês cedida gentilmente por Lito Benvenutti, membro da equipe da Escola Experimental de Bonneuil-sur-Marne. Tradução para o português: M. Stella B. Machado
2 L'enfant, sa "maladie" et les autres. Paris, Seuil, 1967.
3 L'enfant arriéré et sa mère. Paris, Seuil, 1964.