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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.3 no.4 São Paulo  1998

 

DOSSIÊ

 

Conversando sobre as análises das crianças de Bonneuil. Entrevista com Alain Vanier1

 

Talking about child analysis at Bonneuil with Alain Vanier

 

 

M. Cristina KupferI; Lenira Balbueno FleckII

IPsicanalista, professora-doutora do Instituto de Psicologia da USP; co-líder do Grupo de Pesquisa USP/CNPq "Estudos Psicanalíticos e Educacionais sobre a Infância"; diretora da Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida, do IPUSP
IIPsicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre

 

 


ABSTRACT

Entrevista realizada em junho de 1992.Aborda-se o lugar das análises individuais no trabalho desenvolvido em Bonneuil junto às crianças e adolescentes.Alain Vanier, analista de Bonneuil, faz uma retrospectiva histórica da introdução da Psicanálise nas instituições psiquiátricas da França, defende a tese de que as análises não devem ser feitas nos espaços cotidianos das crianças - escola ou instituições em que elas habitam -, e explica de que modo elas costumam ser indicadas em Bonneuil.

Bonneuil - Psicanálise - Psicologia Institucional


ABSTRACT

This interview was performed by two Bonneuil's Brazilian trainees, in early 1992. The main subjects approached are: 1) a historical overview about the introduction of Psychoanalysis in psychiatric institutions in France; 2) the place where individual analysis of Bonneuil's children must be undertaken; 3) when they should be indicated.

Bonneuil - Psicanálise - Psicologia Institucional


 

 

Por que as análises das crianças de Bonneuil são obrigatoriamente feitas fora da instituição?

A.V. Sobre este assunto, existe uma primeira abordagem que na minha opinião é histórica. Houve na França, e um pouco no mundo inteiro, uma discussão sobre o lugar da Psicanálise nas instituições. Esta questão foi colocada imediatamente após a Segunda Guerra Mundial, nos anos 45/50, quando a psicanálise começou também a cavar seu lugar nas instituições psiquiátricas. Num primeiro tempo, deu-se na França a constituição do que se chamou movimento de Psicoterapia Institucional, com uma primeira clivagem, que foi entre um grupo principalmente representado por pessoas da IPA e um outro grupo formado por lacanianos.

Essa clivagem nasceu em torno do lugar dos enfermeiros no tratamento.

Dos enfermeiros?

A.V. Isso mesmo, ou seja, o pessoal diretamente em contato com os pacientes. O primeiro grupo supunha que o trabalho dos enfermeiros era muito disperso, e que os médicos deveriam estar sempre lá para controlar seu trabalho; o segundo grupo, ao contrário, pensava que era preciso formar os enfermeiros, já que eles tinham um contato mais direto com os pacientes. Essa clivagem encobria de fato a clivagem entre a IPA e os lacanianos.

De outro lado, durante a Segunda Guerra Mundial, surgiu, em um hospital do sul da França, um psiquiatra chamado Francois Tosquelles. Vocês já devem ter ouvido falar dele. Era um psiquiatra espanhol, que deixou a Espanha no momento da guerra civil espanhola - não sei mais se ele era comunista ou anarquista, ou os dois - em todo caso, ele se refugiou na França e assumiu a direção de um hospital psiquiátrico. Durante a guerra, vocês sabem, muitos doentes morreram por não haver dinheiro para mantê-los. Então, a partir da experiência que os enfermeiros ou suas famílias tinham extraído do trabalho rural, Tosquelles colocou em prática outras redes de relação com o exterior para as pessoas da instituição, que passaram então a trabalhar fora dela. Ao lado disso, um certo número de intelectuais procurados pelos alemães escondeu-se no hospital. Havia ainda uma gráfica secreta dentro do hospital e, num certo momento, tiravam-se cópias da tese de Lacan, o que na época fez muito barulho...

Foi um primeiro momento muito importante. Propunha-se a introdução das idéias psicanalíticas nas instituições, pensava-se que a psicanálise poderia ser aplicada, mas aplicada porém pelo viés de um novo arranjo: tratava-se de trabalhar com os enfermeiros, fazer numerosas reuniões, acionar a escuta de grupos, fazer os pacientes trabalharem etc. Assim, começava a tomar contornos a idéia de que a psicanálise poderia entrar nas instituições não pela prática de análises individuais, e sim pelo viés de práticas institucionais.

De que modo entra Mannoni nessa perspectiva histórica?

Mannoni surgiu para dar um salto decisivo nessa questão das análises nas instituições. Em um livro que se chama O psiquiatra, seu louco e a psicanálise1, ela relata a sua experiência em um IMP2. A partir do que lhe diziam os pacientes, Mannoni concluiu que a psicanálise individual, quer se queira ou não - pelo menos no hospital psiquiátrico - era capturada pela montagem político-institucional, fosse ela qual fosse. Primeiramente, para um paciente, o psicanalista era um cúmplice do que acontecia no hospital; de outro lado, aquilo que o psicanalista liberava, do lado do paciente, não era geralmente suportado pela equipe e tampouco integrado a ela, o que produzia passagens ao ato.

Eram numerosas as dificuldades institucionais criadas pela psicanálise. Muito cedo, neste livro que foi publicado quase na mesma época da fundação Bonneuil, Mannoni testemunha, através de sua própria experiência, a impossibilidade de a psicanálise ser praticada no lugar onde estão hospitalizados os pacientes. Isto não quer dizer que não se possa fazer psicanálise em um ambulatório; a dificuldade está nos lugares onde os pacientes são hospitalizados, em seu lugar de vida.

O que ocorria quando alguns analistas conduziam, naquela época, análises individuais e também participavam das reuniões de equipe em que se discutia seu paciente?

Geralmente, a equipe tinha rapidamente a impressão de que o psicanalista tinha um saber sobre o paciente, um saber que é efeito da análise, que ele não queria dividir. O psicanalista ficava numa posição difícil na medida em que sustentava o segredo profissional, segredo este que é muito importante. Além do mais, os efeitos da transmissão do que ele podia saber da análise de seu paciente a uma equipe que vive com ele pareciam ser muito loucos. Isto criava uma situação infernal; ou bem os analistas ficavam silenciosos nas reuniões, o que provocava efeitos imaginários muito persecutórios e mesmo terríveis, ou bem se punham a falar e falavam sempre demais, muito além do que deveriam dizer para respeitar seu paciente, para respeitar o que lhe dissera o paciente.

A partir dessa experiência, de que modo Mannoni propôs a análise individual para as crianças de Bonneuil?

A idéia de Mannoni, em Bonneuil, foi a de criar um lugar, primeiramente para educar, pensando que isto produziria efeitos sobre pacientes muito cronifiçados, coisa que Basaglia e Lang também mostraram. Em segundo lugar, ela se inspirava em Winnicott para dizer que, para as crianças psicóticas, tudo pode ser terapêutico, tudo funciona: o tratamento dispensado às doenças físicas, a atenção dada a uma criança, o acompanhamento na vida, etc. Para os neuróticos, no entanto, é preciso a psicanálise.

Então, em Bonneuil, a idéia é a de que fosse um lugar de vida verdadeiro, não de medicalização. Neste caso, não existe a necessidade do especialista psicanalista, que faça tratamento psicanalítico, a idéia é a do jogo pelo jogo, sem interpretação. A vida cotidiana já era um elemento terapêutico, em que se obtinham mudanças. No après-coup, poderíamos nos interrogar sobre o que se havia passado.

A idéia, na época, compartilhada por Mannoni, Leclaire, todos esses, era a de que, no fundo, a psicanálise estava "fora do social", estava afastada do campo social. Ir ao psicanalista, pagar, etc, tinha um valor subversivo; assim, a proposta era a de que as crianças pudessem ir ao analista com a mesma liberdade e a mesma exterioridade que tinham com relação à família e com relação à instituição. Era preciso que fossem a um analista particular, e não que fizessem análise em uma instituição que se comportasse como uma mãe de psicótico. Nas palavras de Lefort, uma instituição que funciona como mãe de psicótico pensa poder tudo, supervisionar tudo, controlar tudo, etc. A idéia da instituição estourada foi essa, a de que fosse uma instituição "não-toda". Uma instituição que vai sempre em direção à totalidade, uma instituição psiquiátrica que se ocupa da saúde, da saúde mental, do bem do paciente, de sua liberdade, de sua psicoterapia, que controla tudo, recria essa extrema dependência, com a qual não pode haver ruptura, e não se consegue mais sair deste lugar. São, aliás, os próprios pacientes que nos colocam nesta posição de mães de psicóticos, por causa mesmo da demanda que nos dirigem. Assim, a idéia de Bonneuil é a de ser um lugar não todo-poderoso; os medicamentos, na época, eram prescritos por médicos fora de Bonneuil; a psicanálise e o trabalho eram vividos no exterior. Ou seja, trata-se de uma instituição constantemente marcada pela sua incompletude, por sua não totalização, por brechas, por aberturas.

Mas será que, com essa separação entre a analise da criança e o trabalho institucional, não estaria havendo uma espécie de divisão de forças, que acabaria prejudicando a própria criança?

A.V. Bom, primeiro é preciso dizer que as coisas evoluíram, que as instituições na França mudaram. Quando recebo uma criança para tratamento, recebo também os pais. Há muitas diferenças, é verdade, entre um tratamento e outro; às vezes vejo os pais raramente, outras mais frequentemente. Além disso, recebo também o adulto de Bonneuil que acompanha, geralmente, aqueles que não podem fazer o trajeto sozinhos. Sempre lhe pergunto como vão as coisas em Bonneuil, se ele tem algo a dizer, e se há realmente uma situação muito urgente, posso dar uma ligada para Michel Polo3, não há rigidez absoluta.

Há ainda analistas que trabalham em Bonneuil, e que ocupam o lugar de analista, como por exemplo Robert Lefort, ou seja, são conselheiros técnicos da instituição; eles supervisionam a reunião de síntese, e o que se passa com uma criança na vida institucional.

Se a instituição não deve se apresentar de maneira todo-poderosa, como conciliar essa posição com o fato de que as análises são indicadas por Bonneuil?

Às vezes para algumas crianças o lugar da análise se torna o lugar onde se pode trabalhar a separação. Tenho ainda 2 ou 3 crianças em análise que não estão mais em Bonneuil, elas continuam a ser seguidas de longe por Bonneuil, pela equipe. A análise é o lugar onde poderá trabalhar esta separação, pois já foi de cara um lugar de ruptura, de corte.

Mannoni afirmou também que a função institucional da análise é a de marcar que nem tudo é da alçada da instituição, e que a psicanálise particular, a análise da criança, é também um lugar para vomitar a instituição. Necessariamente, em todo laço transferenciai que se cria há sempre um traço negativo - isso é banalmente freudiano. Mas esse lado negativo está mesmo na base do laço transferenciai, se pensamos no que dizia Freud sobre a primeira relação com o próximo. Nós sabemos bem que, para o sujeito, a primeira relação com o outro é uma relação de ódio. Se este laço é fundamental numa relação transferenciai, então, necessariamente, para a criança também; este laço é que vai pertencer à instituição, já que freqüentemente ele não pode ser negado, sobretudo no caso da psicose, porque no caso da psicose, poder dizer este negativo, este ódio, é uma ameaça de destruição para si também. Um lugar onde este negativo possa ser dito, no qual as crianças possam ir para reclamar de Bonneuil, xingar, etc, como as crianças fazem com a família; nas análises, é um ponto muito importante. Nas instituições clássicas, diz-se que todos querem o bem das crianças; como nas famílias, os pais querem o bem das crianças, e a instituição também. Quer cuidar, quer curar. É bom que possa existir um lugar também onde se possa ir dizer até que ponto o bem faz mal, é destrutivo também. Se a criança estiver, porém, dentro da instituição, é muito mais difícil. Como vomitar algo para alguém que é solidário ao lugar do qual se quer falar mal?

Mesmo quando o enquadre está bem definido como enquadre analítico, essa dificuldade ocorrerá?

A.V Quando uma criança sai da sala do analista e se encontra imediatamente dentro da instituição - Mannoni escreveu isso em O psiquiatra, seu louco e a psicanálise - a criança vai quebrar a vidraça; o negativo vai para um lugar que não é separado, que não tem seu lugar fora da instituição, e que poderá acabar por se dirigir para o corpo mesmo da criança.

Como e quando são indicadas as análises?

A.V. Isto é muito variável. Há um certo número de crianças que já chega estando em análise. Normalmente, quando não ocorre nenhum problema, ela continua com seu analista; do contrário, se há necessidade de uma mudança - às vezes pode acontecer de o analista ter que deixar a criança - então é Bonneuil que vai encaminhar a criança para um de seus analistas.

É frequentemente Michel Polo, o diretor, que faz os encaminhamentos. Mas eles são, creio eu, discutidos nas reuniões de equipe. Quando? Não é nunca sistemático, não é automático, há crianças que fazem todo o seu trajeto em Bonneuil sem nunca ter feito uma análise.

Num dado momento começa a aparecer, na vida institucional, um material com o qual a instituição não sabe o que fazer; o educador que a acompanha, o adulto que vive com ela, enfim, os adultos que estão à volta da criança não podem fazer muita coisa, pois se interpretarem este material, estarão fazendo interpretações selvagens. Pensa-se então que essa criança poderá se dirigir a um analista, para falar de seu sofrimento, de suas dificuldades, de crises familiares. Há um tempo para chamar o analista que não é nunca sistemático, ligado ao fato de em Bonneuil haver uma extrema atenção com as crianças; nas reuniões, há sempre algo a ser dito sobre cada criança. Na época em que fazia parte da equipe, achava muito interessante ouvir cada um falar sobre a criança em um ateliê, na moradia, no trabalho do canteiro de obras. Tecia-se um fio do sofrimento da criança, de suas dificuldades, e o fato de estar mal em tudo poderia ser uma indicação de que era hora de uma análise; ou podia ser que estivesse muito mal num ateliê, e muito bem nos outros espaços, isso não tinha o mesmo valor e o mesmo sentido, ir muito mal num lugar preciso podia ser massacrante para a criança.

Os analistas fazem parte da equipe?

A.V. Sim, eu faço parte da equipe, eu sou pago por Bonneuil, quer dizer que Bonneuil não vai a qualquer analista, Bonneuil não vai pagar qualquer um, eles têm a lista de seus analistas.

Que posição a análise ocupa em relação à instituição estourada? Ela faz parte dela, há um fio que pode ser tecido incluindo-se as análises das crianças no trabalho que é feito com elas em Bonneuil, ainda que o analista não esteja presente nas reuniões de equipe?

A.V. É verdade que seja preciso haver um fio no sentido de "fio vermelho"4, você sabe, no sentido de um fio, um fio que tenha cortes, que tenha um valor, que não seja qualquer coisa porque senão - Mannoni insistiu bastante nisso em certa época - não estaremos mais na instituição "estourada5, e sim no despedaçamento; para o psicótico, este é o verdadeiro risco. Mas com as instituições muito unificadas, num hospital psiquiátrico por exemplo, este despedaçamento acontece rapidamente; basta ter um psicótico num lugar para que todos se xinguem, e assim se fabrica o corpo despedaçado institucional. De outro lado, a instituição estourada supõe que haja um ponto de unidade, um fio simbólico, e que existam coisas juntas. Posso dizer que o trabalho analítico sobre a via institucional está incluído nesse fio, mas a análise particular de uma criança, não.

O que é complicado é o fato de os analistas serem pagos pela instituição. Muito excepcionalmente, se necessário, pode acontecer de pedirmos à criança para pagar um franco ou três francos. É preciso dizer que os pais pagam alguma coisa, diferentemente dos hospitais em que tudo é gratuito ou reembolsado, eles pagam alguma coisa para a escola de Bonneuil, Então é verdade que é difícil pedir aos pais para pagarem algo mais.

Embora ainda haja problemas que precisamos resolver, as análises feitas fora dos espaços de convivência da criança são melhores para ela.

 

NOTAS

Alain Vanier é psicanalista, membro do Espace Analytique, professor da Universidade de Paris VII, e analista de crianças de Bonneuil.
1 Le psychiatre, son fou et la Psychanalyse. Paris, Seuil, 1970.
2 Instituto Médico-Pedagógico (N. do T.)
3 Michel Polo é o diretor da Escola de Bonneuil (N. do T.)
4 "fil rouge" no original. (N. do T.)
5 éclatée no original. Noção cunhada por Mannoni para designar este tipo de instituição. (N. do T.)