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Estilos da Clinica

Print version ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.3 no.4 São Paulo  1998

 

DOSSIÊ

 

Entre o pesadelo e a utopia: Bonneuil-sur-Marne

 

Between utopia and nightmare

 

 

Silvia Fendrik

Psicanalista radicada em Buenos Aires. Autora do livro Ficción das Origens, publicado pela Artes Médicas em 1991.

 

 


ABSTRACT

Ninguém que tenha passado por Bonneuil saiu de lá indene. Nunca poderá dizer que essa foi apenas mais uma experiência de sua vida. A aposta de Maud Mannoni, bem como daqueles que a acompanharam durante estes últimos trinta anos, ou apenas durante o tempo de um curto estágio, talvez seja a colocação em ato, mais comovedora e emocionante, de uma prática psicanalítica que diga respeito não só à psicose como também às instituições e à cidade. Em suma, trata-se de colocar à prova a possibilidade do sujeito de se responsabilizar pela sua palavra.

Bonneuil; Maud Mannoni; psicanálise.


ABSTRACT

Nobody who can pass a time at Bonneuil and emerge safe and sound. Nobody would ever dare say it was just one more life experience among others. Maud Mannoni, as well as whoever has followed her during these last thirty years, or even during the short period of a traineeship, has probably bet on the most touching and moving execution of a psychoanalytic practice that is concerned not only with psychosis but with the city and the institutions as well. In short, it all comes down to probing the subjects'possibility of becoming responsible through their own words.

Bonneuil; Maud Mannoni; psychoanalysis


 

 

Propus-me sempre, como analista, não desenvolver unicamente uma prática privada... Influenciada por Winnicott, que encontro periodicamente em Londres, compreendo que certos pacientes, jovens ou crianças, precisam antes de tudo de um lugar que lhes ofereça um mínimo de segurança afetiva em sua existência cotidiana..." "Por que, perguntava-me Winnicott, você fala de "cura", quando o certo é que se trata de acompanhar esses seres desamparados?" O importante para mim é entender de que lugar o sujeito fala e por quem, em certos momentos, é "falado"... "o que me interessa, seguindo o exemplo de Freud em seu encontro com Catalina a 2000 metros de altura, é captar rapidamente, o "nó" da questão, cujo efeito, repito,revela-se catártico... Parece-me importante não esquecer até que ponto os começos da análise tinham um caráter pragmático... a intervenção analítica não consiste evidentemente na explicação (de Édipo ou da castração). É na resolução de um drama revivido na transferência que se encontram as chaves de determinadas "curas".

"Cabe ao analista, segundo uma fórmula que peço emprestada a Michel de Certeau, escutar aquilo que a teoria não diz".

"Exposto ao inconsciente, o jovem analista gostaria de não estar só com seu paciente. E procura garantias em sua análise pessoal ou nas supervisões. No entanto é a experiência de estar só que ele precisa aprender a assumir".

É esse tipo de afirmações de estilo claro e decidido que se pode encontrar nos numerosos livros que Maud Mannoni escreveu ao longo dos anos, a partir de A criança atrasada e sua mãe. Comparadas com o que ela mesma reconhece como psicanálise "pura e dura", podem ser facilmente questionadas a partir desse saber, teórico. De fato, o foram. Mas Maud Mannoni não retrocedeu. Movida por uma permanente urgência de romper com moldes esclerosados, tanto nas instituições (a instituição analítica inclusive) como com formas de teorização que correram o perigo de se transformar em demasiado abstratas, para ela era vital encontrar o modo de não perder contato com uma prática viva e transformadora, sem por isso perder os instrumentos conceituais que impedem que a experiência analítica se converta num puro trabalho de caridade humanitária...

Mannoni foi analisada por Lacan e foi também sua discípula. Seu ensinamento, como o de Lacan, também foi traduzido em fórmulas canônicas rapidamente traduzidas em técnicas, opostas a outras técnicas. A escuta do pedido de análise da criança, a inclusão dos pais no tratamento, a sacralização - técnica - da presença do pai. Inclusive antes do de Dolto, o nome de Maud Mannoni foi rapidamente homologado na Argentina ao de Lacan, o Lacan para crianças. (Lembro-me que em certa oportunidade um grupo de analistas "de crianças" me pediu para fazer um grupo de estudos de "psicanálise infantil" no qual só queriam estudar M. Mannoni porque Lacan lhes parecia muito difícil).

 

BONNEUIL

É em Bonneuil que Maud Mannoni porá à prova sua paixão pela inventiva de que a psicanálise "viva" necessita e encontrará obstáculos de todo tipo, e é onde também, junto com as crianças "com handicap", autistas, psicóticos e/ou débeis mentais, encontram um lugar para viver.

Instituição "estourada" inspirada no espírito questionador do poder autoritário de maio de 68, instituição criada com o fervor das utopias, converter-se-á com o passar dos anos num lugar de peregrinação.

Jovens stagiaires de muitas partes do mundo dirigirão para lá seus passos em busca da revelação dos segredos da psicose infantil e de seu tratamento. Não sabem que não encontrarão em Bonneuil nenhuma verdade revelada e também não sabem que é a sua heterogeneidade, suas diferentes origens e formações, suas diferentes línguas, o combustível para que Bonneuil não se extinga e se esclerose. É a eles que Maud Mannoni se dirige e em quem confia, para que cada um saiba logo o que fazer com essa experiência.

A explosão em fragmentos que cada um levará consigo em sua volta a seus respectivos países efetua-se nesse trânsito permanente entre Bonneuil e o "exterior", em função de uma circulação contínua de pessoas e palavras. Não somente as crianças e os artesãos que lhes ensinam ofícios, as famílias de camponeses que os acolhem, ou os sofisticados colégios da Inglaterra, Itália ou Espanha onde são reconhecidos em outras línguas, saberão que o poder esmagador de certos significantes da língua materna é posto em xeque pelo lugar terceiro do estrangeiro, do diferente, que circula tanto dentro como fora de Bonneuil, ou entre Bonneuil e o "fora". Muitos se queixarão de "estar de lado" , ou "abandonados", diante da carência de instruções precisas do trabalho com as crianças. A utopia torna-se pesadelo cotidiano no ir e vir moebiano dos encontros e desencontros.

Até onde pode chegar um compromisso com as pressões - desde as administrativas até às pessoais - sem que se corra o risco de perder as razões de ser de um trabalho que só tem sentido enquanto se sustenta num desejo de criação e de questionamento contínuo de si mesmo? Sobre as dificuldades Maud Mannoni se animará e testemunhará.

O "risco de viver" não só pertence aos que obtiveram uma renda de invalidez por serem retardados mentais ou autistas, mas também aos "normais" que, amantes das "ordens estabelecidas" correm o risco de transformar-se em parasitas obedientes das normas. Correr o risco de sustentar-se ao nível do desejo, "exige a criação de um espaço de esperança para as crianças, para os adolescentes e para nós mesmos".

Ao contrário do que se supõe, esse espaço de esperança não é sem pesadelo. O pesadelo é intrínseco à utopia. A circulação pelo Outro palco manoniano na realidade do cotidiano põe à prova a impotência de crianças e adultos, prova de castração, e das diferentes respostas frente a essa prova, talvez não essencialmente distinto do que nas sociedades primitivas se chamam de ritos de iniciação. Não há sujeito suposto saber. Talvez por isso a lógica da instituição "estourada" exija que a relação analista/paciente tenha lugar num espaço e num tempo diferentes, "fora" da instituição...

 

COMO FUI POSTA À PROVA:

Recém-chegada a Bonneuil em maio de 92 e preparando um extenso trabalho no campo da psicanálise infantil, que incluía um livro traduzido para o Francês e editado por Maud Mannoni na coleção "Espace Analytique", solicitei uma permanência em Bonneuil durante um período de três meses sem cumprir os horários e requisitos diários de assistência a que são obrigados os estagiários. Meu pedido foi aceito. Durante a semana, aproxima-se de mim um menino, Sébastien, me perguntando quem era eu, de onde eu vinha e porque não tinha vindo no dia anterior. Logo depois de trocar comigo algumas palavras, perguntou-me se eu gostaria de ouví-lo tocar piano. Combinamos que ele o faria na próxima semana. No entanto fico sabendo que este convite era formulado por Sébastien, de dez anos de idade, filho e neto de músicos, e pianista precoce e superdotado, aos "desconhecidos" recém-chegados, categoria em que, obviamente, o menino me havia incluído. Passam uns dias nos quais Sébastien parece ter-se esquecido de seu convite, até que volta a fazê-lo de maneira premente. Conduz-me então pela mão a um lugar onde se encontram - a certa altura - as chaves da sala de música e me ordena peremptoriamente que as pegue. Pergunto-lhe se não é necessária uma autorização para entrar lá (isto se passa de manhã, ou seja durante as atividades escolares). Responde-me que não, que ele tem acesso ao salão de música quando o deseja. Um pouco intrigada e perguntando-me a razão pela qual este estaria fechado a chave, mas também desejosa de o escutar, deixo de lado minha preocupação e abro para Sébastien as portas do porão, onde ele tocou piano (para mim?) maravilhosamente durante mais de uma hora.

Não foi fácil subtrair-me e subtraí-lo de "sua" música, mas finalmente consegui convencê-lo de que já bastava. O primeiro que encontramos ao voltar à superfície foi um professor furioso que o censurou severamente pelo que havia feito. Ahá! me disse eu, então é assim. Aqui estão os limites da suposta liberdade. Obviamente eu não deveria ter cedido tão facilmente aos argumentos de Sébastien, pelo menos não antes de perguntar se "era correto", e obviamente o menino não tinha permissão para tocar piano quando bem entendesse.

Mas a questão não era tão simples. Sébastien estava de castigo e este consistia, precisamente, na proibição de tocar piano durante uma semana. O professor, aborrecido, exige que ele me conte as razões do castigo e Sébastien, dando de ombros, diz que "ele não sabe" e vai embora. Fico sabendo pelo professor que no dia anterior, Sébastien havia abandonado uma estagiária recém-chegada do Brasil, que o acompanhava à sua sessão de análise em Paris, numa estação de metrô, e havia fugido. A estagiária voltara desesperada a Bonneuil, sem Sébastien, e este voltou por sua conta, muito calmo, várias horas depois. (Entre suas habilidades estava o saber de memória todas as conexões do metrô). Tento assumir minha responsabilidade: afinal de contas fui eu que abri as portas sem consultar... O professor insiste: S. sabia perfeitamente, nos dois casos, o que estava fazendo. Um pouco depois encontro-me novamente com S. Pergunto-lhe se "realmente" não sabia as razões do castigo. Parece não entender e por sua vez me pergunta quantos anos tenho. Pergunta que repete uma porção de vezes até que resolvo dizer-lhe que eu também estou contrariada pelo que "me" fez e que não estou com vontade de lhe responder. Mas ele insiste, rindo: - Quantos anos tens? Ocorre-me então propor-lhe que se durante uma hora ele me deixar sossegada e não me perguntar de novo, vou responder-lhe. Com esta aposta, pretendo responder-me uma pergunta: saberia ele, sendo psicótico, a causalidade entre sua "falta" e o castigo que lhe deram? Ou talvez, sendo psicótico, a noção de causa e culpa lhe fossem alheias? O fato é que, psicótico ou não, respeitou o prazo combinado e cinco minutos antes de que a hora se completasse, foi se aproximando de mim lentamente. Adivinham o que aconteceu quando faltava apenas um minuto? Sébastien torna a fazer sua pergunta. No preciso instante em que podia haver "demonstrado" sua capacidade de espera, e "ganho" minha resposta, viu o professor no umbral da porta, ou melhor, viu o olhar do professor e resolveu perder. Eu também vi, nesse instante do olhar, o professor olhando para Sébastien e Sébastien olhando para o professor. Chegara a hora da verdade. Sébastien sabia e havia decidido castigar-se, "a seu modo".

Eu também havia resolvido ficar em Bonneuil à minha maneira. Qual a relação entre minha maneira de ficar lá como visita, para "ver", não cumprindo os horários da escola e que S. me usara para a sua? Não é uma conclusão sobre isto o que me importa destacar aqui. É apenas um relato, um testemunho entre mil, do tipo de situações, do tipo de interações criança-adulto-criança que não deixava dormir quem quer que circulasse pelos espaços moebianos de Bonneuil-sur-Marne. A diferença entre adulto e criança que conta ali não é a que habitualmente outorga ao adulto um poder de adulto, - ou um saber de especialista - sobre a criança, mas a de assumir a responsabilidade dos seus próprios atos. Neste sentido posso reconhecer que S. me deu uma lição para o futuro, para quando eu tivesse mais anos, talvez para hoje, quando o recordo como um professor, como alguém que me ensinou que é a partir de seu ser e não da função que ocupa, que um adulto pode fazer conjuntamente com uma criança no terreno da psicose, e mais precisamente da alienação que nos diz a todos respeito.

E para concluir, gostaria de evocar outra lição. Neste caso, refere-se à Biblia e é uma interpretação do episódio de Babel, cujo autor é o pensador israelita Y. Leibowitz. Ao contrário da interpretação canônica que estabelece que Deus castigou os homens por terem pretendido construir uma torre tão alta que chegasse ao céu, condenando-os a falar idiomas distintos e a não poderem se entender nunca, propõe Leiwobitz que as línguas estrangeiras são um dom de Deus, não um castigo. Se falassem sempre a mesma língua, há milênios que os homens já teriam morrido de fastio e de indiferença. Não poderíamos dizer, parafraseando Lacan, que Maud Mannoni como analista, não conhecia bem o torvelinho a que sua época a arrastava na obra contínua de Babel e que não sabia de sua função de intérprete na discórdia das linguagens.