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Estilos da Clinica

Print version ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.3 no.4 São Paulo  1998

 

DOSSIÊ

 

De uma instituição ideal a uma prática possível efeitos de um (bom) encontro

 

From an ideal institution to a possible practice

 

 

Leda Mariza Fischer Bernardino

Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Curitiba e da Association Freudienne Internationale. Doutoranda em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano na USP

 

 


RESUMO

Relato comentado de uma experiência de estágio na École Expérimentale de Bonneuil-sur-Marne, e da participação no acampamento de verão junto à equipe e às crianças da escola. Procura-se refletir sobre o lugar dado à loucura nesta proposta de trabalho, bem como sobre o funcionamento institucional, diferente do tradicional, aí realizado. Conclui-se com uma articulação entre este lugar tomado como ideal e a comparação com sua realidade cotidiana. Comentam-se os efeitos desta vivência em termos pessoais e clínicos.

Loucura, tratamento, instituição.


ABSTRACT

Report about a training experience in the École Expérimentale de Bonneuil-sur-Marne and the author's participation in the summer camping with the Bonneuil staff and the children in treatment. Reflections about the approach to the madness in this different work proposition, compared with an ideal of institution and its reality. The author comments the professional and personal effects of this experience.

Madness; therapy; institution.


 

 

Conheci teoricamente Bonneuil e o trabalho de Maud Mannoni e sua equipe no início de minha formação em psicanálise. Numa época em que o acesso à bibliografia sobre a abordagem psicanalítica da criança, e sobretudo da psicose no tempo da infância, era precário.

Os livros de Maud Mannoni me auxiliaram a sustentar minhas primeiras experiências no trabalho com crianças deficientes mentais, deficientes auditivas, psicóticas e autistas. Sobretudo, apoiaram meu desejo de trabalhar nas instituições em que eu trabalhava, apesar dos obstáculos e sucessivas dificuldades que aí surgiam.

Neste contexto, saber da existência de uma experiência como a realizada em Bonneuil, onde a psicanálise aparecia como possível, tanto no âmbito da infância, quanto no da psicose e das instituições - o que, na época, não era tão claro nem mesmo para a comunidade analítica - instaurava este lugar no horizonte de um ideal.

Foi sobre esse pano de fundo de idealização que se deu meu encontro com a "realidade" de Bonneuil e do trabalho aí realizado pela equipe dirigida por Maud Mannoni: primeiramente, através de um curto estágio dentro da própria escola, para depois participar de um acampamento de verão, durante as férias das crianças.

 

OS DIVERSOS IMPACTOS

Apesar de se intitular Escola Experimental, Bonneuil não é definida como escola, nem como hospital, mas como um lugar de vida. As crianças psicóticas aí encontram lugares de criação, de descoberta, de encontros, que as impulsionam à busca de uma identidade outra.

As identidades encontradas em Bonneuil são de duas categorias: os "adultos" e as "crianças". Dentre os adultos, estão os profissionais, estagiários ou visitantes, que vêm de todas as partes do mundo, atraídos pela proposta de trabalho, para participar desta experiência.

De início, tive muita dificuldade de, partindo do meu referencial institucional "catalogador", situar quem era quem em Bonneuil: confundi "adulto" com psicótico ali em tratamento e "criança" (adolescente) ali realmente em tratamento, com estagiário.

Primeiro impacto: perda das referências pessoais.

O funcionamento da escola prevê um trabalho escolar informal, atividades propostas pelos mais diversos ateliês (que enfocam o jogo e a criação), as atividades da vida comunitária, além de um trabalho de infra-estrutura constituído por reuniões de trabalho - teóricas, clínicas, institucionais, e reuniões com os pais.

Segundo impacto: a disposição de trabalho das pessoas ali, profissionais permanentes, que além do trabalho cotidiano se dispunham a enfrentar à noite horários de trabalho teórico, de discussão, exposição e questionamento. Via o desejo de trabalhar tendo lugar ali.

A impressão de confusão, movimento, desordem, perturbação, é uma constante em Bonneuil. Terceiro impacto: a "desorganização", a loucura se fazendo presente.

Entretanto, pouco a pouco, observando a seqüência dos ateliês, com o passar dos dias percebi o respeito aos horários, o hábito das crianças, os rituais de começo e fim das atividades, a discussão do começo do dia entre todos, um planejamento informal sendo feito, sendo posto em prática. Quarto impacto: sob esta aparente desorganização estava instaurada uma estrutura bem organizada (mas de modo algum rígida), onde o investimento se fazia na criança e não no local: "A desordem não se administra... É a partir dela que uma dialética se torna possível", escrevia M. Mannoni em Educação impossível (1973, p.13).

E que diferença, esta escola plena de vida (e mesmo de loucura), estas crianças que podiam apresentar certo brilho no olhar, estes adultos com toda uma disposição para trabalhar... diante dos quadros "assépticos", superordenados que eu conhecia, onde toda expressão era abafada em nome de uma certa ordem, o trabalho era uma obrigação interminável e as crianças, convidadas a se calar!

A confrontação com a psicose infantil, marcada pelas palavras que faltam ou se manifestam estereotipadas, os comportamentos inesperados, as relações interpessoais quase impossíveis, tudo isto se fazia presente ali: a loucura não se encontrava contida como em outros locais onde tive oportunidade de trabalhar, onde só se percebia o peso de seu abafamento.

Em Bonneuil, a loucura era mediada por elementos como:

■ o grande número de "adultos" e seu desejo de ali estar;

■ a estruturação dos ateliês (o planejamento das atividades, os rituais de começo e fim, referenciais identificando cada trabalho, a discussão entre o animador e os participantes sobre a experiência);

■ a ligação do trabalho a uma teoria e um trabalho de pesquisa, onde, no entendimento de M. Mannoni: "O paciente, longe de ser como freqüentemente pretendeu a tradição psiquiátrica, um modelo para ilustrar a teoria, é aquele graças a quem as questões podem se colocar: no disfarce do sintoma, sob formas de enigmas a decifrar" (1973, p.152).

 

O ACAMPAMENTO NA BRETANHA

Um acampamento é o resultado de um esforço de organização e de iniciativa: é preciso encontrar o local adequado, contar com um pessoal novo, apostar que todos vão se entender e escolher um grupo de crianças de situação e naturezas tais que sejam mais ou menos compatíveis.

O acampamento do qual participei, na Bretanha, no vilarejo de Grand Fougeray, data das primeiras experiências do gênero em Bonneuil. Foi nesta região que se desenvolveu também a primeira rede de famílias de acolhimento.

O espaço geográfico é composto de um antigo estábulo transformado numa grande peça, contendo uma cozinha, uma sala de jantar e uma sala de estar rudimentares. As instalações provisórias de banho, banheiro, bem como os serviços para lavar louça, encontram-se na parte de fora, artesanalmente improvisados. As barracas das crianças e dos estagiários (cada qual com a sua) são montadas ao lado desta "casa", no campo.

Neste cenário, adultos e crianças devem viver juntos durante um mês, partilhando as atividades de limpeza, de preparação das refeições, de lavagem de roupa e de louça, assim como as atividades de lazer: jogos, passeios, excursões. Além disso, acrescenta-se uma participação na vida do vilarejo (compras, festas) e um contato com os vizinhos e amigos de passagem.

Os adultos deste campo eram representados por dois profissionais permanentes de Bonneuil: a proprietária do sítio, cozinheira em Bonneuil, e uma psicóloga (que tinham levado seus próprios filhos) e quatro estagiários. Outras pessoas, parentes ou amigos (dos adultos), vinham ocasionalmente.

Dentre os estagiários, duas (uma professora alemã e uma psicóloga francesa) já tinham feito um estágio de seis meses num lugar de acolhimento da própria escola, um outro (um estudante de história holandês) nunca tivera contato com crianças psicóticas. Quanto a mim, eu levava minha experiência de contatos limitados a horários e situações próprias ao atendimento clínico destas crianças, além do trabalho institucional.

Durante este mês de estágio, no objetivo de "fazer com" as crianças, organizamos passeios nas redondezas, excursões às principais cidades da Bretanha, onde visitamos praias, castelos e museus, participamos de atividades culturais - fomos a concertos, ao teatro de fantoches -; sociais - fomos nadar no clube do vilarejo, participamos de festas locais, dançamos ao som das músicas típicas da região, rica em folclore -; e fizemos pequenos trabalhos agrícolas para os vizinhos, como colher maçãs e arar a terra.

Foram muitas as peripécias, trágicas no momento, cômicas no só-depois: uma das crianças (quase adolescente) quis nadar nua na piscina e tirou tranqüilamente o calção; quando fomos tentar uma "negociação", saiu correndo como estava pelo clube.

Noutra ocasião, ao visitar Rennes, dois pré-adolescentes ficaram maravilhados com a estátua do fundador da cidade, pois nela reconheceram a inscrição grafitada "merda"; quiseram ser fotografados ao lado de tão precioso souvenir.

Na volta de uma das pequenas viagens, ficamos tão confusos para descobrir o caminho que acabamos por bater um carro no outro!

Lembro-me ainda da emoção de uma das crianças, um menino ex-autista que praticamente não se comunicava conosco, ao receber um cartão de seu "acompanhante terapêutico" de Bonneuil; ao escutar a mensagem aí contida, pôs-se a chorar. Ou da nossa decepção, ao perceber que aquela menina que acreditávamos, com tanta satisfação, estar observando um desfile de circo na rua, como qualquer outra criança, estava na verdade fascinada com um letreiro em néon, que se repetia ad infinitum...

Muito marcante foi o jantar que organizamos no acampamento para a vizinhança: preparamos a comida e as crianças fizeram um teatro e se apresentaram.

Menos emocionantes são as lembranças dos cocôs que tínhamos de limpar algumas vezes, da roupa de cama sempre urinada de alguns, ou dos momentos em que alguém "fugia" e tínhamos de correr atrás...

Ao final do dia, o cansaço era imenso. Antes de deitar, uma vez as crianças acomodadas, sentávamos na sala para tomar chá e discutir a jornada.

Um trajeto foi percorrido pelas crianças e por nós, adultos, tendo como fundo a confrontação diuturna com a psicose infantil, fora dos quadros protegidos hospitalares e pedagógicos, com seus horários, atividades e um distanciamento assegurado!

 

CONCLUSÃO

A vida no campo oferece às crianças possibilidades inesperadas de desabrochamento, pois elas se sentem menos marginalizadas do que nas cidades. O contato com elementos como a vegetação, os animais, a água, deixa-as mais à vontade consigo mesmas. As relações interpessoais, por sua vez, ocorrem de outro modo, mais simples. Os camponeses ou os habitantes do vilarejo percebem, naturalmente, que se tratam de crianças "diferentes", mas suas reações diante delas não têm a carga de preconceitos e de temor comparável à das pessoas "informadas" das grandes cidades. Eles não têm uma expectativa definida de comportamentos, como as que as crianças estão habituadas a encontrar e à qual respondem: diante disto, elas são obrigadas a "inventar" uma identidade outra.

Do mesmo modo, a vida em comum, cotidiana, com estas novas pessoas - os adultos do acampamento - abre outras vias de comunicação no lugar daquelas, viciadas, do universo familiar ou escolar. Tanto mais que se trata de pessoas não implicadas em seus dramas familiares, vindas de diversos lugares e motivadas por um desejo pessoal de viver esta experiência.

Estas condições favoráveis não vão, contudo, impedir as crianças de apresentar toda a gama de comportamentos defensivos diante das situações novas, nem os adultos de enfrentarem como uma dura prova a convivência diária com a psicose.

Minha passagem pelo acampamento de verão, dentro da programação de Bonneuil, permitiu-me refletir sobre como a fragilidade de referências própria à psicose traz riscos constantes de rompimento das propostas de trabalho, principalmente pela repetição significante que marca a transferência real própria a esta estrutura, como muito bem apontou Marie-Christine Laznik-Penot (1989), ao comparar o lugar da criança psicótica com o da carta roubada, onde adultos e crianças podem ser levados, inconscientemente, a reproduzir situações conflituosas de sua história anterior.

Situa-se aí o papel fundamental da criação de uma instância terceira - como o trabalho de pesquisa, por exemplo - para que, mais além das crianças e das atividades organizadas para elas, um outro ponto de interesse apareça como horizonte. Abre-se a possibilidade, para a criança, de uma exclusão necessária, apontando para uma existência outra, diferente daquela de objeto de cuidados.

Maud Mannoni observava a importância de não engajar psicoterapeutas para viver com as crianças - a escola definindo-se como lugar para viver -; por outro lado, ela não negligenciava o caráter indispensável de um trabalho analítico pessoal por parte destes adultos.

O que posso resgatar, tantos anos depois, deste encontro com Bonneuil?

1. Com efeito, no que concerne à comparação entre um certo ideal e a realidade vivida.

O fantasma, cuja função primeira, Freud (1911) dizia, é a colocação em cena do desejo, apela às instituições, na medida em que não encontra intencionalidade senão nestes sistemas de alienação, representantes do Simbólico, que tornam a criação possível, como fala Odin (1976), a partir da experiência de La Borde.

As instituições são, pois, ao mesmo tempo lugares de intercâmbio humano que impulsiona a abertura (instauração de fantasmas) e lugares de alienação impulsionando à inércia (trituração dos fantasmas pelas estruturas institucionais).

Este duplo papel das instituições (permissão e interdição da realização do desejo), constitui a "contradição" essencial contra a qual se chocam os diferentes profissionais. O modo como eles tomam posição neste contexto determina suas relações diante da profissão, do lugar de trabalho e deles mesmos.

Apesar de todas as suas especificidades, Bonneuil é uma instituição e, enquanto tal, partilha com as outras estas características de conter uma estrutura institucional, um pessoal que aí trabalha e aí comparece com seus próprios fantasmas, e uma população que vem formular a problemática da loucura, tudo isto inserido num determinado sistema socioeconômico cultural.

2. Ser psicanalista trabalhando em uma instituição implica uma confrontação constante com esta "contradição" entre desejo e paralisação (que, em suma, é a castração que barra nosso furor curandis), sem que por isso os fantasmas sejam destruídos. De outro modo, nada mais seria possível!

Ora, esta posição demanda uma vigilância quanto à fascinação da engrenagem institucional, uma abertura para o "novo" e uma disponibilidade ao questionamento autêntico. É preciso, ainda, estar ciente de que estes objetivos se colocam no plano do voto, já que são dificilmente atingíveis.

3. Em Bonneuil, pude vivenciar como ali se encontra realmente instaurado o que M. Mannoni propunha como principal eixo do trabalho com a psicose: o espaço para o jogo e a criação, inspirado nas idéias de Winnicott sobre o espaço transicional. Isto se deu quando participei do ateliê de escultura. Vivi ali algo único em minha história: criei algo que me surpreendeu muito. Ao observar, no final do ateliê, a escultura que produzi, mal podia acreditar que a fizera com minhas próprias mãos. Recentemente, lembrei-me desta experiência, ao deparar com o trabalho de Lúcia Serrano (1998) sobre a sublimação. Ela diz: "Se na sublimação temos essa questão de uma ultrapassagem do recalque, (...) como aquilo pelo qual o sujeito se sente ultrapassado, de alguma maneira surpreendido. O que se produz nesse ato apresenta-se como achado".

4. Dentre todos os impactos de que me lembro, o principal deles se refere à presença e ao peso da palavra (mesmo quando ela não estava na escola) de Maud Mannoni. Em Bonneuil, percebi claramente o quanto o difícil equilíbrio no funcionamento da instituição, propondo-a como um lugar diferente das instituições tradicionais, onde a inércia toma conta, estava a cargo de M. Mannoni, enquanto esta suportava o lugar de Outro aí necessário.

A questão que se coloca agora, parafraseando Contardo Calligaris,1 não por acaso, porque se trata da difícil questão da sucessão no campo da psicanálise, seria: sobreviverá Bonneuil à morte de Maud Mannoni?

De qualquer forma, a título de conclusão, gostaria de dizer que, quer Bonneuil sobreviva ou não, em sua fatualidade, é um fato secundário em relação ao lugar da experiência Bonneuil enquanto um marco no acolhimento e no tratamento da loucura, através da psicanálise - que vem servindo de SI para várias experiências congêneres, que ampliou os horizontes da psicanálise às instituições e à comunidade - isto fez história e já faz parte da ordem da transmissão na cultura.

Obrigada, Mannoni.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FREUD, S. (1911). Formulations sur les deux príncipes du fonction ne ment psychique. Paris: Payot.         [ Links ]

LAZNIK-PENOT, M.-C. (1989). Seria a criança psicótica carta roubada?. In: SOUZA, A. M. S. (org.). Psicanálise de crianças. Porto Alegre: Artes Médicas, p. 47-65.         [ Links ]

MANNONI, M. (1973). Education impossible. Paris: Seuil.         [ Links ]

ODIN, E. (1976). Histoires de La Borde. Recberches, 21.         [ Links ]

SERRANO, L. (1998). Sublimação: um interrogante em Freud. Ato 7 interpretação: revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, 14.         [ Links ]

 

NOTA

1 C. Calligaris proferiu, em 1990, uma conferência em Curitiba intitulada: Sobreviverá a psicanálise à morte de Jacques Lacan?.