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Estilos da Clinica

Print version ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.3 no.4 São Paulo  1998

 

TRANSMISSÃO

 

O sujeito infantil e a infância do sujeito

 

The infantile subject and the infancy of the subject

 

 

Alfredo Jerusalinsky

Psicanalista membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre e da Association Freudienne Internationale. Diretor do Centro "Lydia Coriat" de Porto Alegre e de Buenos Aires

 

 


RESUMO

O artigo discute o conceito de infância à luz da Psicanálise. Serve-se de Aries, que sustenta a idéia de que infância é um conceito que nasce juntamente com a modernidade, e de Neil Postman, que sustenta que a infância começou a concluir com a modernidade. E o que mais contribuiu para que a infância começasse a declinar como conceito foi a invenção de Gutenberg, a imprensa. Disse esse autor que o que transtorna a invenção da imprensa é a separação da posse do saber.
O autor conclui que, embora se trate de perspectivas totalmente contrapostas sobre a historicidade do conceito de infância, são ambas verdadeiras porque, sem saber, aludem a algo que a Psicanálise chama de "sintoma social".

Infância - sintoma social - psicopatologia

ABSTRACT

This paper discusses the concept of Infancy as it is viewed by the Psychoanalysis. It discusses the ideas of Aries, which stand that Infancy is a concept that was born together with modernity, and the ideas of Neil Postman, to whom Infancy has ended at the beginning of modernity, specially at the moment of Gutenberg's press invention. The author concludes that both authors are right because they point to the social symptom, a psychoanalytical concept.

Infancy - social symptom - psychopathology


 

 

"Vou comer muito para não ficar velha"
Clara, 3 anos

 

O tema sobre o qual falaremos hoje está enunciado nesse título paradoxal: "O sujeito infantil e a infância do sujeito". Eu o escolhi para colocar em evidência que a questão da temporalidade no campo do sujeito é estruturada de um modo tal que nosso pensamento consciente e nossa reflexão espontânea não se adaptam facilmente à sua lógica. Esse título evidencia já de partida que nos confrontamos com uma dificuldade que é própria do desencontro entre a lógica que organiza a estrutura mesma do sujeito e nosso habitual modo de pensar as coisas. Por isso, não podemos esperar, e isto é uma advertência, não podemos esperar que nosso percurso neste seminário venha a ser tão fácil como desejaríamos, já que, se formos conseqüentes com essa denominação - a de seminário -, o trabalho a fazermos não é simplesmente o de uma exposição conhecimentos acabados, mas sim um exercício de elucidação de um conjunto de conceitos. Conceitos que, embora previamente definidos, oferecem-nos, por sua própria definição, uma série de obstáculos para serem adequadamente compreendidos. É por esse motivo e não por meras razões de simpatia que se torna necessário que vocês interroguem porque senão esse exercício não vai ser possível.

Nosso assunto é a criança e a Psicanálise. De um modo mais genérico poderíamos dizer a Psicanálise e a infância. Vocês sabem que há autores que sustentam a idéia de que infância é um conceito que nasce juntamente com a modernidade. "A história social da criança e a da família", de Philippe Aries, sustenta esse ponto de vista. Mas há autores - eu menciono isto porque essa visão transformou-se em um lugar comum - que não partilham esse ponto de vista. Refiro-me especialmente a um autor americano, Neil Postman que publicou por volta de 1980 um texto que se chama "O Desaparecimento da infância", ou seja, não o nascimento, e tampouco o fim da infância, (talvez -este último- para que não ficasse superposto com o texto de Arthur Clark). Bem, aquele autor sustenta a idéia, muito interessante, de que a infância existiu como conceito pelo menos desde a época clássica, e oferece uma série de referências sobre isso na cultura grega, na cultura medieval, na cultura romana. Segundo ele, a infância começou a concluir, a acabar, com a modernidade principalmente. E o que mais contribuiu para que a infância começasse a declinar como conceito, como categorização, como fenômeno social, foi a invenção de Gutenberg, a imprensa. Não deixou de me surpreender que alguém dissesse semelhante coisa, confesso que levei um susto. Pensei que estava lendo um texto delirante. Mas, pela curiosidade que costumam despertar em nós os delírios, digo nós porque nos ocupamos dessas coisas evidentemente, continuei a ler. E ali me encontrei com os fundamentos de tal asseveração. Disse esse autor que o que transtorna a invenção da imprensa é a separação da posse do saber. Até a invenção da imprensa, as crianças ficavam, na cultura clássica e na antigüidade, separadas do campo do saber que no discurso social era reconhecido como tal. Dito de outro modo, as crianças eram excluídas de certas formas e fontes de saber consideradas fundamentais para a vida social. Advirto a vocês de que eu não estou contando isto porque eu concordo completamente com essas idéias, mas precisamos levá-las em conta, em seguida veremos por quê. Ele diz que, em concordância com o nascimento da palavra impressa, assiste-se ao surgimento, um século e meio depois, da escola da modernidade, ou seja, ao nascimento da escola estandardizada no que diz respeito ao saber a ser transmitido. La Salle propõe a substituição do ensino do espírito pelo ensino das coisas, ou seja, a substituição do ensino das condições morais, voltado para o resguardo de uma cultura, pelo ensino das variáveis que permitem caracterizar os objetos; a saber, então, o ensino das matemáticas, especialmente a aritmética e da geometria, das técnicas de navegação, das técnicas de agricultura, das técnicas de administração e do comércio, da transmissão de uma teoria do valor obje tivo, ou seja, do valor dos objetos, não do valor moral mas do valor de uso e do valor de troca dos objetos. Nessa substituição do ensino moral e religioso pelo ensino da prática industrial e comercial, opera-se então uma estandardização dos conhecimentos a serem ensinados e transmitidos, cujo extremo paradigmático é representado inicialmente por La Salle, e, no seu extremo mais recente, na tentativa de incluir na Declaração Universal dos Direitos da Criança todo aquilo que se supõe que uma criança hoje deve saber. Há um artigo de Alain Grosrichard na Ornicar n. 2 que se chama "O santo pedagogo", no qual ele se preocupou em apresentar os documentos históricos que contêm as propostas originárias de La Salle. Ali se pode ler que La Salle estabelece cuidadosamente não apenas os temas sobre os quais a escola tem que trabalhar mas também as medidas em metros, centímetros e milímetros das classes, dos cadernos, dos lápis, a distância a que deve estar o quadro negro do aluno, a posição em que o aluno tem que estar para poder bem aprender, a postura física até o detalhe sobre o lugar no qual têm que estar apoiados os cotovelos, em que posição tem que estar a cabeça, em que posição as pernas e os pés, qual é o ângulo de abertura entre as pernas que tem que haver, e sobretudo a medida da vara do mestre que é representante de sua autoridade, de seu poder e de seu saber. Vara com a qual, evidentemente, vocês sabem, se aplicavam os castigos que a má natureza e a presença de formações demoníacas em certos alunos fartamente -para aqueles educadores - justificava. Por sinal que estes castigos tinham um ressábio, conservavam um efeito residual das práticas exorcistas. Era para expulsar o mal do corpo que esses castigos se aplicavam. Não sei se caberia, mas provavelmente sim, atribuir às medidas disciplinares atuais um princípio semelhante, embora recalcado. E o efeito que a ciência introduz nas crenças: as transforma em técnicas e as desembaraça de seu irracional conteúdo imaginário, e original, para introduzi-las no campo de uma suposta racionalidade, em que a análise de sua lógica pouco resiste quando ela é agudamente elucidada. Essa estandardização se universaliza e está contida, por exemplo, nos manuais arquitetônicos que regem as normas de construção das escolas. Hoje em dia qualquer um pode ir ao MEC e pedir as normas de arquitetura escolar. Ali há uma série de itens onde vocês verão a quantidade de metros cúbicos que deve ter uma sala de aula, a posição em que têm que estar as janelas, as medidas das classes, a posição e tamanho dos quadros negros, o lugar que tem que haver para o deslocamento do mestre; e, é claro, ali já não se encontra a medida da vara, graças, entre outras coisas, à rebelião que, em Paris, no ano de 1832, Gustave Flaubert e seus colegas de 14 anos encabeçaram contra os castigos corporais praticados contra os alunos.

A partir dessa estandardização do ensino - estamos falando do fim do século XVII e início do século XVIII -nascem várias questões referidas à infância. Poderíamos situar nessa data o nascimento das pré-condições necessárias para o surgimento de uma psicopatologia propriamente infantil. Em meu texto "Quantos terapeutas para cada criança", publicado no nº 8 da revista "Escritos de la infancia", tento demonstrar que a partir de um standard que constrói um sujeito infantil suposto como normal torna-se possível, por contraste, identificar o que se desvia desse standard e nasce então uma presunção, um suposto psicopatológico nesses desvios. Dito de um modo mais simples: caso se proponha que todas as crianças de tal idade devem estar em condições de aprender tais e tais coisas de acordo com o standard, a qualquer criança que não aprenda o que deveria aprender nessa idade será suposta de uma patologia. É assim que este sujeito construído - porque este não é um sujeito real, mas um sujeito construído, suposto como normal - é o que seive de comparação ou de ponto de referência para definir o patológico. Nessa trilha desenvolve-se toda a psicopatologia infantil pelo menos até fim do século XIX e ainda permeia parte do que nos nossos dias é considerado psicopatológico na infância. Nos nossos dias, particularmente a partir do nascimento da Psicanálise e da influência da Psicanálise nas considerações psicopatológicas sobre a infância, se transforma esse conceito genérico. Não estamos falando da patologia em geral, estamos falando da psicopatologia. Nesta caso, entendida como um desvio psicológico do standard. Vocês devem saber que todos os testes - modo através do qual a Psicologia tentou se tornar útil ao campo diagnóstico - partem de um standard, partem de um constructo, de um sujeito imaginário, e é na comparação com esse sujeito inexistente que se estabelecem as medidas psicopatológicas, por exemplo, as introduzidas pelos testes. Muito bem, também nessa estandardização lasalliana surge não somente a possibilidade de uma psicopatologia propriamente infantil mas também surgem as condições que tenderiam a dar razão a Neil Postman (op. Cit.) quando propõe que Gutenberg é quem forneceria um dos principais instrumentos para pôr fim à infância. E não deixa de ter uma certa razão. Porque é verdade que a precoce entrada da infância no terreno das letras faz com que a criança passe a ter acesso a uma série de conhecimentos que albergam, incluem, formas de saber que até então só eram próprias dos adultos. Devem saber vocês que até pelo menos o século XVII, fim do século XVII, a iniciação no campo das letras era extremamente excepcional, bem como na aritmética. Devem saber também que somente os nobres, por sua futura função de poder, governo e administração, deviam se preparar para tal. Assim, salvo para os filhos dos nobres, não era considerado nem necessário nem conveniente, - e prestem atenção a esta última palavra, preceito da inquisição, não era conveniente que as letras se generalizassem porque elas abririam a possibilidade de saberes que seriam mal manejados ou mal interpretados pelo vulgo, - e as crianças deviam ser preservadas, portanto com muito mais razão, de uma série de conhecimentos e formas de saber totalmente contrapostas ao conceito religioso e consideradas, por aquelas autoridades, extremamente perigosas para a ordem moral da sociedade. Imaginem as considerações de Santo Agostinho sobre a vida sexual, nas mãos de uma criança! Escândalo! Essa é a razão pela qual as bibliotecas que restaram da época alexandrina, por exemplo, na Europa, estavam sepultadas em mosteiros sob quatro chaves, e que somente aqueles que provavam ter resistência suficiente, por estar impregnados no espírito divino, podiam ser autorizados a aceder a essas leituras. Por isso é que a proposta lasallana faz não pouco escândalo no interior da Igreja ao sustentar a idéia de "ensinar às crianças pobres a ler e escrever, e também aritmética". Embora hoje nos pareça que o conjunto das propostas de ensino de La Salle, comparados com os critérios pedagógicos modernos, apresentam uma série de inconvenientes e, diríamos também, uma série de propostas sádicas em relação às crianças, se a situarmos na época em que foi produzida, devemos reconhecer seu caráter revolucionário. La Salle estava propondo que tenras crianças de 7 e 8 anos de idade fossem iniciadas no campo das letras, o que lhes abria a porta para ler Platão. Como vocês sabem, poucas coisas eram tão escandalosas como Platão, e não estranhem que assim fosse porque no fim das contas Oscar Wilde, que é muito mais recente, também foi condenado por ser platônico. Porque eu diria que Oscar Wilde não foi condenado por ser homossexual e sim por ser platônico, ou seja, por revelar a verdade sobre o amor. Ou seja, essa verdade insuportável que Oscar Wilde enuncia com todas as letras e que diz que o amor não tem sexo e tampouco tem idade.

Bem, se continuamos essa linha de análise histórica da infância chegaremos a nossos dias com a comprovação dessa tese, na medida em que vão se generalizando e difundindo as formas de participação nos campos do saber, e também na medida em que a infância, ela mesma, começa a aceder de um modo cada vez mais livre a esses meios de difusão do saber, e com isso as diferenças de saber entre o adulto e a criança vão diminuindo. Por isso, nos nossos dias, e diríamos nos últimos dois séculos, é tão comum nos encontrarmos com o comentário vulgar de como as crianças sabem coisas que quando éramos pequenos nós não sabíamos. Ele nos causa uma certa inquietação e um certo alarme, embora o comentário possa ser risonho quando constatamos que as crianças são muito mais vivinhas do que supostamente convém, e que isso acontece muito cedo. Este "muito cedo" é arbitrário mas, digamos, tendemos a pensar que é muito cedo para as crianças ficarem sabendo certas coisas que supostamente seriam privativas do saber dos adultos. Assim surgem pesquisas sobre os efeitos da difusão de cenas sexuais na televisão, dos efeitos das novelas e das cenas de amor que nas novelas televisivas aparecem. Devo lhes dizer sobre algo de que me lembro de quando era criança (anotei em algum texto nesses dias). Em meu país de origem, a televisão se instalou quando eu já tinha 8 anos; quer dizer que eu estava, suponho, em pleno período de latência - não me lembro se tive latência ou não, devo lhes confessar que à luz de posteriores acontecimentos tive de duvidar disso (é uma brincadeira), como todo mundo, pois quando a gente lê na Psicanálise que há um período de latência, todo mundo se pergunta "mas será que eu tive?". Bem, naqueles dias de minha infância eu estava proibido de escutar o rádio depois das 8:30 da noite, porque depois das 8:30 da noite vinham as novelas para adultos. Particularmente, me lembro, por sinal, exatamente daquela que eu escutava quando meus pais iam passear. Ou seja, não há melhor indicador para saber o que a gente precisa escutar: é o que está proibido evidentemente, pois é ali que está o saber de que é preciso se apropriar. Havia uma novela que se chamava "O retrato de Dorian Gray", vocês devem ter conhecido o livro, é uma espécie de metáfora moderna de Fausto. E meus pais me proibiam de que eu a escutasse porque depois eu tinha pesadelos. E efetivamente eu os tinha! Não havia nada mais espantoso, nem mais aterrorizante do que escutar pelo rádio a voz lúgubre e tenebrosa do ator enquanto negociava com o demônio a venda de sua alma. E era muito pior quando ele gritava desesperado que seu rosto se desfazia no espelho porque ele estava sendo convocado a pagar a sua dívida. Posteriormente isso deu um bom trabalho para meu analista. Mas vejam como o rádio, novo passo depois dos livros, colocava já ao alcance das crianças certos temas que antes ficavam circunscritos aos adultos. Me parece muito divertido como ilustração daquilo a que aludimos e a que alude também Postman quando ele diz que Gutenberg assentou as bases da extinção da infância. Foi por sermos iniciados nas letras tão cedo que aos 11, 12 ou 13 anos fomos vasculhar na biblioteca de nossos pais para encontrar por acaso o manual do Dr. Spock "O matrimônio perfeito". Como vocês sabem esse livro é um antecedente de Master e Johnsons, supondo que nas suas técnicas sexuais se encontrava o fundamento da felicidade matrimonial. Bom, Master e Johnsons se divorciaram. O que quer dizer que o lugar no qual o discurso social situa o suposto do miolo do saber, capaz de garantir a felicidade, sempre se equivocou e não tem outra possibilidade senão errar porque tal miolo não existe. Mas isto não impede que, geração após geração, se repita essa operação de iludir a infância com a existência de um tesouro de saber que contém o segredo da felicidade, porque esse é o motor necessário e imprescindível para que a curiosidade da criança se instale. Então, em oposição a esse autor norte-americano, a partir de um ângulo estritamente psicanalítico, poderíamos dizer que a infância consiste, principalmente, fundamentalmente, nessa posição do sujeito do discurso, do sujeito da língua, que se caracteriza por supor, por ser levado a supor que ainda não sabe aquilo que ele precisa mesmo saber. Considerando então desse modo a infância, pode-se dizer que se em um certo tempo histórico a criança partilha de alguma porção e de algum modo do saber dos adultos, em outra época partilhará de uma outra porção e de um outro modo de saber e numa terceira, e numa quarta, de outro modo e de outro modo e de outra porção e de outra porção, sempre diferente, mais extensa, mais restrita etc., etc. Porém, a extensão do saber sempre cresce, do saber a produzir e do saber a adquirir, sempre cresce na medida necessária para que o pequeno sujeito se perceba como carente do saber que é necessário ter, principalmente para garantir a vida. Por isso poderíamos dizer que do ponto de vista psicanalítico a infância não é uma formação histórica e sim uma formação de estrutura; assim, houve infância entre os gregos, entre os romanos, na época medieval, no despotismo ilustrado, no renascimento ou nos nossos dias. Porém, qual é, então, o interesse que há para nós na leitura da história social da criança e da Psicanálise ou na leitura desse autor americano, ou na leitura dos belíssimos e interessantíssimos manuais sobre a história da vida privada que apareceram nos últimos tempos? O interesse desses dados é o fato de que, não por serem verdadeiros, eles são solidários entre si, ou seja, embora haja contradição entre eles, são todos verdadeiros. É tão verdadeira a afirmação deste autor americano sobre Gutenberg quanto a de Philippe Aries, em "História social da criança e da família", ou outros tantos. São perspectivas totalmente contrapostas, sobre a história, sobre a posição conceituai, sobre a historicidade do conceito de infância. Mas são ambas verdadeiras. Porque sem sabê-lo, porque eles não são psicanalistas e não precisam sê-lo, não precisam sê-lo para produzir algo interessante e aliás de grande utilidade para nossa compreensão dos processos humanos sobre os quais nos interrogamos. Embora contraditórios entre si, são completamente verdadeiros, porque, sem saber, aludem a algo que nós chamamos de "sintoma". E que consiste, como vocês já sabem, no artifício que o sujeito constrói para lidar com aquilo que ele não pode resolver. Dito em termos lacanianos, é uma tentativa desesperada de simbolizar o real que emerge como tal. Nesse real, a linguagem não pode chegar, e não consegue recobrir esse buraco de ignorância na medida adequada do que deveríamos saber, precisaríamos saber e não sabemos, diferença, distância que sempre em alguma medida aparece. Como a linguagem não consegue recobrir esse buraco, qualquer contrução discursiva que se fizer ao redor dessa imensidão de nossa ignorância, de nossa ignorância fundamental, é inevitavelmente contraditória. E assim, de tempos em tempos se inventa outro sintoma.

A imprensa, o standard educativo, os testes, as novelas televisivas, Xuxa, ninguém deve duvidar que Xuxa é um sintoma, suponho, sintoma social. De outro lado, bom preço paga por isso: encarna-o, ou seja, sofre o sintoma em carne própria. Como sofreu Ptolomeu, Copérnico, Galileu Galilei, ou quem for.

Na medida em que os sintomas -estamos falando dos sintomas sociais -propõem uma nova modalização do gozar, ou seja, um outro ordenamento lógico dos modos de desfrutar da vida e dos modos de gerar e sustentar a ilusão de um saber. Um saber suficientemente abrangente para nos garantir, na medida em que cada sintoma consiste na invenção de uma nova borda, consiste em uma nova proposta acerca dessa nova forma de saber e desse modo de desfrutar, de usufruir, cada novo sintoma causa escândalo. Por isso causa escândalo a televisão, ou a Internet causa alarme: "a que nos levará tudo isso?" Ou como dizia o velho senhor de uma propaganda televisiva do Corsa Wind, "onde vamos parar?" Lembram dessa publicidade? Se fez tanto sucesso é porque essa frase representa quase universalmente a nossa preocupação. E a resposta é "não sabemos". E inventamos um novo sintoma. Esse novo sintoma pode se chamar Corsa Wind, depois inventaram o Corsa de 4 portas que já não é tão wind. Bom, e assim vai. Mas aos poucos, perdemos o susto. Porque nos damos conta de que a infância continua e que filhos são filhos e pais são pais, embora o modo de produzir sintoma não seja o mesmo, porque, claro, a produção do sintonia individual se alimenta do imaginário social e é ali e a partir disso que faz a sua invenção. E por isso que o inconsciente não é um acidente histórico, porque vocês devem saber já nessas alturas que o grande projeto da modernidade é acabar com o inconsciente. Ou seja, substituir este lugar da ignorância ao redor do qual o discurso social, época após época, se esmera em produzir uma borda discursiva, substituir este buraco, "tamponá-lo" com um objeto positivado. Ou seja, um objeto de uma natureza tal que oculte a extensão de nossa ignorância recobrindo-a com uma técnica. Tal o projeto da ciência e da racionalidade modernista. Por isso não se poderia dizer que os cientistas da modernidade ou os pensadores da modernidade são inimigos do inconsciente. Não precisam disso, não precisam sê-lo. Basta que na sua prática social interponham esse tampão, esse objeto positivado no lugar e no caminho de qualquer interrogação. Entretanto, é o inconsciente que continua por ali fazendo as suas travessuras, porque na medida em que esse projeto frutificar, e eles têm confiança em que isso advirá, o inconsciente morrerá sozinho, já que - na versão deles o inconsciente não seria o inconsciente, senão uma conseqüência a mais de certos usos históricos da linguagem que se confundem com o misticismo. Por isso é que, na atualidade, psicanalistas e astrólogos, do ponto de vista do discurso social vulgar, tendem a ser situados na mesma posição transferenciai. Não sei qual é a experiência de vocês mas não são poucos os meus pacientes que fazem carta astral. E, da minha posição transferenciai, não há autoridade suficiente na minha palavra para eu impedi-los disso. Isto sem falar dos búzios ou outras práticas que têm outras tradições. Estou falando das aspirações científicas do pensamento místico. Das formas terapêuticas, como a bioenergética, e se pode ir até mais longe, tão perto da psicanálise como W. Reich. O ergonom, vocês sabem é um invento, é um aparelho, inventado por W. Reich, resolutor dos excessos de energia. É uma caixa dentro da qual o sujeito em terapia tem que ser metido, não se mete sozinho.

No fim das contas, poder-se-ia argumentar que nós, os analistas, também apelamos à sugestão. É por isso que Freud nos adverte que a sugestão não é o fundamento da análise. Ele distingue o cobre da sugestão do ouro da interpretação. Metodologicamente considerada esta questão, quando lemos um texto como o de Philippe Aries, ou como o desse bendito autor americano cujo nome demorou em vir à minha mente, justamente se trata de exercermos o ouro da interpretação e não nos deixarmos arrastar pela tentação de encontrar uma verdade unívoca. A este respeito recomendo um livro recentemente publicado, em novembro de 97, de Rolando Karothy, da Editora La Campana que se chama "Los Tonos de la Verdad", ou seja, os tons, as cores da verdade, as nuances da verdade. Karothy sustenta, a partir de Lacan, uma tese que é fundamental para a nossa metodologia de análise, de análise tanto de um texto como de um paciente. A tese é a de que a verdade não é unívoca, porque se fosse não poderia ser enunciada, já que seria da ordem do real e o real se caracteriza por ter uma extensão tal, nossa ignorância, que não pode ser comprimido num enunciado único. Aliás, esta questão foi também colocada por Heidegger, quero dizer, não pertence originariamente a Lacan, tampouco a Heidegger, Hegel já falava disso, do valor dos enunciados. Em um texto que se chama "A ética", ele sustenta um princípio fundamental segundo o qual toda ética, para ser considerada como tal, precisa, antes de mais nada, reconhecer o limite de seu saber, ou seja, a extensão de sua ignorância. Sem esse reconhecimento não há ética possível.

Há antecedentes do texto de Karothy em um artigo de Mark Darmond que se chama "A lógica e a verdade" e está publicado no Discours Psychanalitique. Karothiy afirma que qualquer enunciado da verdade implica um certo distanciamento dela e portanto se torna inevitável que os enunciados da verdade sejam incongruentes, numa certa medida, entre si. O que é muito diferente de sustentar a idéia do relativismo da verdade que o pragmatismo contemporâneo sustenta. Não se trata do que a verdade vale para cada um e cada um tem a sua, pois isso eqüivale a dissolver o império da lei, não haveria referência simbólica alguma então. Trata-se de que os esforços de "congruir" - é um verbo neológico - de fazer coincidir e convergir qualquer enunciado da verdade são legítimos, porém é necessário confrontar-se inevitavelmente com uma certa dose de fracasso. E é por isso que continuamos falando e produzindo teoria, e produzindo filosofia, é por isso que as pessoas se analisam, precisamente pela dimensão desse fracasso, porque a pergunta numa análise é "qual é a minha verdade?", é a forma subjetiva de enunciá-lo, o que em última instância quer dizer, "a que forma da verdade meu sintoma poderia se adequar?". Ou, do outro lado, qual o sintoma que deveria fabricar para conseguir "congruir", como me descobrir então em alguma das vertentes da verdade. As crianças se perguntam isso? Esta é a grande revolução que Freud introduziu: reconheceu que esta interrogação não é só uma interrogação dos adultos mas é também uma pergunta que as crianças se fazem. Uma pergunta que, sob forma de interrogação acerca do prazer e de sua legitimidade, as crianças incessantemente formulam. Quantas balas é legítimo comer antes do almoço, até que horas? Quantos programas de televisão posso ver, antes de dormir? Até que horas? Qual é minha limitação legítima na escolha do que como? Do que vou ingerir? Quanto de salgado e quanto de doce? Qual é a fronteira que no meu corpo indica onde devo colocar as mãos e os dedos? Em quem posso cuspir e em quem não? A quem posso morder e a quem não? Ou arranhar, ou abraçar. Quão nu e em que circunstâncias posso estar? Bem, não vou formular outras perguntas mais escandalosas que, na experiência de vocês com as crianças de 4 anos ou menos - nas quais o recalque não está ainda plenamente constituído - vocês devem escutar. Para termos uma dimensão mais ou menos precisa da extensão e força dessa interrogação, vou me permitir contar-lhes uma anedota pessoal porque, por sorte meus filhos me servem de exemplo nos seminários. Eu tenho uma pequena filha de 3 anos e meio. Chama-se Clara. O que indica minha pretensão de que se não pode ser gênio que pelo menos seja clara. E nos outros dias, brincando com ela, tomado por um acesso amoroso, me aproximo e lhe digo, quem é a mimosa do papai? Quem é a coisinha do papai? E ela sorri e como já tem as estruturas próprias da histeria, sorri dengosamente e não me responde, mas com um olhar inconfundível que denota que sabe do que se trata. E então, depois de um suspense, que me deixa no lugar desejante, é claro, o que a histeria faz com maestria, vocês sabem, me responde e me diz: "eu sou tudo". Alarmado, pelas implicações futuras que isso poderia vir a ter, eu lhe digo: "Bom, tu é muito importante, mas tudo? Tudo não! Está mamãe, está tua irmã..." e ela me responde: "Filha é tudo". Insisto e lhe digo, "mas quantas filhas eu tenho?" Ela sabe, me faz assim com a mão, tenho quatro. E me diz, "Leandro também". E o irmão, tenho um guri. O que quer dizer que no seu desejo de representação fálica ela muito gostaria de ser tudo, mas isso não a impede, contraditoriamente, de levar em conta ou na conta que ela é um entre outros. Vejam só a complexidade dessa interrogação, que é claro ela não poderia formalizar, mas que inequivocamente e de um modo extremamente transparente se encontra na arquitetura de sua subjetividade, porque não é por acaso esta série de respostas, sobretudo se a gente as confronta com o que alguns meses antes ela já tinha dito quando eu, também formulando a mesma pergunta, vejam a pouca originalidade dos pais, de todos, perguntamos sempre as mesmas coisas, eu também lhe perguntei, "quem é a mimosa do papai?" E ela, sem vacilar, me diz, "a mamãe". Bem, esta espirituosa brincadeira com esta criança, por que nos preocupa? Porque que temos que nos deter cientificamente em sua análise, por que pretendemos fazer disso uma ciência? Na verdade, parece uma banalidade. Qualquer astrofísico, se entrasse nessa aula, diria, "mas vocês se ocupam dessas coisas? Agora entendo por que o discurso psicanalítico não é considerado sério". Porque nos ocupamos disso. Porque sabemos que nestas pequenas formações discursivas se atesoura, se monta e se solda o que um sujeito, para sempre, depois vai ser. Freud nos ensinou e descobriu que, na infância, é legível o futuro desse sujeito, não sob a forma de um oráculo como os gregos o praticavam, nem tampouco sob a forma em que os sacerdotes eram consultados pelos romanos. Vocês sabem que os imperadores romanos consultavam os sacerdotes para que lhes antecipassem qual era a conduta política que deviam ter para a resolução de certas questões de Estado. E raramente se afastavam do que os sacerdotes recomendavam porque se, ao afastar-se, a coisa dava certo, considerava-se um equívoco ou uma intenção conspirativa do sacerdote, que então perdia seu lugar na hierarquia como consultor, um mau intérprete dos desejos dos deuses. E que se acertava, era um bom intérprete; com isto, a relação entre o resultado da recomendação e a vontade dos deuses ficava sempre preservada. Coisa fundamental, porque se essa referência aos deuses era uma referência paterna, portanto função simbólica fundamental, devia ser preservada. Mas, justamente, o que Freud transforma radicalmente é esta posição da referência paterna, e ele o faz explicitamente, por exemplo, na análise de Moisés em "Moisés e o monoteísmo" ou na de Leonardo da Vinci em "Uma lembrança infantil de Leonardo da Vinci", textos em que ele demonstra como na infância destes sujeitos estavam colocadas as pré-condições para que, se a conjuntura histórica lhes permitisse, seus sintomas ficassem ao serviço de uma certa missão artística, científica ou épica. Dito de outro modo, Freud tornou legível, na infância, em termos de estrutura e não de acontecimento, o futuro. Não com uma capacidade de predição e sim com uma capacidade de analisar as pré-condições e possibilidades de que diferentes ou iguais acontecimentos passassem ou não a fazer parte deste sujeito. Freud nos propõe que o infantil do sujeito é legível na sua infância, e que, no adulto, essa infantilidade ou essas formações infantis persistem não sob a forma de acontecimentos inexoráveis, mas sob a forma de um tecido lógico que permite a esse sujeito ser ou não partícipe de certa posição e acontecimento sociais. E isto tem um valor psicopatológico fundamental porque se afasta decididamente dessa técnica comparativa com um constructo ideal, um standard tomado como normal. O que permite a análise do pathos, justamente do sofrimento, em termos da singularidade que, nessa estrutura infantil se perfaz, e que permite ou não a um sujeito ser partícipe em certa, em alguma forma, do discurso de seu tempo. Ser ou não partícipe, porque não está pré-definido que não participar seja patológico. Sim, está definido que ele, esse sujeito, na lógica de sua constituição, no infantil de sua estrutura, disponha, tenha constituído os elementos, construído os elementos que lhe permitam ler na decisão acerca de seu desejo as conseqüências de sua escolha. Então tomar conta e se fazer ou não responsável por seu próprio sofrimento. É uma dimensão da patologia que a humanidade até ali nunca tinha conhecido e que denota o valor que para todos nós pode ter essa reviravolta tão comumente anunciada, a de que Freud foi o descobridor da sexualidade infantil. Ou seja, que os anjos tinham sexo.

As crianças se perguntam sobre a sua verdade, é isso mesmo?

As crianças se perguntam sobre a verdade, mas não sobre a sua; aos poucos vão se perguntando sobre a sua, talvez a latência seja o momento em que isso começa a acontecer com alguma força, porque justamente até esse momento, na medida em que o recalque não se estruturou completamente, a fronteira entre o sujeito e outro na criança ainda não se estabeleceu de um modo claro. É por isso que na Psicanálise de crianças há uma questão sempre polêmica: quando, quanto e até que ponto se deve ou não trabalhar com os pais, justamente porque o sujeito que ali fala nem sempre o faz em nome próprio, ou seja, é em nome do pai e, antes disso ou paralelamente, em nome da mãe, quando a língua materna prevalece ainda, que a criança fala. Vocês sabem que a verdade, o ocultamento e a mentira, como distinção, aparecem muito cedo, na vida de uma criança, uma criança recém falante aos 2 anos já está com essa questão colocada para ela. Vocês sabem com que descaramento as crianças muito pequenas nos surpreendem mentindo na nossa frente, quando lhes perguntamos quem comeu esse chocolate, e respondem, "a minha irmã", quando o fizeram na nossa frente. Quer dizer que a questão da verdade, do ocultamento e da mentira já está inserida na sua estrutura porque faz parte de sua inscrição na linguagem. A linguagem já contém essa diferença, essa interrogação. E na medida que se increvem nisso, isso aparece.

Um analisante neurótico adulto vem nos perguntar, por exemplo, "por favor me diga quais são meus verdadeiros sentimentos. A quem, definitivamente, desta meia dúzia, eu amo? Ou, qual foi o meu verdadeiro amor, de toda a minha história?" Cada um tem a série que foi capaz de constituir. No entanto, para uma criança formular uma pergunta nesses termos é necessário que os sintomas lhe sejam próprios. O seja, é necessário que ela tenha se visto obrigada a inventar um dispositivo psíquico com o qual lidar com aquilo que o discurso de seus pais não sustenta para ela. Uma criança, qualquer uma, é chamada a desempenhar um papel sexual muitíssimo antes de ter condições para produzir o ato ou a prática que testemunhe sobre esse lugar. É por isso que as crianças brincam de mamãe antes de saber como se faz para sê-lo. Ou para fazer uma mamãe, no caso dos meninos. E, nesse momento em que a criança responde ao imperativo do Outro para constituir-se nesse lugar sexual, a criança se vê empurrada a produzir seu sintoma. E é nesse momento que ela acede à condição de sujeito. É ali que ela pode começar a se perguntar acerca de como a verdade afeta a ela. E é por isso que, ao redor, por exemplo, dos 4 ou 5 anos em geral, as crianças apresentam um sintoma que é sintoma de infância: brincar, desenhar, mentir. Todo pai e toda mãe mais ou menos sensatos toleram a mentira porque não a consideram uma falta moral, com o mesmo estatuto que ela teria na vida adulta. Consideram, sem sabê-lo, que se trata de um sintoma necessário, ou seja, um momento de constaição de um artifício com o qual fazer borda no imperativo do Outro, ou seja, defender-se dessa avassaladora posição em que outro impõe o que deve e não deve ser dito. E de como a criança deve ou não deve usufruir de quase tudo. Então, é nesse viés que a interrogação da criança sobre como ela é afetada pela verdade, ou pelo ocultamento ou pela mentira, começa se tornar possível. Por isso, na análise de crianças nos encontramos com o fato de que a posição do analista é muito mais típica a partir da latência do que antes dela. Quando digo mais típica, quero dizer mais de acordo com o que tradicionalmente tem sido formulado a respeito da posição do analista. Pelo fato de a Psicanálise ter nascido como uma prática com adultos histéricos, que são então capazes de se formularem essa pergunta, o analista ocupa com maior comodidade esse típico lugar na transferência e na demanda do paciente precisamente a partir da latência. Não que seja totalmente cômodo ficar ali. A latência é um período sobre o qual a imensa maioria dos analistas de crianças coincide ao dizer que se trata de um momento em que a presença dos pais na análise é muito inconveniente, às vezes é inevitável, mas nada conveniente. Contrariamente ao que acontece durante esse período, ou a partir desse período de latência, a presença dos pais se torna quase necessária e inevitável na época da pré-latência, ou na época do modo agudo de desdobramento do conflito edípico e nas constituições primordiais do sujeito. Ao menos nas entrevistas preliminares, isto é certo, e quando se trata de uma criança muito pequena, quase sempre. Porque esse sujeito que está falando ali é um sujeito complexo composto pelo dizer dos pais e pela possibilidade de expressão que, ainda que não verbal, entra no campo linguístico pelo lado da criança.

Em que campo se situa o sintoma, no do gozo ou no do desejo? Você parece dizer que cada sintoma tem uma nova forma de saber, o que me faz pensar que já não se trata mais do sintoma, já nos afastamos dele. Gostaria então de saber em que campo o sintoma em si, não a reflexão que se faz sobre ele, está?

Por mais que não seja cômodo, nos dois. Lacan diz, em uma parte de sua obra - e eu o cito porque me parece importante e verdadeiro, não pelo fato de ser Lacan quem o diz mas porque me parece ter a suficiente consistência -que o sintoma é o real; em outra parte de sua obra, ele diz que o sintoma é o imaginário e em outra parte de sua obra diz que o sintoma é o simbólico. Então, definitivamente, o que é? Teremos que esperar até o seminário do Sinthome,(o número 23) para que ele nos esclareça que não há sintoma sem esses três registros. E que o sintoma nem sempre se constitui na mesma posição de enodamento ou de amarração desses três registros. Por exemplo, no seminário sobre James Joyce, um caso que ele usa privilegiadamente como exemplo e paradigma de análise par o sintoma, ele diz que Joyce não é psicótico, em outro lugar diz que Joyce não é perverso e em outro lugar diz que Joyce não é neurótico. Então quem é Joyce? Ma se lermos com atenção o seminário, poderemos responder a essa pergunta: Joyce é Joyce. Ou seja, é alguém que se viu na necessidade de produzir seu próprio nome. O que implica numa particular posição de amarração entre os três registros, que se mantém em função desse sintoma. Esse sintoma, no qual seu nome se sustenta, é a produção de uma série de neologismos que lhe permitem suprir o que a figura de seu pai não lhe permitiu montar no campo da função paterna. Tentando ser mais claro ainda na resposta à sua questão, podemos considerar o seguinte: o fato de o gozo ser recalcado no sintoma não quer dizer que ele seja extinto. Justamente sua posição de recalcado denota que ele, na estrutura do sintoma, está aí. É isto que permite a Lacan dizer que o sintoma é o real. Mas, a operação de recalque requer um estilete, um buril, uma ferramenta de corte e marca que permita circunscrever e recalcar este gozo, e esse suporte é a ordem do simbólico, o significante no seu valor simbólico. Ou seja, o significante na sua capacidade -nem sempre exercitada - de representar a ordem da alteridade, uma ordem outra que não a do gozo. O que fazer para suportar as consequências de tal renúncia que a construção do sintoma exige, quais sejam, o afastamento das representações diretas do objeto de gozo, e recalcar então a voz cujo sussurro me faz gozar, ou do cocô, ou do olho que precisaria estar preso a meu olhar e não olhar mais nada senão meu olhar para permitir meu gozo? Para suportar o sofrimento que esta recusa implica, este corte, é necessário que eu recubra, venha recobrir o descarnado do vazio, da ferida que ali se abre, com alguma imagem aconchegante. E vocês sabem o quanto, no sintoma, o imaginário presta seus bons serviços; quando, por exemplo, o neurótico obsessivo se impõe como condição ou se lhe impõe a partir de seu inconsciente a condição de, antes de dormir, dizer ordenadamente, por ordem alfabética - estou me referindo a caso clínico - a lista completa dos 43 membros de sua família. E se ele erra, por ordem alfabética estrita, porque Alice não poderia de modo algum ir antes de Alberto, não pela primeira letra mas pela quarta - imaginem o trabalho que isto dá - ele tem que começar tudo de novo e já o assalta a angústia de que no lugar onde se quebrou a ordem, há um personagem que entrou no lugar da falha, cujo nome entrou no lugar da falha, que vai sofrer uma grande desgraça da qual ele é o produtor, e é claro também o culpado, por ter errado. Imaginem quantas horas por noite ele consegue dormir. Mas, quando ele finalmente consegue nomear os 43 personagens, na ordem correspondente, imaginem também o alívio que ele obtém desse imaginário. Por isso digo, o imaginário presta seus bons serviços. Nem falar do cavalo do pequeno Hans, ou do bonde da mulher homossexual cujo caso foi relatado por Freud en "Um caso de homossexualidade feminina", que em última instância é uma formação secundária a uma histeria. Os enunciados em Psicanálise jamais podem responder à univocidade lógica que a positivação do objeto no discurso da ciência lhe exige, porque consiste numa prática social totalmente divergente daquela, e parte do reconhecimento da impossibilidade de uma verdade unívoca, como acabei de enunciar. Portanto, torna-se legítima e, além do mais, necessária a contradição. Desconfiem do analista que é capaz de pronunciar em enunciados unívocos, ou seja, de alguém que tenha horror da contradição. Sua prática e seu desdobramento é completamente necessário ao exercício da verdade. Como por outro lado, várias escolas filosóficas o assinalaram.

Você falou da mentira como forma de fazer borda ao imperativo do Outro, na criança bem pequena. Poderemos pensá-la como uma forma de articulá-la com esse fantasma fundamental que está se formando, que está se fixando, se estabelecendo? Seria uma forma diante da falta de estabelecimento deste fantasma, a mentira viria a frear esse grande Outro?

Vou me permitir referir-me a um artigo que eu escrevi, está publicado no nº 8 de Amarelinhas, uma publicação de Curitiba, que se chama "O desejo paterno", no qual justamente assinalo que a constituição do fantasma fundamental não provém só da mãe nem só do pai, nem só dos pais, ou seja, não é um fantasma hereditário, mas é uma articulação entre os restos de linguagem, ou seja os restos da tentativa de formular, de dizer, de enunciar restos fracassados e da tentativa de enunciar o desejo de cada um que está ali implicado. E também, se a criança for enunciada pelos pais como um sujeito suposto de desejo, ela em seguida é lançada à posição de um sujeito desejante de cujo fracasso de enunciação o fantasma fundamental se perfaz também. Ou seja, que no fantasma fundamental está plasmado não somente o fracasso da relação sexual dos pais, ou seja, não há relação sexual, diz Lacan. Pelo fracasso de nos garantir a felicidade, não é que não haja coito, evidentemente, coito há, não se alarmem, e sim que não há no sexual relação que se sustente. Então nesse fracasso, alicerça-se também o desejo que os pais transmitem para a criança de ela vir a ser a exceção a esse fracasso. E é ali que se constitui o fantasma fundamental, nessa conjugação entre o fracasso da relação sexual e a esperança de que não fracasse. Por isso somos conduzidos, do lugar de nosso fantasma fundamental, a certas manobras na nossa vida amorosa e sexual, na esperança de não fracassarmos. Eis ali o cerne do infantil do sujeito.

 

NOTAS

1 POSTMAN, Neil (1982). The disappearance of childhood. New York, Delacorte Press.
2 GROSRICHARD, Alain ( 1981). El Santo Pedagogo, (sobre "Les regies de la bienséance et de la civilité chrétienne", pequeno livro de autoria de Juan Bautista de La Salle, aparecido em 1703). Ornicar? Barcelona, Petrel, n. 2. Antecedentes dessa obra são "De civilitate morum puerilium" de Erasmo (1530), "Civile honnesteté pour les enfants" de Mathurin Cordier (s.XVII), "Galateo" de J. de La Case, preferido pelos jesuítas e introduzido em 1617 nos seus colégios sob o título de "Bienséance de la Conversation entre les hommes". Mas a partir de La Salle seu livrinho assume o comando de modo indiscutível: já não mais se fala em honestidade, bons modos e conversação, agora se fala em cálculos e técnicas.
3 PERROT, Michelle Ü99D História da vida Privada. São Paulo, Companhia das Letras, v.4.
4 JERUSALINSKY, Alfredo (1997). Cuántos terapeutas para cada niño?. Escritos de la Infancia Buenos Aires, FEPI, n.8.
5 Não há nenhum sujeito real da sociedade que reúna todas as condições e características que a média de qualquer teste pressupõe; todos os sujeitos são desviados.
6 Naturalmente, referimo-nos ao Banquete de Platão, onde se revela pela boca de Sócrates o verdadeiro destino do amor da Alcibíades, e, por essa via se denuncia o verdadeiro motivo da excução de Sócrates: ter interpretado, e desvendado, a relação entre o amor e o desejo.