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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.3 no.5 São Paulo  1998

 

DOSSIÊ

 

Lugar de vida, 10 anos depois

 

Lugar de vida: ten years

 

 

M. Cristina M. KupferI; Lina Galletti Martins de OliveiraII; Marize Lucila GuglielmettiIII

IDocente do IPUSP, Diretora Geral da Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida. Bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq
IIDiretora clínica da Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida. Mestranda em Psicologia no IPUSP
IIIDiretora do atendimento do LV e do Grupo do Jogo

 

 


RESUMO

Nesta edição em que se comemoram os dez anos de funcionamento do Lugar de Vida - instituição para o tratamento de crianças psicóticas e autistas - , pretende-se fazer uma reflexão sobre os eixos teóricos em torno dos quais se organiza o trabalho clínico-educacional daquela instituição. Aborda-se a dimensão institucional como ferramenta terapêutica do tratamento, bem como o âmbito da Educação Terapêutica ali praticada.

Educação Terapêutica - Instituições - psicose e autismo


ABSTRACT

In this issue, we commemorate 10 years in the life of 'Lugar de Vida' - a treatment institution for the autistic or pychotic child. We discuss the theoretical axes that organize the work there, the institutional guides for it and the Therapeutic Education as it is practiced in that institution.

Therapeutic Education - Institutions - Psychosis and Autism


 

 

A moça da ótica para crianças especiais conhece o Lugar de Vida. E diz que lá se fazem milagres. Ao ver que uma das crianças que freqüenta a ótica mudou muito depois de alguns anos de tratamento, e que aquela outra vai no mesmo caminho, a moça perguntou a uma das mães: qual será a receita do pessoal da USP?

Saber dessa conversa nos causa espanto. Sabemos que, em seus dez anos de existência, o Lugar de Vida angariou respeito e credibilidade, sobretudo pela seriedade com que equipe e coordenação engajaram-se nessa empreitada de construir, para as crianças com distúrbios graves do desenvolvimento, um lugar para viver. Mas milagres, não fazemos. É bom que uma pessoa de fora dos meios psi diga que trabalhamos bem, mas sabemos muito bem dos limites de nossa prática.

A comemoração de dez anos de existência é então um bom momento para perguntar: se milagres não sabemos fazer, então o que sabemos fazer? E, mais ainda, como é que fazemos isso que sabemos fazer?

No início, o grupo fundador reuniu-se em torno da pergunta pelo vaso quebrado, aquele que permitia a Freud a dedução da estrutura do cristal, já que as fraturas se dão justamente nos pontos de fragilidade, nos pontos em que seus elementos se conectam, nos laços que são os primeiros a se desfazer. Mas nosso vaso era peculiar: ele se quebrara precocemente, ou já se constituíra quebrado, sem laços. Um vaso de cristal quebrado desde sempre? Nossa pergunta era sobre a clínica psicanalítica com crianças "com problemas emocionais graves", e o desejo, o de saber.

Nosso desejo não era, como o dos profissionais de Bonneuil, o de nos pôr continuamente em questão (Mannoni, 1986). Ao contrário, a busca imaginária é a da instituição acabada, ideal - e devemos confessá-lo, já que ela nos move. Afinal de contas, uma instituição se organiza em torno de um ponto de ignorância, de um buraco no real, e constrói ali uma borda, um discurso capaz de lhe dar consistência e de promover a sua contenção. Isso não significa, porém, uma fixidez, uma armação inamovível. Se não nos pomos continuamente em questão, isso não nos impede, paradoxalmente, de mudar continuamente, a ponto de, no anúncio de mais uma revolução na forma de atendimento, termos ouvido de um dos profissionais o seguinte comentário: ainda bem que neste ano, como em todos os anteriores, teremos mudanças em nosso funcionamento, porque senão este não seria mais o Lugar de Vida!

O desejo não era o de se colocar em questão, era o de buscar o saber. Mesmo antes de levarmos nosso trabalho para a universidade - iniciado havia dois anos - , o discurso do mestre imperava, na medida em que, sendo "o mais comum, o discurso por excelência", esse é um dicurso que busca um saber sabido, fundamentado na tese de que há um saber sobre tudo (Juranville, 1987). Precisávamos saber, sobre o quê? Naturalmente, sobre o desejo, já que, como diz Piera Aulagnier (1967), todo desejo de saber é desejo de saber sobre o desejo. E justamente, um psicótico não deseja, isso soubemos logo no início. Assim, os que desejam trabalhar com psicóticos funcionam de um modo peculiar: desejam saber como fazer o outro, que não deseja, desejar.

Mas quando o que está em jogo é um desejo de saber, é preciso escolher entre um desses pólos: para Lacan (1985), saber e desejo são antinômicos, já que sobre o desejo inconsciente nada se pode saber. Haverá, portanto, sempre uma oscilação entre saber e desejo. Pender para o lado do saber é instituir o discurso do mestre; supor que o saber é o dos grandes mestres, e que nossas crianças seriam objeto de estudo, é fazer predominar o discurso universitário; pender para o lado do saber sobre o desejo (sempre insatisfeito) é instituir o discurso da histérica (Juranville, 1987). Qual seria, então, o discurso predominante no Lugar de Vida? Ou seja, isto que fazemos, como o fazemos? Em que modalidade de discurso desdobramos nosso fazer?

O Lugar de Vida parecia estar instalado, desde o princípio, na vertente da busca do saber. Tanto que um de seus primeiros trabalhos, ainda no tempo em que não nos havíamos instalado no interior da universidade, foi o de propor uma pesquisa ao CNPq, de quem ouvimos um fragoroso "não!". Não importava, a vocação acadêmica já estava instalada.

A instalação do discurso do mestre produziu demanda de saber mais e mais. No rastro do primeiro curso aberto no Lugar de Vida para profissionais que trabalham com crianças com "problemas emocionais graves", vieram muitos outros. Em 1999, serão dez. Uma proliferação infindável dos saberes. Que não produzem milagre, apenas mais demanda de saber.

Pesquisar em meio à clínica... Atendendo ao mandato social da universidade, bem como ao nosso desejo, as pesquisas passaram a dar muito do tom do Lugar de Vida. Foram necessárias muitas discussões junto à equipe para que se desfizesse uma certa "fantasmatização" da pesquisa, fruto de uma confusão entre pesquisa e pesquisa experimental. Percebeu-se naquela ocasião que pesquisar é antes de mais nada escrever sobre a clínica, como fazia Freud todos os dias depois de atender seus pacientes, e não fazer das crianças objeto de uma Ciência, de um saber em que está excluído o sujeito.

A busca de saber produz um fazer. Um fazer que é, obviamente, uma produção discursiva. Uma clínica, palavra que significa "ao lado do leito". Estivemos ao lado de muitas crianças, já que, como todos sabemos, "a clínica psicanalítica é o berço do conhecimento analítico". E este fazer transformou nosso saber, a exemplo do que ocorreu com nossa instituição-mãe, o CPPL -Centro de Pesquisas em Psicanálise e Linguagem, aquela com a qual nos identificamos para começar nosso trabalho (Rocha, 1997).

De início, tratava-se de uma clínica orientada pela Psicanálise clássica. A clínica nos apontou, porém, logo de início, que esse fazer precisava ampliar-se. Nessa direção, o primeiro passo foi teorizar e introduzir o institucional como ferramenta terapêutica e de trabalho; o segundo, o de introduzir o educacional; o terceiro, o de entender toda a montagem, em sua dimensão clínica, institucional e educacional, como uma só ferramenta, a que chamamos Educação Terapêutica.

 

O CAMPO INSTITUCIONAL: DA ALTERNÂNCIA AO "GRUPO DOS GRANDES".

Introduzir, ler e manejar a dimensão institucional no tratamento mudou a clínica.

A montagem institucional, entendida como ferramenta terapêutica, valeu-se, desde o início, das diferentes linguagens para instituir artificialmente a diferença, a alternância, com suporte nos escritos de Mannoni, primeira na Psicanálise lacaniana a introduzir a idéia de que a instituição faz parte da clínica (Mannoni, 1985, 1986). O que se visava era ao surgimento do sujeito a partir daí. Apostamos em seu surgimento como efeito do funcionamento da máquina da linguagem, operada pelo Outro institucional. Apostamos na possibilidade de a criança que habita mal a linguagem - ou melhor, que a habita de modo idiossincrático, não participante do pacto simbólico, não participante dos códigos da cultura, e elege modos de gozo não socializados - aprender um pouco mais sobre os modos instituídos de gozo, atravessando, mergulhando cotidianamente em uma instituição que está estruturada como uma linguagem.

O que passamos a praticar no interior dessa instituição, através de seus grupos, de suas atividades, de seus atendimentos os mais variados, foi então a alternância, uma tentativa de ampliar o dispositivo de tratamento. Passamos a fornecer conteúdos ideativos, a contar estórias, a fazer música, apostando no valor da imaginação como instrumento que engendra a inscrição, ou que fornece as necessárias identificações para produzir as extensões das inscrições primordiais1. Ensinamos a desenhar, a escrever, promovemos circulação social em passeios, em aniversários, em festas juninas.

A dimensão institucional revelou-se porém, mais fortemente, quando nos demos conta de que, ao lado de seu valor de um instituído que produz efeitos, verificamos seu valor instituinte.

Vejamos um exemplo. O "grupo dos grandes" foi instituído no Lugar de Vida no primeiro semestre de 1997 como tentativa de dar contorno a uma nova demanda de atendimento que surgia: prosseguir o tratamento de algumas crianças que, tendo crescido, adentravam a puberdade. A montagem institucional com alternâncias entre várias atividades e diferentes profissionais, bem como a ênfase no semblante escolar pareciam não ser mais adequados. Se antes, frente às descontinuidades presentes na alternância, as crianças podiam, de modo ortopédico, ampliar as relações com o outro, agora, muito ao contrário, a oferta desta mesma descontinuidade vinha produzindo efeitos disruptivos. No entanto, a leitura que fizemos de tais disrupções foi a de crescimento, a de que a entrada na puberdade e a emergência de uma nova dimensão para o gozo pediam um outro contorno. Assim, as freqüentes manifestações de agressividade e a emergência da sexualidade impunham-nos que marcássemos, na própria proposta de atendimento institucional, uma diferença em relação ao tratamento das crianças.

Somente no "après-coup" pudemos perceber desdobramentos importantes, que de certa forma nos confirmaram que a nova proposta de atendimento se caracterizara como uma intervenção terapêutica. Fundamentalmente, vimos que a criação desse grupo de trabalho instituíra a adolescência para essas crianças. Ao introduzirmos, no discurso institucional, os significantes "grupo dos grandes", "sexualidade", "adolescência", acenamos com uma antecipação de adolescência, ou seja, acenamos com uma suposição. Foi possível perceber, através dos efeitos produzidos nos pais, nos próprios adolescentes e na equipe, que esta suposição de algo que ainda não estava lá funcionou como discurso social, que nomeia, que contém e dá lugar à puberdade. Teve, portanto, valor instituinte2.

Uma outra dimensão da leitura institucional como ferramenta terapêutica foi adotada no Lugar de Vida a partir da experiência do CEREP, da França (Penot, 1992). Segundo aquela instituição, a leitura dos movimentos transferenciais produzidos pelos pacientes sobre a equipe, lidos durante uma reunião clínica, produziam mudanças de posição em seus membros, de tal forma que o trabalho realizado com os pacientes no dia seguinte já podia ser diferente. Para nós, ficou instituída a leitura dos pontos de cruzamento discursivo que se davam no encontro do discurso dos pais, da equipe e das crianças. Havia nós, pontos de encontro e de repetição que enodavam esses três níveis discursivos; localizá-los fazia o desatamento, e o trabalho, que ficara ali detido, podia prosseguir.

Incluir a leitura institucional é ainda acompanhar os efeitos imaginários que se dão sobre uma equipe envolvida com a psicose.

A análise institucional como instrumento de facilitação do trabalho não é nada nova. No Lugar de Vida, também discutimos nossos problemas em nossas reuniões clínicas. Ali buscamos localizar os fenômenos imaginários que operam em todo grupo como resistência ao trabalho, ou seja, como defesa contra a angústia que esse trabalho suscita em cada um. Tais manifestações não são, porém, trazidas à luz ou interpretadas, como se faz classicamente nas análises institucionais, evitando a exposição do singular e do pessoal. Ao contrário, o que fazemos é um apelo ao terceiro, um chamado ao que nos norteia: estamos lá por causa de um trabalho comum, e é em nome dele que gritamos nossa palavra de ordem: ao trabalho, pessoal!

Stevens (1996) aponta ainda uma outra forma de manter a referência à Psicanálise no âmbito do trabalho institucional: trata-se da elaboração teórica da clínica psicanalítica na instituição e da construção do caso clínico. A leitura psicanalítica dos efeitos produzidos com as intervenções é de fundamental importância: possibilita aos profissionais, através da construção do caso clínico, o afastamento do campo do imaginário ou da dimensão intuitiva no momento de sua transmissão. Esta leitura possiblita ainda uma reorientação da direção que se poderá imprimir ao caso. O saber psicanalítico contribui, nessa medida, para que se afastem os riscos de a instituição permanecer na repetição que manteria, estruturalmente, a posição das crianças e de seus pais.

 

A INTRODUÇÃO DO EDUCACIONAL

"Está bem que vocês tratem de nosso filho, mas gostaríamos muito de encontrar para ele uma escolinha". Os primeiros pais que chegaram ao Lugar de Vida proferiram essa demanda, e nós a escutamos. Ou seja, o encontro da Psicanálise com a Educação foi, no Lugar de Vida, ditado pela clínica, pelas crianças e seus pais, que chegaram até nós precisando de uma ação urgente e conjunta. Uma criança com transtornos graves não pode esperar que um longo tratamento psicanalítico devolva a ela sua inteligência em idade avançada demais para fazê-la recuperar a escolarização, em um tempo no qual suas chances de fazer trabalhar o laço social parcialmente recuperado já estão bem diminuídas. Crianças com transtornos graves, mais do que outras, precisam de educadores e psicanalistas trabalhando juntos. Sabíamos, porém, das inúmeras e intransponíveis diferenças entre psicanalistas e educadores3.

A História da Psicanálise está carregada de tentativas de promover um encontro harmonioso entre Psicanálise e Educação, mas a herança que nos foi legada vem atestando até hoje a impossibilidade desses encontros. Todos falham, e este é um fato de estrutura. Em lugar de tomar a Psicanálise para mesciá-la com a Educação, ou enfiá-la, como prática de análises individuais, numa escola, começamos então a pensar em tomar esse problema de um ângulo diferente. Foi um encontro que precisou ocorrer, diante de uma demanda que se impôs para os que tratam de crianças com transtornos graves.

Ao lado então do tratamento, surgiu a escola no Lugar de Vida, para desenvolver ou ao menos conservar as ilhas de inteligência que as crianças já possuíam. Mas a escola, pudemos observar, oferece mais do que a chance de aprender. Como alternativa ao Outro desregrado, a escola, entendida como discurso social, oferece à criança uma ordenação, as leis que regem as relações entre os humanos, que regem o simbólico, para dela a criança tomar o que puder. Mesmo decadente, falida na sua capacidade de sustentar uma tradição de ensino, a escola é uma instituição poderosa quando lhe pedem que assine uma certidão de pertinência: quem está na escola pode receber o carimbo de "criança".

Mas, com o tempo, verificou-se que a instituição, como um todo, podia ser pensada como um instrumento de tratamento cujo eixo principal seria a Educação Terapêutica, entendida agora como uma prática que apontava para um só norte: o sujeito. Passou a ser concebida como uma prática a ser realizada por todos - educadores, psicanalistas, coordenadores de ateliês, médicos, fonos - em uma ação articulada; uma articulação de discursos, que os profissionais passaram a realizar na prática.

A partir deste momento, definiu-se então a Educação Terapêutica como um conjunto de práticas de tratamento que visam ao sujeito, de modo a que ocorra quer a retomada do desenvolvimento global da criança, quer a retomada da estruturação psíquica interrompida, quer a construção de um sujeito, quer a sustentação do mínimo de sujeito que uma criança possa ter construído.

Educação Terapêutica é, portanto, um tratamento psicanalítico ampliado, que inclui práticas sociais e educativas não consideradas pelo psicanalista. Em uma palavra: Psicanálise em extensão. Não se trata justamemente da Psicanálise estrita, ou em intensão, porque não seguimos os princípios da cura analítica clássica (Lacan, 1977).

Ao falarmos de tratamento psicanalítico ampliado, entenda-se aqui o termo como um alargamento do campo do tratamento psicanalítico clássico e não como a extensão todo-poderosa da Psicanálise para outros campos de saber. Ao contrário. Todo cuidado de impedir que a Educação Terapêutica se coloque como "toda" é pouco. "Nas palavras de Lefort, uma instituição que funciona como mãe de psicótico pensa poder tudo, supervisionar tudo, controlar tudo etc.(...) Uma instituição que vai sempre em direção à totalidade, uma instituição psiquiátrica que se ocupa da saúde, da saúde mental, do bem de seu paciente, de sua psicoterapia" - "recria essa extrema dependência, com a qual não pode haver ruptura, e não se consegue mais sair deste lugar" (Vanier, 1997, p. 44).

Quem achar que estamos nos distanciando muito da Psicanálise, deverá ler conosco esse trecho do prefácio que Freud escreveu para o livro de Aichhorn, Juventude Abandonada. "O tratamento psicanalítico repousa sobre condições precisas que podem ser resumidas pela expressão 'situação analítica'; ele exige a formação de estruturas psicológicas determinadas, uma atitude particular em relação ao analista. Onde elas não existem - na criança, no adolescente associal, de modo geral também no adolescente dominado por suas pulsões - é preciso recorrer a outros meios que não a análise, de modo a encontrar o mesmo objetivo" (Freud, 1973, p. 3216).

Jacquy Chemouni (1988) observa que, nesse prefácio ao livro de Aichhorn, Freud estabelece uma distinção que escapou a muitos dos que trataram das relações entre Psicanálise e Educação: aquela entre educação e reeducação ou educação especial. Assim, se a educação e a Psicanálise são antinômicas, já não o são tanto quando se trata de educação especial. Mais ainda, Freud sugere que se criem outros meios para tratar dessas crianças e adolescentes, meios esses que teriam o mesmo objetivo de uma análise, mas que seriam de natureza educativa ou reeducativa. Podemos ver, hoje, que a clínica nos empurrou a esse ponto em que Freud se situava quando escreveu aquele prefácio em 1925, e que a formulação de uma Educação Terapêutica busca responder ao desafio por ele colocado.

 

O DESAFIO DE ARTICULAR EDUCAÇÃO ESPECIAL, INSTITUIÇÃO E PSICANÁLISE

O desafio e o paradoxo é, hoje, o de articular, na instituição, o singular e o universal. Não podemos pender para o singular, em uma prática psicanalítica equivocada - quem pensa que a clínica do singular significa ouvir o sujeito em uma infinita auto-referência esquece-se de que o sujeito é por definição social, já que quem fala nele é o Outro -, nem pender para o universal da regra que é igual para todos. Educação Terapêutica é refazer o elo entre, de um lado, o sujeito auto-referido, delirante, e, de outro, o discurso social - ou seja, a instituição tomada em sua vertente simbólica.

Voltando agora à pergunta do começo - o que sabemos fazer, e em que modalidade discursiva -, deve-se dizer, em primeiro lugar, que essa pergunta aponta para nossa ética, já que o fazer orientado por uma teoria que lhe dá os fundamentos constitui uma ética.

Como, porém, então, manter a referência à Psicanálise, se nossa filiação, nossa origem, se articula fortemente com o discurso do mestre, como já dissemos no início? Como manter a referência à Psicanálise se o discurso do mestre é seu avesso?

Para responder a essa questão, pode-se pensar em duas respostas. A primeira: estamos, sim, no discurso do mestre, porque a instituição está submetida às leis e às regras. Estamos, sim, marcados pelo discurso universitário; em muitos outros momentos institucionais, ocorre a emergência dos demais discursos. Ou seja, há giros. E se eles existem, isso não se deveria justamente ao fato de que estamos no campo da Psicanálise, o que permite que haja discurso do analista, responsável pela produção de tais giros?

A segunda resposta: pode-se pensar, em consonância com os profissionais do Courtil4, que não é preciso destituir e nem mesmo eliminar o discurso do mestre, visto que ele é constitutivo de toda instituição. Trata-se, fundamentalmente, de não encarnar um mestre idealizado, de não atuar com a resposta a um ideal, mas com aquilo que pode ser a aparência de um mestre. Trata-se da referência necessária a uma ocupação do lugar do mestre separado da encarnação da mestria. Operamos, necessariamente, a partir de um lugar de mestre porque a ele somos convocados na instituição, mas sabemos que esse lugar de mestre não representa o ideal terapêutico: esse mestre não sabe tudo, ele é incompleto e castrado.

Seynhaeve (1994), do Courtil, trabalha com a idéia de que o mestre na instituição deve estar sempre reduzido a uma aparência, e indica estar a psicanálise não com o mestre, mas ao lado dele. Dessa forma, ele pensa ser possível promover o particular da psicanálise ao lado do Ideal - universalizante - na instituição. Na instituição, caberão então psicanalistas, educadores, "atelielistas" na qualidade de "intervidores"5, todos balizados por essa posição de mestria nâo-toda, e tendo como norte o ato analítico (Vanderveken, 1993).

A saída, em resumo, só poderá ser então a de buscarmos uma identificação com um mestre que não é o detentor do saber absoluto, nem mestre da verdade. Teremos de buscar a identificação com um mestre não-todo, atravessado pela barra, pela renúncia ao Ideal, pelo saber de que seu saber é nâo-sabido porque se funda no inconsciente e porque não sabe sobre o desejo.

Desde o início, fomos mestres não-barrados, porque sempre estivemos atravessados pela Psicanálise. Por isso, embora não quiséssemos nos pôr continuamente em questão, sempre o fizemos, pela identificação com Bonneuil, pelo atravessamento da Psicanálise, o que provocou nossa mudança contínua e permanente.

Assim, é o "não saber fazer" - que não deve ser confundido com ignorância - que é mais útil para nossas criancas. Que as deixemos em paz, livrando-as de nosso saber sobre o que lhes acomete e conseqüentemente de nossa fúria interpretativa. Que as deixemos produzir seus sintomas se isso é um modo de "se dizerem" - este é o nosso saber não sabido de hoje. Quem sabe um dia a moça da ótica poderá dizer: o pessoal da USP é ótimo: eles não sabem o que fazem!

 

NOTAS

1 Conforme as observações de Alfredo Jerusalinsky em seminário inédito proferido no Instituto de Psicologia da USP em junho de 1998.

2 Esta discussão está desenvolvida em MARTINS DE OLIVEIRA, UNA GALLETI e JARDIM, GISLENE DO CARMO. As crianças cresceram... e agora?. In: RODRIGUES, ANTONIO RICARDO (ORG.) ... São Paulo, Escuta (no prelo).

3 Tema desenvolvido em KUPFER, M.C.(1998) Educação terapêutica: mais uma tentativa de encontro entre a psicanálise e a educação. Associação Psicanalítica em Revista. Curitiba, Associação Psicanalítica de Curitiba, ano 1, n.2.

4 Le Courtil é uma instituição belga que trata de crianças psicóticas e autistas.

5 "intervenant", no original, cuja tradução correta, "interventor", está sendo aqui recusada por causa de seu sentido judicial.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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