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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.3 no.5 São Paulo  1998

 

DOSSIÊ

 

O surgimento do outro e a escrita de pedro

 

The construction of the other and the writing of pedro

 

 

Daniela HanffI; Renata PetriII

IPsicanalista, membro da equipe do Lugar de Vida
IIPsicanalista, membro da equipe do Lugar de Vida, bolsista da Fapesp no mestrado em Psicologia no IPUSP

 

 


RESUMO

Através do relato de um caso, pretendemos iliustrar como uma criança que chegou ao "Lugar de Vida" com uma parada no investimento educativo devido à fantasmática parental em jogo, pôde sofrer os efeitos de um tratamento que se estrutura a partir do encontro entre a Psicanálise e a Educação, que temos chamado de Educação Terapêutica. Para isso abordaremos questões como o diagnóstico diferencial, os efeitos do tratamento nos pais e o particular processo de subjetivação dessa criança.

Lugar de Vida, psicose, Educação Terapêutica.


ABSTRACT

Throughout a case report we intend to ilustrate how a child that is being streatted at Lugar de Vida and was not having proper educational assistance due to parent's dinamic, can suffer from the effects of a treatment that is structured somewhere in between Psychoanalysis and Education and that is being called "Educação Terapêutica".
Our approach for that matter will be diferential dygnosis, the effects of treatment on parents and the specific subjectivity process of this child.

Lugar de Vida, psicosis, Terapeutic Education


 

 

"Num círculo, o centro é naturalmente imóvel; mas, se a circunferência também o fosse, não seria senão um centro imenso."
Plotino, Apud Guimarães Rosa, 1984

 

Nesta edição comemorativa, gostaríamos de fazer uma tentativa de ilustrar algumas questões que têm sido formuladas no "Lugar de Vida" através do relato de um caso. Escolhemos para isto nos debruçar sobre a trajetória de Pedro, uma criança que tem feito avanços importantes em seu tratamento, o que, para todos nós, é um reconhecimento de nosso trabalho, uma vez que sabemos que essa clínica nos impõe tantos impasses e dificuldades.

Pretendemos nesse texto mostrar como é possível e necessário fazer uma retomada da empreitada educativa no âmbito do tratamento, em casos nos quais a educação falhou devido a uma certa posição que uma criança ocupa no fantasma parental.

Sabemos que para uma criança existir no campo do Outro, ou seja, para habitar o discurso social, é necessário um ato realizado pelo Outro primordial sustentado nesse primeiro momento pela mãe. Esse ato, da ordem de uma inscrição, é, nas palavras de Jerusalinsky(1995), "aquilo que insere no sujeito a marca da sua relação com o Outro, insere a presença do Outro", inaugurando então a subjetividade. Entendemos que este ato é da ordem da educação, tomada aqui de maneira ampla, como uma transmissão de uma filiação simbólica. Ainda segundo o autor, educar é "transmitir a demanda social além do desejo", mas graças a este, em outras palavras, toda mãe deseja completar-se com seu filho, deseja tudo para ele, mas rapidamente coloca-se uma impossibilidade dada pelo fato de que os próprios pais estão capturados pela demanda social.

Se as práticas educativas são práticas filiatórias, são a transmissão mesma de uma filiação simbólica, então são os pais que iniciam esta tarefa desde antes do próprio nascimento da criança, já que antes mesmo de nascer ela já tem um nome, já se imagina como será, que profissão vai seguir, etc, desde aí a educação já opera. E na escola, onde se transmite conhecimentos revestidos de valor fálico na nossa cultura, a criança, autorizada pelos pais, continua seu percurso educativo que se iniciou antes dela mesma.

No caso das crianças psicóticas, o que observamos é que estas ficam alienadas no desejo do Outro, comprometendo sua inscrição na linguagem e sua separação deste Outro primordial, que as toma como objeto. Sendo assim, a educação fracassa, a inscrição não opera como um primeiro significante que surge a partir da cadeia que o sucede, e o sujeito não pode advir. Vamos relatar um caso que, segundo nossa hipótese, chegou para tratamento com uma inscrição, mas sem o apagamento necessário para ter valor significante. A partir do tratamento, o apagamento começa a acontecer, pois todo o trabalho é montado sobre a alternância entre ausência e presença, promovendo o intervalo necessário e possibilitando o início de um reconhecimento, já que um primeiro significante designa o sujeito mas não o representa.

Esta leitura está baseada na formulação dos três tempos da constituição do significante feita por Hassoun (1997), a partir do Seminário de Lacan sobre a Identificação. Segundo este autor, para haver inscrição do significante, são necessários três momentos lógicos: o primeiro seria uma marca, um traço, uma escritura, que não pode ser lida isoladamente; o segundo tempo é o apagamento do primeiro; e o terceiro tempo é a interpretação do apagamento. Tendo ocorrido estes três tempos, teríamos um sujeito, que nada sabe sobre o primeiro tempo da inscrição. No caso da psicose, vê-se o traço, pois o apagamento não aconteceu.

Isto posto, servimo-nos da educação como um instrumento no tratamento destas crianças, ou mais ainda, como tem sido recentemente formalizado, chamamos este tratamento de Educação Terapêutica. A Educação Terapêutica, resultado de um encontro entre psicanálise e educação ditado pela clínica dos transtornos graves, segundo a definição de Cristina Kupfer (1998), "é um conjunto de práticas de tratamento que visam ao sujeito, de modo a que ocorra quer a retomada do desenvolvimento global da criança, quer a retomada da estruturação psíquica interrompida, quer a construção de um sujeito (por que não?), quer a sustentação de um mínimo de sujeito que a criança possa ter construído".

Neste trabalho, diferentemente da análise tradicional, o analista toma lugar de sujeito e, ao invés de uma descontruçâo, trabalha no sentido de uma instalação do simbólico. Ou seja, propomos um tratamento que, além de se afastar do que é entendido por uma análise, distancia-se também da educação formal que está comprometida com ideais a serem alcançados. Faz-se, então, uma oferta de significantes ao mesmo tempo em que, atravessados pela psicanálise, ofertamos também a falta, ocupando o lugar de Outro barrado. Desta forma visamos à constituição subjetiva, ou seja, propomos um tratamento que consiste na oferta de significantes presentes na cultura, com suas leis intrínsecas, para que o sujeito possa, ao se apropriar deles, dizer algo a respeito de seu desejo.

 

O CASO: A QUESTÃO DIAGNÓSTICA1

Pedro chegou para o tratamento no Lugar de Vida com 5 anos. A mãe trazia como queixa a agitação e a falta de concentração e como enigma uma deficiência auditiva, já que apesar dos exames apontarem para um diagnóstico de surdez profunda, percebia que em algumas situações Pedro parecia ouvir.

A mãe conta, entre outras situações, que ao conversar no portão com uma vizinha sobre a feira, Pedro pega a sacola que utilizava para este fim. Nas palavras da mãe: "Eu fico confusa, não sei dizer se ele é surdo mesmo ou não".

O pai, no entanto, localizava toda a problemática da criança na surdez, da qual ele não duvidava. Dizia que Pedro era "danado", mas que aprenderia a falar como outras crianças surdas são capazes. (Nessa época Pedro freqüentava uma escola especializada em crianças surdas).

A partir das primeiras entrevistas foi possível mapear o lugar desta criança no discurso dos pais. Existia até este momento uma forclusão de significantes que pudessem representar esta criança no discurso parental, a mãe enuncia que a única coisa que poderia supor pela falta de resposta da criança é que era surda, ou seja, se não respondia, só poderia lhe atribuir uma causa real.

É interessante lembrar que a hipótese de surdez estava sustentada numa possível rubeola que a mãe teve durante a gravidez (dados confusos e controversos) podendo trazer uma culpabilização insuportável de ser pensada pela mãe, tomando-se uma culpabilização no real e consequentemente provocando uma recusa. Dito de outro modo, podemos supor que esta culpabilização exista, e por não poder ser colocada em palavras, reforça a posição inicial da mãe em que coloca como causa única das dificuldades de seu filho a deficiência auditiva, na qual não se implica. Isso tudo nos leva a formular a hipótese de psicose, pois uma vez que os pais começam a suspeitar que há algo além da surdez, fica claro que não há forclusão do sujeito. Existe aí a suposição de um sujeito por parte dos pais, apesar de ser através de um único significante. Isso descartaria a hipótese de um autismo, uma vez que este se caracteriza por uma forclusão do sujeito2.

No entanto, é um caso que revelou grande plasticidade, principalmente a partir desta posição paradoxal da mãe que, ao mesmo tempo que traz a surdez como ponto central, coloca isso em questão, e que começa, então, rapidamente a supor outras tantas coisas, abrindo um campo favorável para a intervenção. Esta criança faz avanços importantes, hoje com um ano e meio de tratamento, aventamos a possibilidade de uma psicose ainda não decidida.

 

PEDRO E SEU PERCURSO NO TRATAMENTO: DO CONTORNO À LETRA

Nos primeiros tempos de tratamento, Pedro apresentava-se como uma criança sem limites, gritando e esperneando a cada "não" que lhe era dirigido, tentava bater nas outras crianças do grupo e colocava sistematicamente tudo o que lhe era oferecido na boca.

Esse. quadro modificou-se rapidamente. Pedro passou a se interessar por objetos com os quais pudesse contornar seu próprio corpo como, por exemplo, um bastão de cola, os óculos de outros, uma certa cadeira maior do que as outras, na qual encaixava seu corpo dando-lhe o contorno necessário para que se debruçasse sobre os objetos oferecidos, possibilitando sua aproximação às atividades propostas. Em momentos em que por algum motivo essa cadeira não estivesse disponível, Pedro se agitava e tornava-se impermeável a qualquer intervenção, denotando que esse objeto fazia parte de seu corpo. Neste momento, então, Pedro parecia começar a se enfrentar com a construção de sua imagem corporal, embora ainda colada em alguns objetos que funcionavam como próteses.

A partir da escuta existente no tratamento, criaram-se cenas nas quais foi sendo possível a Pedro contornar melhor esta questão e avançar.

Levando-se em conta seu interesse e na tentativa de promover deslocamentos, muitas atividades foram propostas: contornar objetos, o próprio corpo, sua cadeira, e Pedro ficou fascinado por contornar sua própria mão, repetindo insistentemente esta cena em diferentes espaços. Aos poucos isto se tornou uma marca de Pedro reconhecida por todos da instituição.

Em um segundo momento, o próprio Pedro passou a se reconhecer nesta marca; quando era chamado a "assinar" seu nome, fazia o contorno de sua mão.

Aos poucos esta marca foi ganhando elasticidade, diferenças, e se transformou em bolinhas que são claramente tentativas de produzir escrita, diferenciada do desenho, e passou a assinar a chamada3 desta forma. A chamada é um dispositivo criado com a intenção de fazer surgir o nome próprio já que, como diz Julien (1983), "tem nome próprio ali onde uma ligação é estabelecida entre uma emissão vocal e alguma coisa da ordem da letra, quando uma afinidade se instaurou entre tal denominação e uma marca inscrita tomada como objeto". Além disso, Pedro passou também a interessar-se por textos e pela produção escrita dos adultos.

O contorno da mão continuou, menos insistente, dando lugar a outras produções como recortar, colar, brincar com jogos de encaixe, mas se manteve, também com introdução de diferenças como desenhar as mãos não mais a partir do contorno real e fazê-las cada uma de uma cor, sinalizando possíveis desdobramentos.

Atualmente, Pedro se interessa pela sua imagem no espelho, faz caretas, mexe a boca e se reconhece nesta imagem. Podemos dizer que sua existência no campo do Outro começa a se delinear.

 

 

 

 

 

 

EFEITOS NOS PAIS

Que sua existência no campo do Outro começa a se delinear, isto aparece claramente no discurso da mãe quando esta conta, num momento privilegiado, que Pedro teria melhorado muito desde o início do tratamento e quando questionada sobre o que lhe chamava mais a atenção ela diz: "o olhar, antes tinha que segurar o rosto dele para olhar para mim quando eu falava e ainda assim ele desviava o olhar, era como se machucasse. Hoje a gente se comunica com o olhar, ele me olha quando eu falo, se vai fazer uma coisa errada me olha para ver se eu aprovo ou não". A mãe conta também situações nas quais Pedro passa a se "comportar melhor" (como uma criança educada) suportando "nãos", podendo esperar para conseguir alguma coisa, reconhecendo pessoas e diferenciando sensações como de frio e calor. Recortes do discurso da mãe são ricos também para ilustrar sua posição, que permitiu desfazer a forclusâo de significantes à qual estava submetida esta criança. A escuta operada no tratamento, incluindo a dos pais, possibilitou a esta mãe supor umas tantas outras coisas a seu filho, suposição que antes estava impedida de ser operada. A mãe relata uma cena que nos mostra sua mudança de posição: quando Pedro produz sons como "mama", embora aparentemente não dirigido a ela, esta se apresenta: " Eu sou a sua mãe, o que você quer?".

O pai, por sua vez, começa a questionar sua certeza sobre a deficiência auditiva de seu filho quando numa entrevista a mãe se recorda de um período em que Pedro ficava durante o dia com sua madrinha, dos três aos nove meses. A madrinha, segundo eles, não o via como uma criança surda e contava que quando o pai ou a mãe chegavam no portão e chamavam, ele reagia a este chamado olhando ou dirigindo-se à porta.

O trabalho com os pais vai na direção de sua responsabilização pelo fantasma que se coloca em jogo e isto é feito no grupo de pais e em entrevistas com a família.

 

O SURGIMENTO DO OUTRO

É nítido no tratamento a mudança no olhar tão bem observada pela mãe. Pedro se dirige às pessoas com o olhar, olha-se no espelho, ou seja, ao mesmo tempo que começa a se delinear sua imagem corporal, o Outro surge não como ameaçador, mas como um lugar possível ao qual dirigir suas demandas. Isso tem como conseqüência começar a formular a pergunta "o que querem de mim" e a responder às demandas do Outro.

O olho do Outro passa então a existir e isso permite, num primeiro momento, ressituar sua posição especular e, posteriormente, construir a letra, que só existe no olho do Outro. Poderíamos dizer que esta criança já tem internalizada a instância do Outro, já existe o representante da posição simbólica do Outro, a instância da letra no inconsciente, ou seja, apresenta condições favoráveis para continuar seu trabalho de subjetivação. Uma cena recorrente em seu tratamento hoje, que ilustra o que acabamos de dizer, é a de Pedro "lendo" uma revista em frente ao espelho, ora contemplando sua imagem, ora dirigindo seu olhar ao adulto presente.

Com este caso foi possível ilustrar como uma criança que chega ao tratamento com uma parada no investimento educativo devido a sua posição na fantasmática parental, que encontrava no real uma razão para isto, pôde sofrer os efeitos de uma retomada da empreitada educativa. Apesar da avaliação sobre a surdez continuar inconclusiva, podemos dizer hoje que Pedro escuta mais do que ouve, ou seja, apesar de existir uma provável limitação real, a partir do tratamento tem-se aberto uma nova possibilidade de construção de sua subjetividade, uma vez que é aí que o tratamento incide: na construção do sujeito.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

de LAJONQUIÈRE, L. (1997). "Dos 'erros' e em especial daquele de renunciar à educação". Estilos da Clínica, ano II, número 2        [ Links ]

_______ (1997). "A escolarização de crianças com 'DGD' ". Estilos da Clínica, ano II, número 3.         [ Links ]

HASSOUN, J. (1997). "Os três tempos da constituição do significante". Revista da APPOA. Ato e Interpretação.         [ Links ]

JERUSALINSKY, A. (1998). "Considerações preliminares a todo tratamento possível de uma criança". Associação Psicanalítica de Curitiva em Revista, número II.         [ Links ]

_______ (1995). Apesar de você, amanhã há de ser outro dia. In: Calligaris, C. et alii Educa-se uma criança? Porto Alegre: Artes e Ofícios.         [ Links ]

JULIEN, P. (1983). Le nom propre et la lettre. Littoral, 7/8. Édition érès.         [ Links ]

KUPFER, C. (1998). Educação Terapêutica: mais uma tentativa de encontro entre a psicanálise e a educação. Associação Psicanalítica de Curitiba em Revista, número II.         [ Links ]

ROSA, J.G. (1984). Manuelzão e Miguilim. São Paulo: Nova Fronteira.         [ Links ]

 

NOTAS

1 Gostaríamos de agradecer a Alfredo Jerusalinsky e à equipe do "Lugar de Vida" pelas discussões sobre este caso que muito contribuiram para a escrita deste texto.

2 Esta é uma formulação teórica proposta por Alfredo Jerusalinsky.

3 Faz parte da rotina do grupo educacional encerrar esta atividade com o chamado a assinar o nome/produzir uma marca.