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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.3 no.5 São Paulo  1998

 

DOOSSIÊ

 

A "presença-ausência" em jogo nas crianças psicóticas e autistas

 

The"presence-absence" in play with psychotic and authistic children

 

 

Marize Lucila Guglielmetti

Psicanalista, Coordenadora do atendimento do Lugar de Vida e do Grupo do Jogo

 

 


RESUMO

O grupo do jogo, uma das atividades do atendimento do Lugar de Vida, será abordado neste texto, do ponto de vista de sua trajetória dentro da instituição, em sua vertente teórica, privilegiando a questão da "presença-ausência", em sua vertente clínica, com a apresentação de um caso, em sua diferença com a recreação, outra atividade que compreende os jogos infantis.

Jogo, Grupo do Jogo, Recreação (jogos)


ABSTRACT

The "play group", one of Lugar de Vida's activity, will be considered in this text by its history.
The group and the "presence-absence" theory will be discussed by a case description "Julinho".
The last point in the text will be to describe and show the differences between the work in "playing group".

The concept of play, play group.


 

 

O grupo terapêutico foi a célula mater, a origem, a forma inicial do trabalho no Lugar de Vida. Dele derivaram as outras atividades. Refletir sobre a sua trajetória contribui para resgatar o processo, a evolução, a orientação que foram sendo construídos, na instituição, ao longo do tempo. Pretende-se também avaliar o jogo infantil em suas vertentes teórica e clínica. Na vertente teórica, privilegiando a questão da "presença-ausência". Na vertente clínica, recuperando a maneira como ele vem sendo investigado e trabalhado nos atendimentos em grupo no Lugar de Vida.

 

DO GRUPO TERAPÊUTICO AO GRUPO DO JOGO

A atividade do jogo atravessou três momentos distintos no Lugar de Vida, nos quais recebeu os nomes de grupo terapêutico, grupo da conversa e grupo do jogo.

 

O GRUPO TERAPÊUTICO

O primeiro deles, o grupo terapêutico, nasceu do modelo clínico tradicional, reunindo a experiência dos consultórios e a proveniente .de instituições como o CPPL - Centro de Pesquisa em Psicanálise e Linguagem, de Recife1 e a Escola Experimental de Bonneuil-sur-Marne2. O atendimento, nessa fase, constituiu na psicoterapia psicanalítica intensiva de grupo, cujo enquadre compreendia um grupo de 5 crianças atendidas por 5 psicanalistas, durante 3 horas, quatro vezes por semana.

As intervenções eram interpretativas, e a transferência efetivava-se a partir da relação dos pais com uma das psicanalistas, responsável pelas entrevistas. Era essa transferência que tornava possível o trabalho com as crianças. Além disso, abria-se espaço para momentos pontuais, em que se privilegiava o contato individual entre uma criança e uma psicanalista.

Paralelamente, a partir de um movimento espontâneo dos pais, na sala de espera, que falavam sobre seus filhos, foi formado o Grupo de Pais, que transformava em trabalho a fala espontânea3.

De acordo com a orientação teórica da época, trabalhávamos com a noção de um inconsciente a ser decifrado, traduzido4. Do ponto de vista da prática clínica, defrontávamo-nos com a questão "grupo versus articulação da história individual do paciente". Ao mesmo tempo, ganhou corpo a constatação de que os recursos terapêuticos tradicionais mostravam-se insuficientes, que nos levava a pensar que os dispositivos do tratamento - interpretação, transferência - pareciam não ter alcance significativo nos casos que atendíamos, ou que havia uma lentidão excessiva para a produção de algum efeito. Foi a nossa reorientação teórica em relação à noção de inconsciente estruturado como linguagem5, uma instância passível não mais de decifração de significados, mas a ser escutada através dos significantes do sujeito do inconsciente, que provocou uma mudança fundamental em todo o trabalho. Tomamos então o eixo da "falta" e dele extraímos os operadores alternância, diferença, descontinuidade, presença-ausência, o que implicou a introdução de uma segunda atividade.

Nesse sentido, a primeira tentativa, logo abandonada, foi o projeto dos "cantos" expressivos, nos quais se ofereciam atividades ligadas às artes plásticas e música. Numa outra experiência, introduziu-se o momento do lanche, que, embora tivesse um efeito inicial de pausa, calma, provocava, em seguida, uma intensa desorganização. Concluímos que esse voltar-se ao corpo, esse preenchimento da falta em uma dimensão real, ia na direção oposta à do simbólico, contrariando um dos pilares centrais do trabalho. Por isso, também abandonamos a atividade.

Foi a dimensão escolar, com a introdução do grupo educacional, que operou a primeira diferenciação efetiva em relação ao espaço do grupo terapêutico. Tínhamos agora a oposição atividade estruturada (grupo educacional) versus atividade não-estruturada (grupo terapêutico). A especificidade do grupo terapêutico, enquanto atividade não-estruturada, é a de que nele se acompanha o movimento das crianças, de modo equivalente ao que ocorre com a associação livre. O grupo terapêutico, dessa maneira, opõe-se ao grupo educacional, que, enquanto atividade estruturada, pede uma produção às crianças.

Agora são duas atividades, dois espaços, duas equipes e dois grupos de crianças. Podemos cogitar sobre as razões que levaram à escolha desta atividade e não de outra. Talvez, a primeira delas tenha ligação com o registro da demanda por uma escola por parte dos pais de uma, das crianças, somada à já mencionada percepção de uma insuficiência dos recursos terapêuticos tradicionais.

Naqueles primeiros tempos, surgia um outro elemento relativo a "grupo de crianças" que nos chamava a atenção. Tratava-se de certos efeitos que se produziam entre algumas crianças, de uma criança sobre a outra, que tinham como conseqüência uma efetiva mudança de posição, e que marcaram importantes avanços clínicos no tratamento de algumas destas crianças.

A introdução de outros três ateliês (música, jogos dramáticos, quotidiano) delineia com clareza a mudança do modelo clínico inicial para o modelo clínico-institucional. Intensificamos a utilização dos operadores alternância, diferença, descontinuidade, presença-ausência e também introduzimos a oferta de diferentes estruturas de linguagens e elementos da cultura. Além disso, o tratamento, o efeito terapêutico propriamente dito, está claramente localizado na montagem como um todo, que agora constitui-se de 3 grupos de 5 crianças, coordenados por uma dupla e com a presença de um anotador. Assim, o atendimento compreende o grupo terapêutico, o grupo educacional e os ateliês6. Aliás, o nome Grupo Terapêutico deixa de ter qualquer sentido e impunha-se uma revisão de sua especificidade.

 

GRUPO DA CONVERSA

Surge então uma segunda alteração, proveniente, de certa forma, da retomada da questão da história clínica individual dentro do grupo. A operação ponto a ponto, encarada como os momentos pontuais de escuta entre um adulto e uma criança no grupo, levou-nos a questionar o caráter de sobreposição, repetição, excesso destes momentos no grupo em relação àqueles das análises individuais em andamento. Havia, além do mais, a questão da divisão da transferência. Consideramos contra-indicada e desnecessária esta atividade para as crianças, que já tinham o seu atendimento individual. A partir de agora, participavam deste grupo as crianças que ainda não haviam iniciado as suas análises. Esta era também a atividade que, depois da triagem, recebia e introduzia os novos pacientes na montagem7.

A base da idéia do grupo da conversa tinha como inspiração a reunião quotidiana entre adultos e crianças na atividade 'La causette", que abria os trabalhos do dia em Bonneuil (M.Mannoni,1986), embora no nosso caso esta atividade tenha assumido outra forma. Assim, o grupo da conversa era o espaço privilegiado da fala (ainda que não fosse sob a forma verbal), centrando-se nas relações das crianças entre si ou destas em relação aos adultos. Nesse sentido, o mecanismo consistia em remeter ao grupo todo e qualquer acontecimento fora da proposta de trabalho das outras atividades. Por exemplo, ataques aos objetos, às pessoas, ao material etc, que ocorressem em outras atividades, deviam ser tratados neste espaço.

A montagem agora tem a estrutura de discurso e a escuta é redirecionada aos significantes que surjam da rede formada pelos três níveis de fala: do grupo de crianças, do grupo de pais e da equipe. A história clínica deixa de ser relevante no dia-a-dia, situando-se agora na retaguarda, nas reuniões clínicas. Com relação ao espaço de fala das crianças, o predomínio das formas não-verbais dirige o nosso olhar para a sua principal atividade, o brincar e/ou o jogo.

 

GRUPO DO JOGO

Inicialmente, não poderíamos deixar de mencionar que a nossa participação no curso "Abordaje Interdiscipli-nario de los Problemas del Desarrollo Infantil8 realçou ainda mais a importância do jogo em nossa clínica. Tendo sido destacado como um dos seus cinco eixos centrais9, o jogo foi apresentado como a forma de intervenção clínica em que todos os elementos do conhecimento podem ser introduzidos, servindo, portanto, como instrumento dentro de atividades diferentes, como por exemplo a Psicopedagogia Inicial ou a Linguagem.

Como ponto de partida, tomaremos os dois eixos principais desta atividade, aliás contidos nos dois termos que a nomeiam. A nova especificidade recai agora, de um lado, sobre esta atividade por excelência da criança, considerada estrutural, tomada do ponto de vista do sujeito, da constituição do sujeito e com o caráter de prática significante. De outro, incide sobre as relações dentro do grupo. Partindo da vertente do jogo, tomaremos alguns dos elementos básicos contidos nos jogos considerados universais do sujeito infantil pela psicanálise. É a sua estrutura que neles se revela.

 

JOGO: ALGUNS EIXOS TEÓRICOS

O jogo, atividade por excelência da criança, só passou a ser objeto de interesse da filosofia, pedagogia, psicologia, quando, historicamente, a criança deixou de ser vista como um adulto em miniatura. No final do séc. XVIII, quando a criança tornou-se um ser educavel, objeto de estudo da pedagogia, com a introdução das noções de desenvolvimento, amadurecimento e os critérios comparativos estatísticos, chegou-se à idéia de "normal", segundo a qual as crianças eram então classificadas.

A psicanálise introduz, por oposição, a idéia de particularidade, singularidade, e com ela a idéia de significante e constituição do sujeito. Freud, em 1909, nos textos "Teorias da sexualidade infantil" e "Análise da fobia de um menino de 5 anos", aborda o significado inconsciente do jogo (juntamente com os sonhos e as fantasias). Em "Além do Princípio do Prazer", de 1920, Freud descreve e analisa o jogo de uma criança de 18 meses, em que detecta o Momento Constitutivo da História do Sujeito.

O jogo será abordado, neste trabalho, sob o ponto de vista da constituição do sujeito, enquanto prática significante, com a propriedade de ser estruturante, conforme a concepção de Lacan e de acordo com a especificidade da natureza do sujeito infantil, que é diferente do sujeito adulto. O jogo não será considerado como uma atividade a mais, nem como diversão, nem como descarga fantasmática, nem como catarse, nem como uma atividade regulada pelas defesas, nem como mais uma formação do inconsciente.

Não se trata de quaisquer jogos, trata-se de alguns jogos universais, atravessados por todas as crianças em sua estruturação subjetiva.

Enquanto prática significante, o jogo está revestido das mesmas propriedades que o significante propriamente dito. Tomando-se, então, significante como o elemento do discurso que representa e determina o sujeito para outro significante, sua extensibilidade configura-se na(s) cadeia(s) significante(s). Evidencia-se na repetição e não tem nada a ver com uma significação. Ao contrário, por poder significar toda e qualquer coisa, em si não significa nada.

Alfredo Jerusalinsky, em seu texto "La educación, ?es terapéutica? - Acerca de tres juegos constituyentes dei sujeto"(1994), trata dos três jogos considerados universais, que retomaremos a seguir. Assim, o primeiro é o chamado Está/Não-Está, Presença-Ausência (conhecido como Fort-Dá). Sinteticamente, o clássico Jogo do Carretel ou. Fort-Dá trata do jogo observado e analisado por Freud em uma criança de 18 meses em que, na ausência da mãe, a criança repetidamente lançava um carretel amarrado a uma linha e nesse momento emitia um som prolongado ("ô-ô-ô-..., em alemão significa Fort, em português quer dizer "Lá". Quando puxava o carretei emitia outro som prolongado, á-á-á-..., em alemão equivale a Dá, em português corresponde a "aqui"). Segundo Jerusalinsky, este jogo de início tão precoce repete-se, desdobra-se, prolonga-se na criança e pode ser reconhecido por exemplo nos jogos de ocultação (é o caso do "cadê-achou", no qual a criança esconde o rosto, ou o adulto encobre e descobre o próprio rosto) e, posteriormente, nas várias formas de "esconde-esconde" (o esconder objetos, esconder-se, adivinhações, mentiras).

Referindo-se a este mesmo jogo, Ricardo Rodulfo destaca que o acento está colocado principalmente no Fort, o que está sendo construído é a ausência, a perda, a separação (isto quando a criança já tem o Dá, a presença, a continuidade), e então o enigma para ela seria:

como pode ter existência algo que não é visível?

como pode existir algo que está ausente?

Para Jerusalinsky, no par Lá-Aqui, temos os elementos básicos da estruturação da linguagem10 e da constituição do sujeito11. Então, a descontinuidade, o elemento binário, a oposição, o par presença-ausência em série, todos estes elementos são concernentes à inscrição do olhar no âmbito da linguagem. Não existe o lá sem o aqui, e vice-versa.

O segundo jogo estudado por Jerusalinsky é o denominado " Este é outro" ("como se", "faz-de-Conta"). Trata-se dos jogos transicionais, descritos por Winnicott em 1951, em que um objeto, chamado por ele objeto transicional (exemplo: cobertorzinho, ursinho, chupeta etc) substitui o objeto de desejo original (a figura materna). Este objeto, no início, em geral é fixo, mas, com o tempo, variando de criança para criança, a gama de substituições deve ampliar-se, flexibilizar-se, estender-se.

Lacan remeteu esta idéia ao registro do falo (o significante da falta) e a este objeto enquanto objeto causa do desejo (a). Talvez se pudesse pensar que a idéia de objeto transicional como dimensão temporal inclinado ao futuro remete aos jogos de representação (como se, ou faz-de-conta) como um desdobramento deste objeto transicional inicial.

O terceiro e último jogo introduzido por Jerusalinsky, o "cai-não cai" , jogos de queda, jogos de borda", é visível sob muitas formas. Exemplo: lançar um objeto do berço, ou do cadeirão, e esperar que o adulto o devolva, repetir incansavelmente até a exaustão do adulto. Fazer deslizar um brinquedo ou objeto até a borda de uma mesa e deixá-lo cair; subir nas bordas e beiradas de uma janela e andar de um lado para o outro, desafiando o equilíbrio, ou balançar-se e inclinar uma cadeira até o limite do equilíbrio; olhar pelas frestas, enfiar-se em buracos, saltar de uma cadeira, na piscina, nas almofaclas etc.

O que está em jogo é a questão do olhar, do desaparecimento, da ausência (a questão motora e do espaço). Então, até que ponto a continuidade se sustenta e a partir de que ponto há a ruptura, a descontinuidade, a queda se dá.

Ricardo Rodulfo, em seu texto "O Brincar e o Significante", um estudo psicanalítico sobre a constituição precoce (1990), coloca uma questão interessante quando interroga sobre o período anterior aos 18 meses de idade. Segundo ele, já há um processo de constituição do sujeito em andamento, com seus elementos mais primordiais e mais arcaicos. Trata-se da constituição libidinal do corpo, da corporalidade de seres desejantes, corporalidade libidinal, base de apoio para a subjetividade, demonstrada nos dois jogos que, em seguida, retomaremos sinteticamente.

O primeiro "extrair-esburacar", produz a construção de superfície, do envoltório, da continuidade. As primeiras funções do brincar consistem deste processo de extração de materiais para fabricação do corpo enquanto superfície (ainda sem a noção de volume, de dentro, fora etc). Materiais estes que são arrancados do corpo do Outro e acrescentados à pele.

Este Outro pode ser pensado como tesouro de significantes, mito familiar etc.

Estes materiais consistem de significantes (que podem estar sob formas variadas, como por exemplo, lambuzei-ra, calor, cheiro, vozes, rotina).

É com os olhos e com a boca, órgãos de incorporação, antes que com as mãos, que se dá essa extração .

Não se trata de construção do corpo segundo as noções de volume e de interior, mas sim de superfície. Exemplos: atividade visível nos bebês, quando querem alimentar-se sozinhos e produzem lambuzeira, lambuzam-se à mesa, a pessoa que estiver próxima etc, toda essa extensão é ela, é a sua superfície. Nessa etapa, não há distinção entre interior-exterior, corpo/não-corpo, eu-outro.

São mencionados exemplos da patologia das psicoses onde também há produção de lambuzeira e das depressões com o tampar-se, cobrir-se enquanto busca de calor como o mais arcaico envoltório do corpo.

O segundo, "passagem ao volume, tubo, primeira modalidade de buraco" caracteriza-se pelo interesse da criança nos continentes-conteúdos.

Temos, por exemplo, o bebê que se dedica a pôr e a tirar objetos de dentro da bolsa da mãe, ou de uma caixa.

Este jogo é regido pelo princípio da reversibilidade, em que o que antes era continente pode passar a ser conteúdo, e vice-versa, não havendo noção estável de tamanho, grandeza (grande, pequeno, maior, menor). Há ainda o predomínio da característica do espaço bi-dimensional do espaço plano sem espessura. A noção de volume também é reversível, pois, tão logo surge, desvanece. Há a passagem de conteúdo a continente e vice-versa .

Há casos na patologia, na psicose, por exemplo de fantasias de ser devorado pelo alimento que ingeriu, ou de ser devorado pelo vaso sanitário, ou de ser devorado pelo corpo onde se julga incluído.

O quotidiano da experiência clínica infantil constata e reafirma a preciosidade dos elementos mencionados acima. A experiência clínica no Lugar de Vida igualmente. A questão é que o trabalho com os pacientes muito comprometidos como os psicóticos e autistas exige uma articulação da teoria a novos dispositivos da prática clínica. A experiência acumulada nesses 10 anos de trabalho nos forçou a ampliar a reflexão sobre as formas de constituição do sujeito, particularizando-as. Temos evidências de que a constituição do sujeito via jogo é uma das possibilidades para algumas crianças; para outras, parece-nos que a via da alfabetização cumpre esta mesma função12.

Considerando ainda mais que muitas destas crianças não só não falam, ou olham, mas também não brincam, isolam-se em suas estereotipias, sem estar permeadas pelo simbólico, há que se buscar a operação que possibilite a passagem da estereotipia ao significante e dessa maneira possibilitar o acesso ao simbólico.

Constatamos, também, que muitas dessas crianças situam-se aquém da construção da ausência, numa perspectiva ainda anterior. A propósito, encontramos em Ricardo Rodulfo preciosa contribuição a respeito da constituição significante do corpo enquanto suporte do sujeito desejante.

 

GRUPO: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Julgamos relevante registrar, a título introdutório, os parâmetros que delineiam este campo para nosso grupo, e também destacar um elemento que muito tem chamado nossa atenção quanto a certos efeitos que ocorrem na dimensão do imprevisto e do improviso, produto da particular forma de relação das crianças entre si, que se dão em certos momentos e que nos parecem poderosos por sua eficiência, justificando a utilização do dispositivo grupo.

Não se trata de abordar o grupo enquanto coletivo tal como acontece em outras perspectivas teóricas, mas de fazê-lo como discurso coletivo no plano simbólico tomado da teoria lacaniana, que supõe os três elementos - sujeito, outro, Grande Outro. Como escreve a psicanalista Oliveira (1997) em seu trabalho sobre pais: "Se o grupo é suposto como estrutura discursiva, o que está em jogo é a relação de fala e não a relação entre as pessoas. Nessa medida, trabalhar com grupos nos remete à questão da linguagem, ao simbólico, à lei e portanto à castração" (pg. 35).

Mas isto quando se tem o Outro constituído. No caso dos pacientes psicóticos e autistas, cabe perguntar qual o lugar que o Outro ocupa. A partir de evidências clínicas talvez pudéssemos qualificar este lugar como o do que perturba, invade, ameaça, divide, exclui, falta etc, tornando insuportável manter o laço com o Outro e muitas vezes levando à desconexão, à ruptura deste laço, o que vai implicar a ausência da troca simbólica.

Deixando no momento de examinar a questão da ruptura propriamente dita, ocorre-nos perguntar se seria possível recuperar o laço com o Outro via grupo. E mais: quando o Outro não está constituído como Outro barrado, seria viável tentar instituí-lo13?

Segundo Mercedes Baudes de Moresco (1992), "(...) en el caso del grupo de psicóticos graves, establecer un lazo terapéutico, una psicoterapia, basada en la imagen especular, la identificación, la recomposición del yo, etc, tal vez seria lo que exitosamente podríamos llamar un logro, ya que de psicosis se trata. Producir lazo" social y ciertos vínculos (...)" (pg.142).

Encontramos também no trabalho "O lugar da psicanálise nas instituições" (1998) uma referência que, nos parece, também concorda com os benefícios do dispositivo grupai: "(...) o dispositivo grupai reabilita o sujeito (...) para a conexão com o Outro, desfrutando, por assim dizer, simbolicamente da ação sobre si da intersubjetividade imaginária do grupo. Assim, o "ritual" da sessão opera uma certa forçagem que aponta a reinscrição do sujeito no campo do Outro, a reencontrar um lugar simbólico (...)"(pg.263).

Como já afirmamos, o dia-a-dia em nossa clínica no Lugar de Vida tem evidenciado certos efeitos de uma criança sobre outra que provocam mudanças de posição e que implicam avanços importantes no tratamento de algumas destas crianças. Cabe-nos investigar. De que se trata?

Ainda segundo "O lugar da psicanálise nas instituições" (1998), a ação do pequeno grupo não é terapêutica por si só e o essencial é a direção do tratamento buscando operar no sentido de produzir a emergência da particularidade subjetiva . Trata-se, portanto, da posição do analista, de sua ação na direção do tratamento (e não na direção do grupo), através de sua escuta e aposta. Para Moresco (1992), tratar-se-ia de efeitos de discurso,"(...) dei atravesamiento dei discurso, de la misma manera que el discurso del Otro, constitutivo dei inconsciente, nos determina como sujetos."(pg. 34)

Talvez pudéssemos pensar numa rede de discursos que se entrecruzam e acionam certos giros que produzem mudanças de posição, de forma que algumas vezes fica estabelecido um antes e um depois no tratamento e, talvez, na vida destes pacientes.

Um recorte clínico, a esta altura, pode ser ilustrativo dos elementos teóricos apresentados em relação à constituição do sujeito via jogo e também da importante incidência do dispositivo grupo através da intervenção de uma outra criança. Trata-se de um menino que chega ao Lugar de Vida em Novembro de 1991, com 5 anos de idade, e é atendido até o final de 1995.

 

CASO JULINHO-UM RECORTE CLÍNICO DO GRUPO DO JOGO

Julinho nos é encaminhado por uma psicóloga, amiga da família, que formulou a hipótese diagnóstica de autismo. O primeiro dado que ressalta é que há dificuldades de separação entre mãe e filho; então, a princípio, há um atendimento conjunto mãe e filho.

A queixa da mãe é de que o menino fala pouco, é muito nervoso, grita muito e não suporta barulhos. Quando quer uma coisa e por algum motivo não pode tê-la, joga-se no chão, faz escândalos e sempre consegue o que quer dos adultos. Isto geralmente acontece com a mãe, a irmã mais velha e o cunhado, que o mimam muito. Segundo a mãe, o menino não é muito ligado no pai. "É como se o pai não existisse para ele", resume ela.

A mãe buscou ajuda médica quando Julinho tinha três anos de idade porque ele ainda não falava e usava fraldas. Fez EEG, tomografia computadorizada e nenhum problema foi detectado. Julinho começou a falar aos 3 anos e 6 meses, mas continuava muito nervoso. Isto fez com que a mãe fosse buscar ajuda psicológica.

Depois de um trabalho inicial de atendimento conjunto mãe e filho, a entrada no grupo do jogo sem a mãe é intermediada pela mesma terapeuta que fez o atendimento anterior. De início, há isolamento, automatismos, movimentos mecanizados. Contato única e exclusivamente com a terapeuta que o acompanha. Julinho ou isola-se, demonstrando fascinação pelos reflexos de luz, ou dedica-se a arrumar objetos e medir com as mãos a superfície da mesa. Anda pela sala e emite sons agudos e a terapeuta o imita, o que ele parece ignorar a princípio, mas depois passa a interessar-se. A terapeuta introduz uma primeira modificação, emitindo sons diferentes dos dele, introduzindo assim a primeira descontinuidade. Ultrapassada a surpresa inicial, estabelece-se um jogo com sons entre eles. Julinho diverte-se com isso.

Uma outra modificação, produzida por Julinho, é que este jogo agora prossegue com o brinquedo "bate-estacas", em que além dos gritos há o som do martelo nos pinos. Surge outra brincadeira: saltar do beirai da janela para o colo da terapeuta. Uma menina do grupo interessa-se pelo jogo e, acompanhada de outra terapeuta, passa a brincar ao lado de Julinho. Depois de algum tempo, como um manejo, propõe-se trocar as parcerias entre as terapeutas, o que Julinho não aceita. Diante do "não", Julinho isola-se, retorna à arrumação das pecinhas.

A primeira grande alteração neste circuito ocorre quando um outro menino do grupo aproxima-se, provoca-o, tira objetos das mãos dele, insiste, persegue-o.

Julinho tem uma crise, parece-nos com a tal cena descrita pela mãe. O fato é que, ajudado pela terapeuta que o acompanha, Julinho consegue suportar a travessia deste momento. Após o episódio, ocorrem alterações significativas. Abriu-se o contato com as outras crianças e a produção de Julinho enriquece, apesar de ainda conter estereotipias, visíveis em seu interesse pelos objetos eletrônicos, propondo-se a brincar de "franguinho no prato giratório" (microondas) e fazer a contagem regressiva do mostrador do relógio digital. Junto com estes, surgem dois blocos de dois jogos muito importantes.

No primeiro bloco, temos os jogos que denominaremos "bom-dia, boa-noite" e "corrida". O primeiro consistia em dizer "bom-dia, boa noite" sincronizado com o acender e apagar da luz, com o abrir e fechar dos olhos, com o dormir e acordar. No segundo, a proposta era realizar uma corrida incluindo a sinalização espacial do lugar da "largada" e da "chegada" (palavras escritas no chão) e a sinalização temporal do momento da "largada" (exibição de um círculo verde) ou da "espera" (exibição de um círculo vermelho).

Cabe salientar que, neste momento, o jogo inclui os outros (adultos e crianças); com isto há a introdução da diferença de ritmos, desejos, etc.

Em ambos os jogos estão presentes a descontinuidade, a oposição, o elemento binário do par simbólico, elementos essenciais à constituição da linguagem, que só surgem a partir da perda do objeto.

Do segundo bloco fazem parte dois jogos, que chamaremos "dar trombada, cair" e "jogo do carro batido". No primeiro, a partir de um arrastar de cadeiras vazio e sem implicação, surge o jogo de "dar trombada", "cair", que provoca o riso e é nomeado por Julinho "Ponte do rio que cai" (parafraseando o título do quadro de um programa de TV). Este jogo evolui para outro que se repete por longo tempo, no qual Julinho insiste até o final do atendimento, e que nos obriga a perguntar o que está em jogo nele. No segundo, a seqüência consiste em duas cadeiras que se chocam, cair, dizer que machucou, quebrou, chamar a ambulância, ir para o hospital do câncer, consertar, costurar, nomear as várias partes do corpo, inclusive "bilú,bijú" (referindo-se ao pênis) .

Em relação a este último jogo, caberia comentar em primeiro lugar que a insistência denuncia a sua importância, possivelmente com a emergência do significante. Em relação a esse jogo de representação, poderíamos especular a respeito de seu significado: trata-se da construção do corpo, da emergência do eu, da perda, da castração?

Não sabemos, posto que não trabalhamos com as "significações". O nosso enquadre, diga-se de passagem, não é a análise individual de Julinho, mas acompanha, busca as operações que acionem os elementos que permitam que este sujeito se constitua.

A partir de então, os progressos evidenciam-se tanto nos jogos, que agora sempre incluem o outro (exemplo: cenas de chanchadas, vídeo-cassetadas, carrinhos no túnel, telefonemas, cartas no correio), quanto no grafismo, pois os desenhos, agora não mais estereotipados, representam cenas (exemplo: composições com casa, sol, nuvens) que contêm deslocamentos onde o mesmo objeto pode ter diferentes representações (exemplo: um círculo pode dar origem a uma pizza, a uma roda de um carro, ou ainda a um par de óculos).

 

FRONTEIRAS

O fato de propormos um novo dispositivo para tentar oferecer um tratamento com alcance suficiente nos quadros graves impõe-nos o rigor da vigilância e da reflexão sobre a diferenciação e a especificidade das modalidades de atendimento. Então, tomaremos o Grupo do Jogo e a Recreação, que é a atividade da montagem institucional que se ocupa dos jogos. A atividade de recreação pode ser entendida em três sentidos: do recreio, dos jogos da cultura, de inventar brincadeiras.

Sua especificidade consiste na oferta da "infância" e com ela a oportunidade de pertencer à cultura dos homens e de exercer o laço social, através das produções culturais humanas. No sentido de recreio, reproduz o que na cultura seria o tempo do descanso, da atividade livre, entre períodos de trabalho.

Enquanto jogos da cultura, mantém viva a cadeia da tradição, atravessando, atualizando e transmitindo os jogos que passam de geração em geração em cada povo, lugar, época, porque tratam de algo que é primordial e universal para as crianças, em termos de desafios, regras, prazer etc.

Como inventar brincadeiras, é a produção de versões singulares apropriando-se do lúdico e também acrescentando à cadeia da tradição, renovando-a e enriquecendo-a, com novos elementos que representem um tempo presente.

O Grupo do Jogo compreende o brincar no sentido da estrutura de uma criança, e aborda aqueles jogos universais a serem atravessados por todas os seres humanos em sua constituição subjetiva .

Nele predomina, então, a vertente do estrutural, do universal, que independe da época, do lugar ou da cultura, enquanto na recreação predomina a vertente do cultural.

Finalmente, não seria possível concluir sem dar voz aos pacientes do grupo do jogo, que através da palavra ou do ato produziram as suas marcas nesta atividade. Houve um dos meninos que, brincando com as palavras, interrogou-nos certo dia pelo "JOGO DO GRUPO". Um outro, no momento da interrupção da atividade, talvez querendo reassegurar-se da continuidade futura, dirigiu-nos a pergunta: "TEM MUITO JOGO?"

Têm sido muitos os momentos em que alguns deles põem-se literalmente a "JOGAR" objetos, fazendo-nos pensar na dificuldade de trabalho com o simbólico.

Como já ressaltamos, estamos interessados na constituição do sujeito, e seria descabido ignorar tais produções. As reações das crianças nos alertam para os vários sentidos que nela podem desdobrar-se. Cabe-nos "apostar no jogo" e poder deixar-nos surpreender com as mil faces do jogo em sua "presença-ausência".

 

NOTAS

1 Que nos chegou através das psicanalistas Lia B. F. Grillo Daniel (que na época fazia parte da nossa equipe e anteriormente havia integrado a equipe do CPPL) e Paulina Rocha, via leitura do seu texto: "Um modelo de instituição para tratamento de crianças psicóticas" (1983).

2 Inicialmente, através da leitura de vários dos textos de M. Mannoni, especialmente os dois voltados para Bonneuil ("Um lugar para viver" e "Bonneuil, seize ans après") e, posteriormente, também do estágio realizado em Bonneuil pela coordenadora do Lugar de Vida, Maria Cristina M. Kupfer, em 1992.

3 Os detalhes referentes ao inicio desta atividade estão relatados na pg. 34 do texto "O trabalho com pais no tratamento instituição da criança psicótica", da psicanalista Lina G. M. de Oliveira, que desde o princípio coordenou esta atividade na instituição.

4 Este não era um ponto homogêneo dentro do grupo, pois havia diferentes estágios de formação em relação à teoria lacaniana.

5 Onde se supõem lugares, funções, relações entre os termos.

6 Algumas alterações na montagem foram ocorrendo ao longo do tempo. A partir desta, por exemplo, houve mudanças nas atividades que compõem os ateliês e também houve um desdobramento dela para um outro conjunto de atividades proposto para o grupo de adolescentes em tratamento na instituição.

7 Pois consideramos indicada a entrada gradual, começando por uma atividade, com uma dose mínima de demanda no que diz respeito à exposição a um número menor de pessoas, a um tempo de permanência mais curto, à não-alternância e com uma atividade em que, por suas características, especialmente não demandará uma produção específica.

8 Oferecido pela F.E.P.I. - Fundación para el Estúdio de los Problemas de la Infancia, durante o mês de julho de 1995, em Buenos Aires.

9 A saber: constituição do sujeito, transferência, jogo, interdisciplina, direção da cura.

10 O elemento ausência, perda do objeto, é básico à possibilidade de surgimento da representação. Só é possível ter-se representação quando não se tem o objeto. Neste sentido, uma criança só pode falar quando o objeto desaparece.

11 A dimensão do ser humano que só tem existência na linguagem.

12 A este respeito, consultar o texto de M.CM. Kupfer, Educação Terapêutica: o que a psicanálise deve pedir à educação.

13 Aqui não nos referimos ao autismo porque julgamos que o dispositivo grupo não é indicado para tais casos.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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