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Estilos da Clinica

Print version ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.3 no.5 São Paulo  1998

 

DOSSIÊ

 

Ateliê: lugar de criação

 

Atelier: creaton place

 

 

Flavia Vasconcello

Psicanalista, coordenadora do ateliê de Artes, da Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida

 

 


RESUMO

Qual o sentido de incluir ateliês no tratamento de crianças psicóticas? De que maneira este trabalho contribui e o que vem acrescentar ao tratamento como um todo? Qual a formação dos profissionais que realizam este trabalho? Trata-se de artistas? Psicanalistas? "Atelielistas"? Terapeutas? Educadores? Educadores terapeutas ou Terapeutas educadores? Estas são algumas questões que serão discutidas neste artigo.

Ateliês; psicoses; infância.


ABSTRACT

Why include "ateliers" in the psychotic child's treatment? In which way this work contribute and what advantages it adds to the treatment? What is the background of the professionals who do this work? Are they artists? Psychoanalysts? "Atelierlysts"? Therapists? Educators? Educators therapists or therapists/educators? These are some of the topics that wilt be discussed in this article.

Ateliers; psychoses; childhood.


 

 

Na história do Lugar de Vida, os ateliês passaram a integrar a estrutura de atendimento após um segundo desdobramento do grupo que fundou a instituição, que foi um grupo terapêutico. A primeira mudança no dispositivo foi a criação de um grupo educacional, fundando, neste momento, a Pré-Escola Terapêutica. O "pré" aponta para o trabalho que antecede e possibilita a inserção escolar. Na base deste primeiro manejo sobre o dispositivo, estava a preocupação em criar instâncias de intervenção que fossem mais abrangentes, dando atenção concomitante às questões da subjetividade e das aquisições cognitivas. Além disso, com a criação de uma segunda atividade, estabelece-se no atendimento a alternância de atividades e de profissionais, instaurando o corte e a descontinuidade. A montagem torna-se uma ferramenta terapêutica, na medida em que atua sobre uma questão fundamental das psicoses na infância, que é justamente a ausência da falta1

A criação dos ateliês foi uma resposta a outras questões que se impuseram a partir da experiência: a construção e ampliação dos laços sociais e a importância do contato com as produções da Cultura dos Homens, em um espaço em que as intervenções nao tenham como objetivo primeiro nem a interpretação da loucura, nem tampouco a aprendizagem, mas sim a socialização do discurso (1996), ou seja, o compartilhar com seus semelhantes de uma história, comum e a partir deste encontro criar uma marca singular para si e para o outro.

Mais recentemente, três outras atividades foram elaboradas e incorporadas ao tratamento com o objetivo de ampliar o repertório próprio da infância e fazer incidir o trabalho mais diretamente sobre a questão do laço social: a recreação, os passeios e as comemorações de aniversário e de datas festivas da nossa cultura, tais como Natal, festa junina, dia das crianças, etc.

Além das atividades que integram o atendimento às crianças, há também o trabalho com os pais e com as escolas. Todas essas instâncias de escuta, de fala e de produção constituem a trama institucional à qual todas as atividades estão remetidas, ou seja, os sentidos e a direção do tratamento de uma criança são construídos institucionalmente, na soma dos efeitos de cada espaço, de cada olhar, da cada estilo.

Retomando a estrutura do atendimento, percebemos que todos os pontos que motivaram a ampliação e a reformulação do trabalho são, hoje, eixos que norteiam o tratamento como um todo. A montagem produz efeitos terapêuticos, aprendizagens e ampliação dos laços sociais. Deste modo, apesar de os ateliês não estarem diretamente comprometidos com a aprendizagem, de um trabalho com a letra de uma música, por exemplo, pode derivar uma compreensão a cerca das leis da escrita, bem como um passeio pode vir a promover um reposicionamento de uma criança. Trata-se de uma especial articulação de enquadres, espaços, na qual se compartilha uma certa compreensão das psicoses e da ética psicanalítica, e com isto as intervenções tendem a se somar na rede das muitas transferências que constituem o nosso campo de trabalho.

 

AS ARTES E A CRIAÇÃO: A POTENCIALIDADE TRANSGRESSORA E TRANSFORMADORA DO TRAÇO

Sobre a oferta da arte no trabalho com crianças, diz-nos Maud Mannoni:

"Dar às crianças a possibilidade de pintar, de inventar um mundo segundo suas idéias é ainda mais importante pelo fato delas poderem assim (...) colocar numa linguagem sem palavras o que as mortificou, mesmo que ignorem aquilo que insistem em suas garatujas. O essencial é que sua solidão, seu desamparo e sua "loucura" possam encontrar meios de se exprimir, sem que o adulto procure dar-lhes sentido de imediato. Devemos abster-nos de querer a qualquer preço dar sentido ao absurdo (...)". (MANNONI, 1995)

A brincadeira e a criatividade, diz, são condições de verdade do sujeito, porque são formas de a criança exercitar o próprio desejo. A criança psicótica se vê aprisionada a uma construção imaginária que a congela em uma determinada posição na relação com o Outro. Quanto mais distante ela estiver desta posição, mais próxima estará de seu desejo, da possibilidade de promover pequenos rompimentos desta ordem gozosa mantenedora do sintoma, que está distante da vida, do movimento, das transformações e da criatividade.

Todo bebê parte do corpo caótico, no qual cada pulsão tem um destino próprio, não ligado a um eixo organizador. Até que a criança possa se reconhecer em uma imagem íntegra, ela vive o horror da fragmentação, depende completamente de sua mãe, para que esta vivência seja apaziguada. Na ausência da mãe, vive o desamparo, vê-se à mercê das forças pulsionais anárquicas que dominam seu corpo; o bebê não vem dotado naturalmente de recursos que dêem conta de sua insuficiência psíquica e biológica. É desde estes primórdios da vida que a criança precisará lançar mão de recursos criativos (neste momento, da ordem da fantasia) para se proteger deste horror.

A criatividade diz respeito a gestos que um sufeito pode produzir na vida, gestos que têm um caráter transgressor, transformador. Gestos que respondem à necessidade do sujeito de se exprimir, de se comunicar e de se guiar pelo próprio desejo. Gestos que marcam uma linha divisória entre um antes e um depois que se diferenciam radicalmente. Fazer uso da arte no tratamento dessas crianças significa aproximá-las de um caminho muito fértil para o brincar de criar, para exercitarem-se no jogo da vida. A oferta da Arte neste contexto tem por objetivo contribuir para que as crianças façam um certo uso deste discurso para comunicar, numa linguagem (às vezes) sem palavras, mas repleta de sentido, algo de si.

É importante lembrar como é fundamental durante a infância a experiência de prazer associada a uma brincadeira ou às produções de um desenho, de uma pintura, ao cantar ou dançar. A sublimação oferece um modo aceito e prestigiado pela Cultura de expressão da pulsão. A pulsão desordenada, caótica, sem contornos, produz muito sofrimento. Trata-se de uma angústia avassaladora justamente por não ter medidas, nem pontuações, é uma excitação enorme sem freios e sem destino.

O pequeno fragmento exposto a seguir, apresenta-nos uma situação clínica na qual uma criança passa do gozo ao prazer, após uma intervenção realizada no ateliê de artes:

V. é atendido no Lugar de Vida há 4 anos. É um menino que não fala até hoje, e ainda tem muita dificuldade de suportar demandas dirigidas a ele e situações que coloquem algum limite a seus movimentos habituais. Entra freqüentemente em crises que se caracterizam por auto-agredir-se ou agredir ao outro, seja ele adulto ou criança. Chuta, belisca e morde.

Estávamos pintando com carvão na parede, sobre um papel Kraft, e V. quis um pedaço do papel para se deitar sobre ele. Não aceitou nosso convite para desenhar, ficou deitado, chupando o sangue de um furo que tinha feito em sua própria mão com uma mordida. R. foi a seu lado, imitando seus gestos bizarros e de vez em quando chamando-o, ou pelo nome ou com um cutucão. V. estava bastante agitado neste dia e a princípio só resmungou. R., porém, foi bastante insistente e iniciou um jogo entre os dois. V. o empurrava para longe, mas ele voltava para perto dele. Depois passaram a fazer o contrário, mas quando V. ia até R., o envolvia com um abraço muito apertado e lhe dava um beijo. Continuamos oferecendo a pintura como mediadora deste jogo corporal que foi crescendo, deixando as duas crianças muito excitadas. Procuramos chamá-las de várias maneiras para a atividade, inclusive dizendo que daquela forma o que começou como um jogo prazeroso já estava se transformando em um contato ruim que não cabia naquele contexto. A esta altura, V. intercalava os beijos em R. com mordidas nele próprio. Decidi desenhar uma boca em nosso painel. Disse a ele: "Vou desenhar uma boca. Agora vou desenhar um beijo". Várias bocas foram desenhadas: bocas abertas, bocas fechadas, bocas com dentes. V. presta atenção nos desenhos que estão sendo feitos. Ofereço novamente o carvão para ele. Agora ele o aceita, e sobre as bocas faz alguns traços. Da expressão de angústia anterior vemos brotar em sua face um sorriso. As marcas sobre o próprio corpo dão lugar a marcas que contornam a pulsão e lhe dão expressão de um modo prazeroso.

 

COMO FUNCIONAM OS ATELIÊS NO LUGAR DE VIDA HOJE?

Os ateliês de arte acontecem duas vezes por semana para cada grupo de crianças e têm como enquadre a realização de um projeto. Este projeto divide-se em 3 momentos: o tempo da pesquisa, o tempo do fazer e o tempo de concluir. Assim como a alternância de atividades na montagem busca estabelecer um campo de linguagem, que realiza pontuações a partir da descontinuidade, também nos ateliês, o projeto estabelece pontos de referência, com os quais se pode construir uma frase, uma história com começo, meio e fim.

Estes projetos têm tempo de duração variável. À coordenação cabe a tarefa de contribuir para que o projeto se desenvolva e seja sustentado durante sua elaboração em um tempo suportável para as crianças. Sabemos que o primeiro e o último tempo do projeto, que eqüivalem ao tempo de pesquisa ou o tempo de escolha e o tempo de concluir, de colocar um ponto final, são os momentos mais críticos e no geral os que despertam mais angústia. No começo, parece que vai ser impossível surgir alguma idéia, da qual possa nascer um trabalho interessante. No final, é como se aquele trabalho que está sendo feito não pudesse terminar ou ser substituído por nada. Se, entretanto, os coordenadores estiverem em uma posição de aposta2, o trabalho torna-se perfeitamente possível e produtivo. Claro que há variações e é evidente que nem todos os projetos têm o mesmo envolvimento por parte do grupo, mas é isto que dá vida ao trabalho, e muitas vezes de um projeto "fracassado" muitos efeitos importantes advêm para o grupo ou para alguma criança individualmente.

Buscamos o mote do trabalho a ser realizado no grupo: uma criança pediu para "fazer escolinha", e encenamos, com a ajuda desta menina, que estava às voltas com a questão da inserção escolar, uma sala de aula, onde havia lousa, muitas cadeiras vazias enfileiradas e uma professora sorridente, que ela encarnava, dizendo coisas nem sempre compreensíveis, dirigidas ao fundo da sala, onde não havia ninguém. Em outro grupo, um aparelho de rádio foi construído e uma estação criada, tendo sido a programação escolhida pelas crianças. Havia uma mistura dos sons gravados das rádios e os sons criados por elas: algumas cantaram, outras falaram e algumas fizeram silêncio; as músicas e as notícias gravadas eram fragmentárias, mediadas pelo chiado dos espaços "vazios" entre as estações. A estação foi batizada de "Rádio Idéia". A semente desse projeto foi a notícia de um acidente aéreo irradiada pelo radinho de pilha de um pedreiro, que trabalhava em frente à sala de atendimento. Todas as crianças foram atraídas pelo som do radinho e levadas à janela com ares de curiosidade.

A arte é a matéria-prima dos ateliês. As histórias que serão tecidas podem colocar ênfase na música, na pintura, poesia ou teatro. Pretendemos a partir de uma letra escrever um texto, de um ruído compor uma música, de um traço fazer um desenho. O trabalho de coordenar a atividade situa-se sobre o fio de uma navalha, sendo que de um lado habita a precipitação, a antecipação do adulto que pode solapar um movimento de uma criança, e de outro uma espera exagerada e prolongada, esgarçando a atenção das crianças. Sendo este profissional humano, não seria nem preciso dizer das "escorregadelas" para um lado ou para o outro que acontecem no cotidiano do trabalho. Sobre o fio da navalha está o contexto ideal de intervenção: uma atenção afiada aos movimentos das crianças e entradas pontuais para ajudá-las a realizar aquilo que tomamos como um pedido, suportando o fato de que o resultado do trabalho terá as marcas de sua loucura; dizendo de outro modo, sem querer fazer por ela, para que sua produção satisfaça parâmetros próprios3.

A posição subjetiva do profissional que coordena o ateliê é como a de um caçador de pérolas: muito esforço, dedicação e desejo estarão em jogo para que não se desista e para que se mantenha a esperança de que o trabalho terá por fim efeitos importantes, por mais que eles não sejam imediatos; muitas conchas serão abertas até que uma pérola seja encontrada, e aquele que insiste nesta busca acaba por descobrir em todas as conchas algo de precioso. De um gesto, um movimento poderá advir, assim como de uma palavra, uma frase poderá ser elaborada. É preciso estar em condição de apostar e com a disponibilidade de contribuir para alguma construção e criação.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

KUPFER, M. C. M. (1996) "A presença da Psicanálise nos dispositivos institucionais de tratamento da psicose". Estilos da clínica, Instituto de Psicologia, P. 18-33, ano 1, nº 1.         [ Links ]

MANNONI, M. (1995) Amor, Ódio e Separação.Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

 

NOTAS

1 "A estrutura em jogo pode ser comparada a de uma frase melódica sem repouso na tônica, o que eqüivale a uma frase sem ponto final. A falta de ponto final, de uma pausa no enunciado, de um momento de conclusão, impede a emergência de sentido. (...) falta à criança psicótica o equivalente a esse ponto final"(KUPFER, M. C. M., 1996).

2 Aposta no sujeito, na possibilidade de a criança se posicionar frente a uma demanda.

3 "A criatividade do paciente pode ser-lhe roubada com extrema facilidade pelo terapeuta que sabe demais", (WINNICOTT apud MANNONI, M., 1995).