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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.3 no.5 São Paulo  1998

 

ARTIGO

 

Desejo e aprendizagem na criança: o conhecimento como uma significação fálica possível1

 

Desire and learning of the child: the knowledge as a possible phallic meaning

 

 

Sàndra Francesca Conte de Almeida

Professora-Doutora, Coordenadora do Laboratório de Psicogênese do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília. Psicanalista

 

 


RESUMO

Tal como no Complexo de Édipo, vivenciado no núcleo da estrutura de parentesco, a relação que caracteriza a aquisição do conhecimento, pela criança, na aprendizagem escolar, pode ser interpretada desde as suas funções imaginária (a relação transferencial especular educador/aluno), simbólica (o objeto de conhecimento enquanto conhecimento do Outro, inserido na linguagem e na cultura) e real (a ausência de garantias que marca o "impossível" da educação tanto quanto a impossibilidade radical de satisfação do desejo - furo do real no corpo pulsional).
A autora postula a tese de que a aquisição do conhecimento, sustentada pelo desejo de saber, torna-se uma das significações fálicas possíveis, inscrita na ordem simbólica, dependendo da posição subjetiva da criança diante do desejo do Outro, representado, imaginária e simbolicamente, pela figura do professor.

Desejo - aprendizagem - Psicanálise


ABSTRACT

The author stands that the acquisition of knowledge, sustained by the desire of knowing, becomes one of the possible phallic significations, written down on the symbolic order, depending on the subjective position of the child towards the Other desire, which is represented, imaginary or simbollically, by the teacher's image.

Desire - knowledge - Psychoanalysis


 

 

Pretendo apresentar, neste ensaio, algumas construções teóricas sobre o desejo da criança, no processo das aprendizagens escolares, com base na leitura e interpretação de alguns conceitos psicanalíticos, em Freud e Lacan.

O foco de meu interesse não é o de discutir, neste momento, as possibilidades e limites da "aplicação" da psicanálise ao campo da educação, questão amplamente abordada, na atualidade, por inúmeros autores psicanalíticos, cujas posições nem sempre são convergentes. Uns apontam a impossibilidade radical de uma pedagogia psicanalítica, outros defendem uma educação de inspiração psicanalítica e alguns indicam os benefícios de uma leitura e de uma escuta psicanalítica do processo e da relação ensino-aprendizagem. Acredito, particularmente, que esta última posição permite uma articulação teórica bastante promissora entre os dois campos de conhecimento, isto é, entre a psicanálise e a educação, e que as reflexões e os novos sentidos daí resultantes podem resignificar, desde uma ordem simbólica, a prática pedagógica e o cotidiano das relações intersubjetivas professor-aluno. Interessa-me, sobretudo, a leitura psicanalítica do campo pedagógico e educativo que interroga sobre o desejo de saber do aluno, em sua relação com o desejo de ensinar do professor.

Não se trata, então, nesta perspectiva, de tornar o educador um analista, como era o desejo de Anna Freud, nem de dogmaticamente enclausurar a psicanálise no setting analítico. A compreensão do sujeito humano como um ser de linguagem, efeito dos significantes do Outro e da cultura, e sendo ele mesmo produtor de discursos, permite-me fazer uma interpretação das relações entre a psicanálise e a educação tomando como campo operatório ou de referência o assujeitamento de ambas às leis de funcionamento da ordem simbólica, ou dito de outro modo, às leis da linguagem, da palavra, enquanto condição de produção do sujeito, visto que, para Lacan, o inconsciente é estruturado como uma linguagem.

Por outro lado, é a própria ordem simbólica que nos introduz no campo do desejo. Desejo este que se desdobra e se desloca, metonimicamente, na sincronia das palavras e na diacronia das vivências psíquicas, as mais variadas e surpreendentes. A criança somente se constituirá como sujeito através do Outro, que acolhe a sua palavra e reconhece o seu desejo. Pode-se situar aí, na questão do reconhecimento do desejo infantil, ao mesmo tempo um recobrimento e uma diferença de posições, entre o educador e o analista. Para Di Ciaccia (1997), o educador pode reconhecer o desejo da criança veiculado pela palavra dita e o analista reconhece o desejo pela palavra não dita, o sintoma, por exemplo.

Abordar o desejo da criança no processo de aprendizagem exige, metodologicamente, que eu explicite, mesmo que rapidamente, alguns conceitos que situam-se no cerne da ação educativa, quais sejam: os de aprendizagem, de conhecimento e de mediação do conhecimento. Após defini-los, espero conseguir articulá-los a algumas formulações próprias do campo psicanalítico, de modo a demonstrar minha interpretação de que o processo de apropriação do conhecimento, via aprendizagem escolar, inscreve-se nas instâncias do imaginário, do simbólico e do real. Tal processo faz sentido para a criança apenas na medida em que produz cadeias de significação, que são apre(e)ndidas, ignoradas ou recusadas tanto em função de uma estrutura consciente e objetivante, de natureza epistêmica, quanto de uma lógica inconsciente e subjetivante, de natureza epistemofílica, que tem a ver com as matrizes vinculares primitivas da criança, atualizadas na relação transferencial com o educador.

Se tomarmos o referencial da psicologia genética, cujos representantes mais ilustres são Piaget, Vygotsky e Wallon, veremos que o papel do outro social, representado pelo educador, por exemplo, é de fundamental importância no processo de transmissão (ensino) e de aquisição (aprendizagem) do conhecimento. Este é definido por Pain (1991 como "a organização operatória de um código, isto é, as regras pelas quais se pode gerar significado" (p.80). A relação do sujeito que aprende com o objeto de conhecimento não é direta, mas mediada, envolvendo sempre uma situação de interação social. Na escola, a mediação do conhecimento é tarefa e dever do professor, que toma para si a responsabilidade do ato pedagógico. Desde este ponto de vista, psicológico, a aprendizagem pode ser definida como um processo em que a criança adquire informações, conhecimento, habilidades, atitudes, crenças, valores, etc, como resultado de uma interação mediada com a realidade histórico-cultural.

Temos, então, no processo de ensino e de aprendizagem, uma relação triangular, cujos protagonistas são o professor, o aluno e o conhecimento, enquanto objeto que circula na estrutura social. Tal como no Complexo de Édipo, vivenciado no núcleo da estrutura de parentesco, a relação que caracteriza a aquisição do conhecimento, pela criança, na aprendizagem escolar, pode ser interpretada desde as suas funções imaginária (a relação transferenciai especular educador/aluno), simbólica (o objeto de conhecimento enquanto conhecimento do Outro, inserido na linguagem e na cultura) e real (a ausência de garantias que marca o "impossível" da educação tanto quanto a impossibilidade radical de realização do desejo - furo do real no corpo pulsional).

Mas, como se apresenta, em Freud e em Lacan, a formulação sobre o desejo?

Em trabalho publicado há algum tempo (Almeida, 1993), apontei que na teoria freudiana o desejo toma como modelo a primeira experiência de satisfação, sendo que sua gênese encontra-se no reinvestimento psíquico de um traço mnêmico de satisfação ligado à identificação de uma excitação pulsio-nal. Para Freud (1987), "um componente essencial dessa vivência de satisfação é uma percepção específica (a da nutrição, em nosso exemplo) cuja imagem mnêmica fica associada, daí por diante, ao traço mnêmico da excitação produzida pela necessidade. Em decorrência do vínculo assim estabelecido, na próxima vez em que essa necessidade for despertada, surgirá de imediato uma moção psíquica que procurará recatexizar a imagem mnêmica da percepção e reevocar a própria percepção, isto é, restabelecer a situação da satisfação original. Uma moção dessa espécie é o que chamamos de desejo; o reaparecimento da percepção é a realização do desejo, e o caminho mais curto para essa realização é a via que conduz diretamente da excitação produzida pelo desejo para uma completa catexia da percepção. Nada nos impede de presumir que tenha havido um estado primitivo do aparelho psíquico em que esse caminho era realmente percorrido, isto é, em que o desejo terminava em alucinação"(p. 516).

Tem-se, então, na concepção freudiana do desejo, a compreensão de que este é um processo psíquico, interno, dinâmico, distinto da necessidade e que não depende de um objeto externo, concreto, real, para a sua realização. Assim é que as formações do inconsciente, tais como os sonhos e os sintomas, são considerados por Freud como realizações de desejos inconscientes.

Isto porque o desejo, em Freud, como lembram Laplanche e Pontalis (1981), refere-se, fundamentalmente, ao desejo inconsciente, cuja tendência de realização, em busca do objeto, segundo as leis do processo primário, procura restabelecer os signos ligados às primeiras experiências de satisfação.

Em Lacan, o desejo advém entre a necessidade e a demanda, diferenciando-se radicalmente de ambas. A necessidade (natural) satisfaz-se com um objeto específico (e real); a demanda é sempre uma formulação (situada no campo da palavra e da linguagem) endereçada ao outro, e o objeto, neste caso, não é essencial, pois a demanda articulada pelo ser falante é sempre, no fundo, demanda de amor. O desejo é irredutível à necessidade e à demanda: o objeto do desejo não é um objeto real, como na necessidade, mas um objeto faltoso, denominado por Lacan objeto a, objeto causa do desejo, ligado ao fantasma (às fantasias) do sujeito; sendo irredutível à demanda, pois "procura se impor sem levar em conta a linguagem e o inconsciente do outro e exige ser reconhecido absolutamente por este outro" (Laplanche & Pontalis, 1981, p. 122). Pode-se dizer, ainda, que o desejo nasce além da demanda, lá onde existe o registro de uma falta na satisfação da demanda.

Para melhor demonstrar o advento do desejo, em Lacan, vou retomar um exemplo amplamente divulgado na literatura psicanalítica, que ilustra bem como o desejo tem sua inscrição no registro de uma relação simbólica com o Outro. A situação descreve, ao mesmo tempo, o surgimento da pulsão oral, com apoio na necessidade.

A mãe que responde, com o peito ou com a mamadeira, aos gritos do bebê, está interpretando estes gritos ou outras manifestações corporais e emocionais do filho como uma demanda, isto é, como um apelo à satisfação. Ao supor na criança uma demanda, a mãe a está inscrevendo no campo da palavra e da linguagem, ou seja, na ordem do universo simbólico de seus significantes e de seu próprio desejo. Torna-se compreensível, a partir deste exemplo ilustrativo, a afirmação de Lacan de que o desejo é sempre desejo do Outro. Mas a criança somente acederá ao desejo propriamente dito se isolar a causa de sua satisfação, isto é, o objeto causa do desejo: o seio materno. O isolamento ou o recorte do objeto causa do desejo só poderá se realizar na medida em que a criança se vê frustrada dele, o que significa dizer que a mãe deve permitir que se instale uma falta na satisfação da demanda (Chemama, 1995)2. O desejo advém, portanto, como falta de um objeto e este objeto é para sempre perdido, o que implica que esta falta é estrutural e constituinte do sujeito desejante. Esta falta não pode ser preenchida por nenhum objeto real, "pois ao tentar significar seu desejo, o sujeito o faz pela mediação da demanda, a qual introduz uma divisão entre o que é desejado, fundamentalmente, e o que se faz ouvir deste desejo na demanda" (Almeida, 1993, p. 37). É a linguagem, portanto, vinda primeiramente da mãe e depois do pai, quem efetua este corte simbólico que separa o sujeito do objeto de seu desejo e que constitui o desejo como falta. O que Lacan denomina fantasma é a representação imaginária do objeto perdido do desejo, desdobrado metonimicamente em objetos substitutos, em objetos que causam e sustentam o desejo: objeto a, tais como o oral, o anal, o escópico, o fálico, enquanto objetos da fantasia.

A vivência psíquica que acabo de descrever, na qual a criança se constitui como sujeito no campo do Outro, em que seu desejo se estrutura no desejo da mãe, tem seu registro no Complexo de Édipo, descrito por Freud e retomado por Lacan3 como tendo um valor estruturante na determinação e na posição do desejo do sujeito, em função de sua passagem pela castração. O Édipo é contemporâneo, em seu primeiro tempo, segundo a formulação lacaniana, a um momento específico da vida psíquica da criança, em que esta já se esboça como um sujeito, pois acaba de sair da identificação primordial à imagem do outro, processo vivido no Estádio do Espelho (Lacan, 1966).

O Estádio do Espelho é uma metáfora, empregada por Lacan, que representa "a matriz simbólica onde o Eu (Je) se precipita em uma forma primordial e o eu (moi) assume seu princípio constitutivo de alienação no imaginário. A metáfora do espelho é uma experiência estruturante do sujeito, pois permite não apenas o reconhecimento de sua imagem própria como também a do outro, o seu duplo, o alter-eu" (Almeida, 1996).

Retornando ao Complexo de Édipo, vou expor, de forma bastante sucinta, a leitura que Lacan faz deste Complexo, descrita por ele enquanto uma estrutura intersubjetiva. O Édipo lacaniano constitui um momento de construção de uma lógica significante, que permite o acesso do infans à categoria de sujeito (desejante), a partir de sua inscrição nas instâncias do imaginário, do simbólico e do real, tornadas operatórias em função da relação do sujeito ao falo e à Lei, isto é, da relação do sujeito à castração.

Lacan descreve três tempos (ou momentos) lógicos do Édipo.

O primeiro tempo é aquele em que a criança, em função da relação fusional com a mãe, se identifica ao objeto suposto preencher a falta do Outro, constitutindo-se, então, no falo materno. Esta posição imaginária de identificação fálica só acontece porque nenhum elemento terceiro, neste primeiro momento, parece mediar a relação especular mãe-criança. O desejo da criança assujeita-se radicalmente ao desejo do Outro. Constitui-se, aqui, imaginariamente, a instância do Eu Ideal, que tem para o sujeito uma função e um valor essencialmente narcísico, dando conta de uma vivência psíquica de uma suposta completude e perfeição. A questão resume-se, então, para Lacan, neste primeiro tempo, à dialética do ser, onde a criança é o falo e a mãe o tem.

O segundo tempo do Édipo se inicia com a intrusão paterna na relação dual mãe-criança, sob o duplo registro da interdição: a privação e a frustração. O pai, para o qual se dirige então o desejo da mãe, frustra a criança, na medida em que ela se vê destituída da sua certeza fálica imaginária; ao mesmo tempo, priva a mãe do suposto objeto de seu desejo: o falo-criança. Instala-se, neste segundo tempo edípico, a rivalidade fálica da criança com o pai, o que a leva a se confrontar com a Lei do Pai, ao descobrir o Outro do outro, ou seja, que o desejo da mãe está submetido ao desejo do Pai, elevado à condição de Outro, suposto, então, ter o falo. Lacan introduz, neste segundo tempo, a dialética do ter (ter ou não ter o falo), assim resumida por Dor (1989): "...a criança é, de agora em diante, forçada pela função paterna a aceitar, não somente não ser o falo, mas também não tê-lo, assim como a mãe, dando-se conta de que ela o deseja lá onde ele é suposto estar e onde torna-se, então, possível tê-lo" (p. 87). A passagem do ser ao ter é fundamental na posição da criança em relação ao falo e abre o espaço para a incidência da castração simbólica, cuja dialética irá se completar no terceiro tempo do Édipo.

É no último tempo que se completa, na criança, o essencial da castração simbólica: a inscrição psíquica do reconhecimento da castração da mãe e de todo outro sujeito, inclusive o pai, ou seja, o reconhecimento da falta no Outro. A castração simbólica só é possível em função da Metáfora Paterna, tornada operatória pelo Pai Simbólico, aquele que representa a Lei, o código que regulamenta a cultura. A Metáfora Paterna constitui-se em uma operação de substituição significante, na qual o desejo da mãe é substituído pelo Nome-do-Pai, o que induz a significação fálica, permitindo a instalação do falo na cultura, enquanto significante da falta. Na castração, ensina Lacan (1955), o objeto é imaginário (o falo) e a falta é simbólica. A falta relativa à castração significa, na realidade psíquica, a inscrição de uma dívida simbólica. É neste sentido que se pode compreender a saída do Édipo pela via das identificações com o Ideal do Eu, definido por Lacan como "uma constelação de insígnias" (in Bleichmar, 1984, p. 58), cuja função, essencialmente simbólica, é a de regular a estrutura imaginária do eu (eu ideal), as identificações e os conflitos que regem as relações do sujeito com os seus semelhantes.

Foi necessário este longo percurso para que eu possa tentar esclarecer a interpretação, dada no início deste texto, na qual estabeleço uma certa analogia entre a constituição do sujeito desejante e a posição da criança em situação de aprendizagem escolar.

O que permite à criança investir o objeto de conhecimento como algo prazeroso, satisfatório, é o desejo de saber7 que, em Freud, tem a sua origem na pulsão de saber, ou pulsão epistemofílica. Tendo, portanto, um registro pulsional, inscrito no real do corpo, os percursos da aquisição do conhecimento passam por vicissitudes, por modificações e sucessivas transformações. O caminho para o conhecimento não é linear, não é direto e escapa, freqüentemente, ao controle volitivo, consciente, dos sujeitos em relação, isto é, do professor e do aluno.

Em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, textro de 1905 Freud afirma que o que desperta a pulsão de saber, ou a atividade de investigação, na criança, são interesses práticos e não teóricos, relacionados ao saber sexual, mas "não é a questão da diferença sexual, e sim o enigma, de onde vêm os bebês?" (Freud, 1989, p. 182). Freud define, no mesmo texto, que a pulsão de saber "não pode ser computada entre os componentes pulsionais elementares, nem exclusivamente subordinada à sexualidade. Sua atividade corresponde, de um lado, a uma forma sublimada de dominação e, de outro, trabalha com a energia escopofílica. Suas relações com a vida sexual, entretanto, são particularmente significativas, já que constatamos pela psicanálise que, na criança, a pulsão de saber é atraída de maneira insuspeitadamente precoce e inesperadamente intensa, pelos problemas sexuais, e talvez até seja despertada por eles" (p. 182). Freud relaciona, assim, a pulsão de saber com a sublimação da pulsão de dominação, que tem a ver com a analidade, e com a pulsão de ver, de olhar.

Pode-se acrescentar que a pulsão de saber relaciona-se também com a oralidade e com o falo. Portanto, ao prazer de domínio, ao prazer de olhar, acrescentarei o prazer oral e aquele derivado da posse imaginária do falo. Para exemplificar, posso citar as relações freqüentemente estabelecidas entre comer e aprender, no caso da oralidade e sua relação com a aprendizagem: crianças que "devoram" livros ou que, obstinadamente, se negam a "ingerir" ou a "assimilar" determinados conceitos ou conteúdos. No que diz respeito ao falo, este, enquanto representante da falta, pode apresentar-se sob a forma de infinitos objetos substitutos, dentre os quais, o próprio saber, o conhecimento, investido libidinalmente, donde a relação entre atividade intelectual e sexualidade. Aliás, o sucesso escolar, para muitos alunos e professores, tem a ver com a posse imaginária do objeto fálico, enquanto o insucesso é, via de regra, vivido por ambos como uma ferida narcísica, como signo de castração.

É, portanto, em Freud, a dinâmica pulsional que dá origem à atividade intelectual de investigação, ao desejo de saber, enquanto atividade sublimada de pulsões relacionadas à sexualidade. Em Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância, Freud (1970) aborda novamente a questão da curiosidade infantil e afirma que as perguntas feitas pelas crianças, atitude na qual elas demonstram um "prazer incansável", são perguntas empregadas em substituição às questões concernentes à sexualidade.

Assim como as pulsões sexuais propriamente ditas, a pulsão de saber pode sofrer variações que incluem o sofrimento psíquico na campo da aprendizagem, tais como a inibição intelectual neurótica, o bloqueio das capacidades cognitivas, as dificuldades eletivas de aprendizagem, o não-aprendizado. Tais vicissitudes são possíveis e ocorrem em função da posição subjetiva do sujeito diante do objeto de desejo, ou melhor dizendo, de sua relação com a falta de objeto. Tal posição, que tem a ver com o Édipo, será atualizada na relação professor-aluno, via transferência, no seio da qual se realizará o jogo das identificações e a trama dos conflitos edípicos.

Vimos que a passagem pela castração, sob o efeito da operação de substituição significante introduzida pela Metáfora Paterna, produz a significação fálica, isto é, permite que o falo, como significante da falta, possa assumir outras significações no campo simbólico, no campo da linguagem, podendo ser substituído por outros objetos da cultura que representem a falta.

Assim sendo, a aquisição do conhecimento, sustentada pelo desejo de saber, torna-se uma das significações fálicas possíveis, inscrita na ordem simbólica, dependendo da posição subjetiva da criança diante do desejo do Outro, representado, imaginária e simbolicamente, pela figura do professor.

A relação inter-subjetiva professor-aluno pode (re)produzir, segundo as leis do funcionamento do inconsciente, uma relação transferencial imaginária, especular, na qual o aluno-falo submete-se à Lei do desejo do mestre, para ser reconhecido e amado, enquanto Eu Ideal, por este Outro suposto tudo saber, tudo poder. Ao projetar no aluno as suas fantasias (de reparação, de onipotência, ou quaisquer outras) e ao "seduzí-lo" para que esse lhe responda desde uma posição subjetiva de assujeitamento, o professor estará atualizando, ele mesmo, a sua própria condição subjetiva face ao desejo e à castração. Trata-se aqui, obviamente, de uma lógica inconsciente, que independe das condições objetivas da atuação pedagógica e que escapa, portanto, ao controle dos pares em relação. O que está em jogo é o que representa este ou aquele aluno no inconsciente do professor, na sua "constelação de insígnias", e de que lugar, imaginário ou simbólico, ele responde ao desejo de saber da criança ou à sua obstinação de nada querer saber.

Em uma relação imaginária, de amor ou de ódio5, não há espaço para a circulação do objeto de conhecimento, enquanto objeto simbólico, representante da falta de saber do aluno e da falta de poder do professor; objeto, portanto, independente dos personagens em cena. A mediação torna-se, então, problemática, se o objeto de conhecimento é tomado como objeto de rivalidade fálica imaginária. O saber, quando investido simbolicamente, vem operar no lugar da Lei, cuja função é de corte, de separação da relação dual professor-aluno. O professor que se recusa a abrir mão do seu suposto poder fálico aprisiona o aluno ao seu desejo, mantendo-o na condição de sujeito não desejante, impedido de construir novas significações fálicas no campo do Outro. Na nossa cultura, a relação imaginária dual que caracteriza a maternagem expressa-se, com freqüência, nos primeiros anos de escolarização, na substituição metafórica significante da nomeação dos professores, pelas crianças, de "tia" e "tio". É comum, também, nas práticas escolares, professores que, em nome de não traumatizar ou não frustar a criança, adotam atitudes cada vez mais permissivas em relação às aprendizagens dos alunos, tornando o conhecimento uma moeda desvalorizada, um representante do não-falo.

Se não estivesse apontando, aqui, uma posição subjetiva inconsciente, portanto não deliberada, esta seria, sem dúvida, uma das maiores violências cometidas pela escola: o não reconhecimento do desejo da criança como desejo do Outro.

Da mesma forma que o desejo se constitui no campo simbólico-discursivo do Outro, no reconhecimento da falta, da perda, no Édipo, o desejo de saber do aluno e o seu acesso ao conhecimento está ligado à sua posição diante da castração. Escreve Levy (1996) que "conforme sua posição são possíveis construções como a sublimação ou construções como os sintomas" (p. 139).

Por outro lado, se é verdade que o professor se confronta, de fato, na prática pedagógica, com o real da educação, no sentido da impossibilidade de qualquer garantia de uma "boa educação", o aluno se confronta com o real do desejo de saber sempre insatisfeito.

Concluindo, diria que, da parte do professor, este poderia se abster de imaginarizar o real, pois, de qualquer forma, o encontro com o real é inevitável e somente o simbólico pode produzir alguma significação diante do impossível de ser nomeado. Como lembra Laberge (1997), retomando Lacan, no Seminário 1, Os escritos técnicos de Freud, "para evitar a mera confusão a respeito do real, impõe-se o primeiro passo: partir da ordem simbólica, pois, conforme Lacan, é dali que as outras ordens, imaginária e real, tomam seu lugar e se ordenam". Trata-se, então, para Laberge, de "reconhecer a anterioridade do simbólico, anterioridade lógica da necessária determinação psíquica".

Assim sendo, pode-se entender porque as relações interpessoais imaginarizadas tendem a promover, na criança, modalidades sintomáticas de acesso ao conhecimento, seja pelo excesso de nada faltar, seja pela violência da palavra que lhe é negada, do desejo não reconhecido ou esmagado por imperiosas demandas, às quais à criança não pode se identificar, seja pela pulsão de saber ignorada ou interditada. Se não cabe ao professor promover a sublimação, por ser esta um processo inconsciente, quem sabe poderia ele fazer a experiência de escutar o desejo da criança, nos seus percursos os mais diversos: nas suas realizações de sucesso, nos fracassos, nos tropeços, na palavra tímida ou decididamente formulada.

No que concerne à criança, na medida em que ela puder resignificar a perda do objeto imaginário substituindo-o por objetos inseridos na cultura, objetos simbólicos, que não pertencem a ninguém, em particular, é que ela aprenderá que, por assim ser, pode-se tê-los ou não tê-los, tê-los e perdê-los, o que implica a constituição de uma cadeia significante com múltiplas possibilidades de sentido.

O desejo de saber, no entanto, terá que se haver, sempre, com uma dívida em relação ao Outro. Mas trata-se, aí, de uma dívida simbólica, cujo preço, por ser impagável na realidade material, produz efeitos psíquicos e laços sociais: produz, por exemplo, sujeitos na posição de ensinante e sujeitos na posição de aprendente, cuja relação intersubjetiva permitirá (ou não) a circulação do conhecimento, na cultura, como uma das significações fálicas possíveis.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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NOTAS

1 Trabalho apresentado no Congresso Internacional de Psicanálise e suas conexões - Trata-se uma criança. Escola Lacaniana de Psicanálise do Rio de Janeiro: Rio de Janeiro, agosto de 1998.

2 Chemama, R. (1995). Verbete désir. Dictionnaire de la Psychanalyse. Paris: Larousse.

3 O Seminário de Lacan, que apresenta as suas formulações sobre o Complexo de Édipo, Les formations de l'inconscient, de 1957-1958, é inédito no Brasil. Pode-se ter acesso a um resumo, elaborado por J.-B. Pontalis, publicado no Bulletin de Psychologie. 1957-1958, tomo XI, nos 4-5, pp. 293-296; 1957-1958, tomo XII, nos 2-3, pp. 182-192, n° 4, pp. 250-256 (As referências do resumo de Pontalis são indicadas por J. Dor (1989), em: Introdução à leitura de Lacan, Porto Alegre-. Artes Médicas).

4 Vou empregar o termo saber na acepção geral de conhecimento, sem a preocupação de estabelecer a diferença conceituai e clínica, entre ambos, desde o ponto de vista da teoria psicanalítica.

5 Bleichmar (1984) lembra que é preciso ter em conta que nem sempre a relação imaginária produz uma unidade narcísica equivalente à criança/falo-mãe/fálica. Portanto, a criança pode não se constituir como falo.