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Estilos da Clinica

Print version ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.3 no.5 São Paulo  1998

 

EXPERIÊNCIAS INSTITUCIONAIS

 

Sobre a clínica da derdic1

 

About the derdic clinic

 

 

Angela Vorcaro

Psicanalista, membro da equipe técnica da Clínica da DERDIC

 

 


RESUMO

Este trabalho apresenta uma instituição que propõe um tratamento possível para crianças com distúrbios do desenvolvimento no qual seja acolhida a singularidade do sujeito, apesar de sua institucionalização.


ABSTRACT

This paper presents an institution that sustains a treatment for children with global developmental disorders, where the singularity of the subject can be held, despite the fact he is treated in an institution.


 

 

Apresentar uma instituição sugere a possibilidade de falar em nome de seus membros, supondo um discurso que os represente. Essa difícil tarefa talvez seja impossível quando se trata da Clínica da DERDIC2, que tem como princípio o esforço de sustentar a diversidade teórica e clínica de seus profissionais.

Considerando-se esta particularidade que fundamenta a DERDIC, vou me restringir a situar o movimento institucional no qual me engajo, mesmo que sua operacionalidade ainda seja, em certa medida, mais virtual do que efetiva e mais informal do que propriamente programática. Mas a importância desse movimento deve-se ao que o tratamento possível de crianças com distúrbios de desenvolvimento impõe: a interrogação sistemática das modalidades pelas quais a instituição trata e a conseqüente criação de meios que as transbordem, para que o acolhimento da singularidade do sujeito seja possível, apesar de sua institucionalização.

A Clínica da DERDIC atende à população de crianças e adultos, que manifesta distúrbios de linguagem e da fala, portanto, nas situações em que a condição de sujeito falante está interrogada, em patologias diversas que são normalmente categorizadas a partir da classificação médica, incluindo a surdez periférica e os ditos distúrbios de processamento auditivo central, o retardo de linguagem, a afasia, a disfluência, a dispraxia, as perturbações da voz, da escrita e leitura, etc. Independentemente do distúrbio de linguagem ser um dos elementos de um quadro global, como as síndromes neurologicamente definidas, os acidentes vasculares cerebrais, as ditas encefalopatias, ou mesmo as situações psíquicas graves, a relação do sujeito com a língua o constrange e a condição de não-falante ou de mal-falante define a procura de atendimento, na instituição.

Evidentemente, não é difícil constatar, esta condição de não-falante sobredetermina os outros aspectos do desenvolvimento, no caso de uma criança, ou do reconhecimento social, no caso do adulto: nos dois casos, o limite da fala causa processos de exclusão seja da escola, do trabalho, e, muitas vezes, do laço social.

Além do compromisso com o atendimento clínico, a DERDIC está envolvida com a formação de profissionais e de pesquisadores: em grande parte fonoaudiólogos, já que é ali que os alunos de fonoaudiologia da PUC fazem estágios curriculares, mas também médicos, psicólogos e assistentes sociais se especializam ou pesquisam na instituição.

Tomar a clínica como lugar privilegiado para a formação de especialistas e de pesquisadores engendra dificuldades, não só porque tradicionalmente, na Universidade, estas atividades ocorrem em campos distintos, mas também porque o saber da clínica não coincide com a elaboração científica. Como Michel Foucault nos ensina, a clínica é uma prática discursiva que não responde aos critérios formais da ciência, mas comporta um acúmulo, apenas organizado, de observações empíricas, de tentativas e de resultados, de prescrições terapêuticas e de regulamentações institucionais. Esse conjunto de elementos, formado de maneira regular por uma prática discursiva, é chamado de saber.

Transformar o atendimento clínico em um campo de pesquisa convoca os profissionais a se submeterem a cada caso clínico, situando-o como lugar de interrogação sobre as teorias e sobre sua transmissão. Mais que isso, convoca os profissionais a suportarem a convivência com campos disciplinares distintos, testemunhando as ocorrências da clínica, sustentando ou problematizando conceitos que lhe são correlativos e expondo-se à refutação.

Para isso, é necessário que as ocorrências perturbadoras da clínica sejam acolhidas pelo clínico que as testemunha, para que elas possam constituir um obstáculo à decisão interpretativa imediata do agente da clínica e, assim, interrogar o discurso teórico que a referenda. É o que pode fazer, da clínica, um lugar propício à problematização da estabilidade de conceitos, permitindo a pesquisa e a formação dos profissionais.

Entretanto, as práticas clínicas dificilmente conseguem suportar a tensão entre a manifestação de um sujeito e as teorias que enquadram a sua observação e a sua escuta, fazendo escolhas de recrutamento de dados que as reproduzem, impedindo o discernimento do detalhe em que se aloca a singularidade que cada caso coloca fora da pauta. A decorrência desse impedimento é que a tensão entre o singular e o universal, operante na clínica, é abolida em função do que já está categorizado. O esquecimento da tensão entre o singular e o universal privilegia o particular que as teorias nos oferecem, fazendo da clínica um dispositivo de obturação do desconhecido e não uma possibilidade de recolher a singularidade através do testemunho da clínica.

Constituir os meios para que a singularidade do caso possa ser surpreendida e acolhida implica interrogar a experiência e deslocar questões para que, nos termos de Jean Allouch, a consideração do detalhe do caso sirva à reelaboração do saber clínico. O método clínico torna-se, nesta perspectiva, tributário da consideração do caso como constituindo um método próprio de inscrição de um sujeito na linguagem. A abordagem clínica trata de decifrá-lo.

Os investimentos clínicos relativos às patologias de linguagem são considerados hoje, na clínica da DERDIC, a partir da necessidade de articulação de diversas práticas, oriundas de campos conceituais e de disciplinas diversas. Atesta-se, assim, a interpenetração dos campos da neurologia, foniatria, pedagogia, psicologia, fonoaudiologia e a insuficiência de cada um deles isoladamente para explicar e/ou tratar as manifestações no campo da linguagem inscritas sob a rubrica do patológico.

Tal procedimento, entretanto, mostra que a transformação do campo diferenciado e circunscrito de cada disciplina em uma prática suficiente para lidar com o âmbito da problemática em pauta, traz, na prática clínica, problemas de difícil superação. Afinal, o estabelecimento de uma organização do trabalho clínico a partir de diferentes pressupostos, ocasiona uma série de negociações e secessões que acabam por constituir práticas segmentadas ou superpostas. No exercício da clínica, a idealização da multidisciplinaridade não chega a estabelecer relações entre campos conceituais, não atinge uma articulação teórica consistente nem mesmo consolida um debate que permita explicitar diferenças conceituais que delimitam e determinam a diversidade das práticas clínicas, como o atributo "multidisciplinar" poderia sugerir.

Apesar da consideração efetivamente partilhada entre os profissionais relativa à importância da articulação de campos conceituais distintos, seu efeito é o enclausuramento das clínicas em seus próprios campos e o desenvolvimento de estratégias institucionais que as garantam.

O pressuposto partilhado na DERDIC da necessidade da multidisciplinaridade encontra, na experiência clínica, obstáculos que nem sempre são abordáveis. Longe de serem acontecimentos aleatórios, estes obstáculos podem ser demarcados quando nos detemos sobre o pressuposto de multidisciplinaridade: os obstáculos são efeitos do desdobramento desse pressuposto. Afinal, o modelo multidisciplinar não é uma mera "modalidade de relação" entre profissionais. Paradoxalmente, ele configura uma modalidade de clínica que propõe um modo de conceber e de privilegiar a abordagem patológica através da exclusão de qualquer tomada de posição que delimite a concepção e privilégio conferido à causalidade patológica e à proposta terapêutica. O modelo multidisciplinar supõe uma espécie de "democracia" e de consenso capaz de orientar toda definição diagnostica e terapêutica: - supõe que a soma da eficiência no exercício de cada saber é suficiente para "cercar" e "dominar" a resistência imposta pela clínica; supõe a presença de uma referência comum reguladora das relações entre teorias e entre as práticas delas decorrentes que seria aplicável à compreensão e hierarquização dos determinantes de cada quadro clínico, supõe, ainda, que as relações institucionais estão imunes à relações de poder e à ideologia. Enfim, a multidisciplinaridade se sustenta na promessa da possibilidade de totalizar sintonicamente, a cada caso clínico, os saberes sobre o organismo, o psiquismo, a inteligência e a linguagem.

O limite desta perspectiva é que os diferentes campos teóricos que se quer reunir pressupõem seres humanos em concepções incompatíveis, que se excluem mutuamente. Assim, os campos teóricos diferenciados fazem furo no ideal de clínica proposto pela multidisciplinaridade.

A persistência da demanda institucional de um modelo multidisciplinar deixa entrever insuficiência e dispersão dos saberes pela ausência de balizas que permitam evidenciar o regime das relações que regulam a causalidade e o funcionamento das patologias de linguagem. Assim a necessidade do recurso à multidisciplinaridade atesta que a singularidade da clínica opõe resistência aos saberes disciplinares. Afinal, o título de multidisciplinar pressupõe, em seu próprio nome, a insistência de uma falta: ele atesta, a priori, a impossibilidade e a insuficiência de qualquer disciplina diante da resistência que a clínica oferece à compreensão.

Se por este prisma constata-se que a multidisciplinaridade é artefato imaginário sustentado pelo ideal de totalização dos saberes e de seu suposto efeito de domínio pleno da experiência clínica, ela incide, na clínica, com a veemência de uma ficção necessária.

Entretanto, a aposta de muitos profissionais da DERDIC, é que ela possa transbordar este limite e ganhar outro estatuto, para além de sua manutenção nesse vértice imaginário. Afinal, os desdobramentos deste vetor são bem conhecidos no quotidiano institucional, apesar de aparentemente contrários à multidisciplinaridade: o apagamento de alguns saberes, pela adesão descomprometida a outros ou a defesa cega de saberes encarnados.

Trabalhamos, portanto, na via da explicitação da especificidade do objeto constituído em cada um dos campos conceituais, para podermos, na análise de suas diferenças, conferir estatuto simbólico às práticas multidisciplinares e portanto, ultrapassar sua privilegiada produção de mal estar e de malentendidos.

É desta perspectiva que nos propomos a desencadear a abordagem efetiva da diferença, conferindo-lhe estatuto de lugar legítimo à interlocução. Somos, assim, convocados a considerar a singularidade que emerge na clínica à luz da especificidade de cada campo conceituai para discernir os abismos que separam os territórios dos saberes, esgarçando a continuidade imaginária das disciplinas para problematizar efetivamente nosso desconhecimento, nossos equívocos, nossos encobrimentos diante do que os enigmas da clínica nos engasta.

Abordar no vértice simbólico o ideal de clínica pressuposto na multidisciplinaridade implica que os profissionais se detenham na especificidade teórica de cada campo disciplinar ao se depararem com a estranheza que a clínica oferece à compreensão, para, desse lugar, situar os limites de nosso conhecimento. Tentamos criar condições de discussão a partir da consideração da diferença e da desarmonia dos campos conceituais e não mais a partir do ideal do somatório ou da importação imediata de conceitos de campos distintos.

Supomos, enfim, que qualquer perspectiva de interlocução desses diferentes domínios deve buscar a explicitação de cada um de seus campos conceituais diante do confronto provocado pela singularidade e resistência da clínica. Deste lugar, as diferenças podem, não apenas tornarem-se geradores da discussão de critérios que orientam as intervenções clínicas, mas, ainda, interrogar o que nossas práticas têm de aleatório, como diz Lacan.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALLOUCH, J. (1995). Letra a letra, traduzir trancrever, transliterar, Rio de Janeiro, Cia de Freud.         [ Links ]

FOUCAULT, M. (1986). A arqueologia do saber, Rio de Janeiro, Forense Universitária.         [ Links ] ACAN, J. (1977). Ouverture de la section clinique. Paris, Ornicar?.         [ Links ]

 

NOTAS

1 Trabalho apresentado no Congresso Estadual de Instituições para Crianças com Distúrbios Globais do Desenvolvimento (DGD), promovido pelo Instituto de Psicologia da USP - Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida, em Julho de 1998.

2 A Clínica da DERDIC é parte da Divisão de Educação e Reabilitação dos Distúrbios da Comunicação da PUC-SP.