SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.4 número6A infância na cidade de Gepeto ou possibilidades do neopragmatismo para pensarmos os direitos da criança na cultura pós-modernaA pastoral educativa índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.4 no.6 São Paulo jul. 1999

 

DOSSIÊ

 

A infância não é coisa de crianças

 

Infancy is not a child's game

 

 

Patricia Gherovici

Psicanalista em Philadelfia - USA

 

 


RESUMO

"No princípio é o logos",: reza o Evangelho, um princípio que antecede no tempo a chegada do infante no mundo. Etimologicamente, infans refere-se a alguém que não fala. Seria o infante um humano antes de ser um humano? Se a infância é um estádio no qual a linguagem está presente mesmo antes que a fala se desenvolva, é interessante explorarmos o fenômeno do autismo, no qual esta faculdade da fala aparece ausente ou, ao menos, deficiente. O autismo é, além disso, uma manifestação que parece desafiar esta primazia da linguagem.

Infância; autismo; aquisição da fala; Temple Grandin


ABSTRACT

"In the beginning was the Word" goes the Gospel, a beginning that precedes the temporary arrival of the infant to the world. Etymologically, infans refers to someone who does not speak. Is an infant a human before becoming human? If infancy is the stage where language is already present before speech develops, it appears interesting to explore the phenomenon of autism in which speech is absent or at least deficient. Autism is also a manifestation that seems to defy this primacy of language.

Infancy; autism; talk acquisition


 

 

Com o álibi de uma filha de 5 meses de idade, tive a desculpa para comprovar em minha limitada experiência empírica que, da mesma forma que no resto do mundo, nos EUA os adultos deleitam-se falando com os bebês. De quê? Aqui, o primeiro problema. É uma difícil tarefa conversar com alguém ainda incapaz de falar. Parece que não sabem bem o que dizer a um bebê. O famoso ''Hello!" (Olá!) é bastante popular. Tudo é questão de tomar o bebê nos braços e exclamar Hello! Uma e outra vez: Hello... hello ...hellll-ooooo! Como se estivessem ao telefone, mas não muito seguros de que a linha está conectada corretamente. Em seguida vem uma pergunta. Uma inevitável pergunta que é emitida em uma voz aguda, caricaturesca, um falsete que os adultos freqüentemente adotam quando falam a um bebê. O repertório de perguntas não é muito extenso nem muito criativo: - Quem é este lindo bebê? - Quem tem este sorriso tão lindo? - De quem é este narizinho tão bonito? A pergunta é repetida ao menos duas vezes. Diante do silêncio que parece ser a única resposta do bebê, enquanto a pergunta é repetida uma e outra vez, o tom de voz do adulto chega aos agudos. Em seguida, algo frustrado, o adulto em questão responde pelo bebê usando uma interessante enunciação, na qual, pelos lábios do adulto, o bebê fala na primeira pessoa do singular, ou na segunda pessoa do singular ou ainda na terceira do singular. Em outros casos, a comunicação adulto-infante é reduzida a seus elementos mais básicos, e o adulto imita desajeitadamente as possíveis derivações das primeiras elocuções do bebê: cuchi-cuchi-cu, gu-gu-da-da, bu-bu. Este rudimento de idioma foi chamado pelos lingüistas motherese (mamanhês), e não importa quão regressiva esta produção seja, as crianças conseguem fazer-se de surdas e filtram bem, aprendendo a usar a linguagem utilizada pelos adultos, entre adultos, e não com elas.

 

NO PRINCÍPIO É O LOGOS

Ainda que os bebês não nasçam falando e não aprendam a falar senão após longos meses, a partir das palavras com as quais seus pais falam deles mesmo antes de concebê-los, passando por aquelas que se dirigem a eles ainda in utero, ao grito primeiro e primordial com o qual iniciam sua vida, ao que se seguem os choros que serão decifrados por outros, evidenciam, ainda antes de adquirir a fala, a presença e primazia da linguagem para o infans. As primeiras vacilantes elocuções do bebê serão codificadas por aqueles que o rodeiam como uma maneira de expressar-se lingüisticamente, elevadas assim ao nível de palavra. Em especial a mãe, que, em uma curiosa tarefa de tradução, terá de opor e diferenciar o choro, que inicialmente é indiferenciado, em uma gama de variedades de modos de chorar que corresponderão a diferentes mensagens, estabelecendo assim um sistema de comunicação. Fome, sono, cansaço, etc. terão seu correspondente choro específico. Chorar não será já um grito, mas uma voz. Uma voz à qual a mãe outorgará um significado particular. O bebê aprenderá, como conseqüência, a chorar de maneira diferente, transformando, em sua passagem pela rede da linguagem, a necessidade em demanda.

Steven Pinker, discípulo de Chomsky e um dos representantes mais destacados da orientação pragmática em lingüística que predomina nos EUA, propõe que os humanos têm um "instinto lingüístico". Pinker afirma que o "instinto de aprender, falar e entender a linguagem" (1995, p.12) consiste na capacidade para usar símbolos, o que constitui um evento sem precedentes e separa de modo irrevogável o humano dos animais. No entanto, Pinker não consegue evitar a tentação de adotar uma posição darwiniana, na qual o humano tem uma tendência instintiva a adquirir a arte da comunicação assim como os pássaros tendem a cantar melodiosamente, e conclui que o humano é simplesmente um animal que, em vez de tecer como a aranha, fala. Claro que podemos concordar com a idéia de que o que caracteriza o humano, mas separa-o qualitativamente do reino animal, é sua capacidade lingüística, uma capacidade que supera a definição de "instinto" e, da mesma forma que a sexualidade humana, deve ser descrito como pulsão, reservando a denominação de instinto àquelas criaturas incapazes de fazer chistes1.

"No princípio é o logos", reza o Evangelho, um princípio que antecede no tempo à chegada do infante ao mundo. O filhote humano inicia seu processo de aquisição de linguagem muito antes de nascer. Um universo de linguagem precede a sua existência biológica. Ainda antes de ser concebido, antes de que o novo ser tenha sido formado no seio materno, um nome o aguarda, um nome que operará como portador e base para as idéias, projetos e fantasias conscientes e inconscientes de seus pais, formando a bagagem inconsciente que será determinante na sua subjetivação e estará contida nos significantes que lhe marcarão o corpo, criando assim seu destino.

 

COMUNICAÇÃO ANIMAL VERSUS LINGUAGEM HUMANA

Se a linguagem, e não a mera comunicação animal, como diferencia Benveniste, é o destino e o que caracteriza o filhote humano, a existência da linguagem estabelece um salto qualitativo com o reino animal e faz com que a natureza esteja perdida para os sujeitos, então, o uso do termo infância para descrever o período precoce na existência de um sujeito parece paradoxal. Etimologicamente, infans refere-se a alguém que não fala (do latim fari: dizer, falar). Sua raiz evoca também outra palavra latina: fatum, que significa o dito, destino, fatalidade, um estado predeterminado. Se, precisamente, para os sujeitos, o destino é a linguagem, e não a anatomia, o estado predeterminado, predito não apenas ao dizer do sujeito, mas à sua própria aparição, o uso do termo infância, que se refere a alguém que não fala, parece definir os humanos precisamente excluindo o que é sua característica diferencial. Não dizemos em nenhum caso para referir-nos a um animal que é um infante, ainda que estritamente o seja, já que não fala. Seria um infante um humano antes de ser humano? O infante estaria fora da linguagem até começar a falar? O infante não fala, mas é falado, e é falado de um modo diferente, já que o infante é um falante em potencial. A infância é então um período primeiro em uma existência marcada pela linguagem e na qual o corpo é falante, na atualidade ou em potencial. É interessante a utilização da palavra infant em inglês, porque se refere somente a crianças pequenas, e não se estende para descrever a infância em geral, como é o caso em castelhano ou português. Uma vez que um bebê começa a engatinhar ou caminhar, deixa de ser considerado infante. Quando o humano consegue erguer-se sobre suas pernas e mover-se, é chamado, em inglês, toddler. Um interessante retorno à resolução do enigma edípico da Esfinge ou uma definição do humano como bípede falante.

Se podemos chamar de infante um bebê, ainda que um bebê não fale, é precisamente porque tem em estado germinal essa habilidade que cedo ou tarde terá que desenvolver. De fato, todos os infantes estão dentro da linguagem, ainda que sem falar. Então, o critério na denominação de infantil está precisamente baseado na capacidade lingüística do infante e em sua iminente aquisição da fala.

Se a infância é um estádio no qual a linguagem sempre está presente e no qual a faculdade da fala desenvolve-se, é interessante deter-nos a explorar o fenômeno do autismo, no qual esta faculdade da fala aparece ausente ou deficiente e no qual os sintomas surgem precisamente durante a infância. O autismo, além disso, é uma manifestação que parece desafiar esta primazia da linguagem.

 

RÓTULO DE AUTISTA

Nos EUA o diagnóstico de autismo é utilizado em uma quantidade de casos alarmante, um diagnóstico que se baseia especificamente na faculdade de usar a linguagem apropriadamente. As estatísticas demonstram que, nos Estados Unidos e na Inglaterra, de cada 10.000 crianças nascidas com vida, 4,5 têm autismo; é por isso que o Centro de Controle e Prevenção de Doenças norte-americano, de acordo com dados de 1997, documenta um caso de autismo a cada 500 pessoas. É interessante que a prevalência do autismo varia consideravelmente por país: apenas 2 casos em cada 10.000 nascimentos na Alemanha e oito vezes esta cifra no Japão: 16 a cada 10.000 (Edelson, 1999).

O autismo é amplamente estudado, e ainda que as respostas sejam escassas, o entusiasmo na investigação é enorme. Alguns sugerem que há mais gente estudando este fenômeno que gente padecendo-o (Koplewicz, 1996, p.242). Há, sem dúvida, algo da ordem do fascinante nesta, até agora, inexplicável desordem. Até mesmo Hollywood achou-a peculiarmente atrativa: de Son Rise a Rain Man, com Dustin Hofman, o autismo parece encontrar um lugar de destaque no cinema. Esta atração imediata me leva a pensar que nos EUA há algo que se põe em evidência com o sucesso como espetáculo visual do autismo em relação a seu efeito sedutor no nível da imagem, evidenciando uma função no nível escópico, para a qual o autismo parece contribuir com uma fonte inesgotável de fascinação para a cena e também referindo-se ao indizível que não cessa de tentar ser dito.

Em todas as descrições do autismo que encontramos na literatura, o déficit de linguagem é o maior componente desta "desordem". A Sociedade Americana de Autismo define o autismo como uma complexa incapacidade do desenvolvimento que aparece tipicamente durante os três primeiros anos de vida, e supõe o autismo como resultante de uma desordem neurológica que afeta o funcionamento do cérebro. Ainda que seja descrito como uma "desordem" com problemas na comunicação verbal e não-verbal, o autismo inclui dificuldades de relação com o mundo exterior, condutas agressivas, movimentos corporais repetitivos (bater palmas, balançar-se), respostas inusuais às pessoas ou a objetos e resistência a mudanças na rotina. Também destaca uma peculiaridade sensorial na vista, olfato, tato, gosto e ouvido.

Existem nos EUA, hoje, meio milhão de pessoas em que foi diagnosticado autismo, convertendo-o no mais comum dos distúrbios do desenvolvimento. Os problemas deste diagnóstico surgem quando vamos da generalidade estatística ao campo do subjetivo e propomo-nos a avaliar cada caso em particular em sua individualidade. Mal de muitos, consolo de tolos2, diz o dito popular. Ocupar um lugar anônimo em uma volumosa cifra estatística pouco ajuda a resolver a problemática individual de cada paciente rotulado como autista.

Depois de meio século de investigação, esta misteriosa doença encontra-se ainda em plena infância. Faz mais de cinqüenta anos, em 1943, Leo Kanner, um psiquiatra da Universidade Johns Hopkins, utilizou o termo autismo para descrever o comportamento de um grupo de crianças extremamente introvertidas, com severos problemas sociais, de conduta e de comunicação. Cinco décadas mais tarde, não foi identificada uma única causa do autismo. A literatura sobre o tema nos EUA enumera uma variedade de problemas: influências genéticas; vírus; toxinas; contaminação ambiental; altas quantidades de Candida albicans, uma levedura que está normalmente no intestino; intolerância ao glúten (presente no trigo, cevada e aveia) e à caseína (encontrada no leite humano e de vaca). Outros, como Temple Grandin, célebre autora e "autista recuperada", descreve como causa do autismo um defeito nas "conexões" dos circuitos "superiores" do cérebro durante o desenvolvimento fetal (Grandin & Scariano, 1986, p.173). Antonio Damaso e Ralph Maurer, da Universidade de Iowa, consideram o autismo um defeito no mesocórtex do cérebro que afeta o hipocampo e o sistema límbico. Autópsias de autistas revelaram distorsões no cerebelo e lesão no hipocampo.

A partir de uma posição psicanalítica, a velha pergunta sobre o que veio primeiro, o ovo ou a galinha, ou ainda, se é o autismo que produz o correlato neuroquímico ou talvez seja a anormalidade neuroquímica o que produz o autismo, deve ser abandonada. Precisamente, o que está em jogo não apenas na altíssima incidência de autismo, mas também em sua definição, é uma das conseqüências da americanização do inconsciente, ou seja, sua eliminação.

Bernard Rimland (citado por Gandin, 1986, p.5), autor do famoso livro Infantile autism, afirma que nos últimos anos o autismo está na moda, que este termo é usado em excesso e que, do total daqueles diagnosticados com autismo, apenas 25% o é de fato. Ousarei dizer que a alta incidência do autismo, e talvez o autismo em si mesmo, corresponde em muitos casos a um uso deficiente do instrumental diagnóstico e terapêutico. Interessante sintoma é que grande parte das contribuições mais destacadas ao autismo nos EUA tenha sido publicada nos anos 70 em revistas como Nature (Natureza) e o Journal of Autism and Childhood Schizophrenia (Revista de autismo e esquizofrenia infantil). Aqui voltarei à questão de que a linguagem propõe um salto qualitativo entre natureza e cultura, um abismo que separa radicalmente animais de humanos.

 

RECORDAÇÕES INFANTIS

Examinarei brevemente o testemunho de Temple Grandin, que nos oferece dois livros fabulosos com um material precioso: suas memórias, que nos fazem sentir um pouco o que Freud teria experimentado ao ler as memórias de Schreber. Temple Grandin relata em ambos suas experiências como uma "autista recuperada ou em recuperação". Seu testemunho é extraordinário e digno de uma exploração profunda, que excede o alcance deste trabalho. De sua leitura, surge a confirmação de que, apesar das aparentes semelhanças entre o autismo e a esquizofrenia infantil ou psicose infantil, o autismo é uma outra coisa. Vejamos uma breve ilustração disso. Em suas memórias Emergence labeled autistic, Temple Grandin abre o primeiro capítulo com a seguinte frase: "Recordo-me do dia em que quase matei minha mãe e minha irmã" (1986, p.17). Quando ia consultar a terapeuta da fala, sua mãe insistiu que usasse um chapéu para estar bonita para a terapeuta. A menina sentia que este chapéu apertava tanto, que transformava suas duas orelhas em uma. Exasperada pelo que experimentava como uma intolerável tortura, arrancou o chapéu e emitiu um grito. "Gritar era a única maneira de dizer à mãe que não queria usar o chapéu. Doía. Sufocava meu cabelo. Detestava-o. Não ia usá-lo para a escola 'faladora'" (Grandin, 1986, p.17). Frustradíssima, joga o chapéu pela janela, mas não pela sua, junto a seu assento no carro, mas pela de sua mãe que estava no volante. A mãe tenta pegar o chapéu em vão. Como resultado, perde o controle do carro, e a autora rememora com vividez como desfrutava das fortes sacudidas, do cálido sol, do odor da combustão do carro e de ver um trator aproximar-se cada vez mais. As tentativas de sua mãe de recuperar o chapéu fracassam, e, como conseqüência, ocorre uma forte colisão com o trator. Enquanto uma chuva de cacos de vidro a banhava, gritou: "Ice. Ice. Ice" (gelo, gelo, gelo). Não diz ter sentido medo, mas descreve esta experiência como revestida de grande excitação. Conta-nos que sua elocução "ice" foi enunciada claramente no que descreve como ura milagre, que atribui ao estresse provocado pelo acidente, mas que não consegue explicar senão dizendo que o autismo está infestado de mistérios. Podemos acrescentar que estes mistérios são os mistérios do corpo falante.

Tudo isso por causa de um chapéu que detesta, que machuca, que sufoca seus cabelos; em inglês a palavra utilizada é smothered, que contém o significante mother (mãe). Odeia e reage violentamente recusando os cuidados maternos que a sufocam. As conseqüências de um gesto que quase mata sua irmã e sua mãe deixam ilesas não apenas estas, mas também a protagonista, que se reafirma neste momento "milagroso" restituindo sua vida subjetiva como ser falante. É interessante mencionar, como esboço de uma possível interpretação, que a palavra ice contém o eu (I = eu), a primeira pessoa do singular que se afirma demarcando um giro. É importante a escolha da autora em abrir seu livro com esta recordação, que imagino ser um momento altamente significativo, um ponto de partida, um começo em que ela se afirma como um ego (I) jubiloso, que sugere um narcisismo primário do estádio do espelho, no qual o corpo finalmente pode estabelecer-se em um hiato. Mas é um estádio do espelho ao revés, reativado, no qual tem de voltar atrás, romper o cristal que a cristaliza e sufoca em um contínuo com a mãe e recomeçar o caminho, situando-se em relação a um significante fálico do qual seja possível separar-se. Suponhamos que o chapéu funcionasse como um significante fálico que devia ser liberado, um chapéu que machucava suas orelhas e fazia de duas, uma; um significante fálico que tem de jogar pela janela, recusá-lo, fazendo holófrase com ela e deixá-lo ir, devolvê-lo à mãe, a qual insiste e o busca fracassadamente reter. Somente quando o recusa e sua mãe o perde, seu corpo põe-se então em outro lugar, um lugar de gozo a partir do qual gozo e corpo podem começar a separar-se pela intervenção da linguagem, e ela aparece como um sujeito, "Eu" (I), ao enunciar-se como palavra primordial: "ice". Sua enunciação "ice" surge quando se abre um espaço de oposição e diferença no qual a linguagem não aparece mais como um bloco, não mais como um contínuo impenetrável. Precisa jogar pela janela esse significante fálico e recomeçar o processo, fazer um buraco na linguagem que deixe espaços abertos, orifícios em que ela possa inserir-se como sujeito. A brecha do buraco da janela representa uma ruptura no contínuo que ela formava com sua mãe: deixar de ser uma boneca com um chapéu aprisionada no olhar, escutando, entendendo, mas incapaz de falar, cristalizada para estar bonita. Tendo rompido esse contínuo com a mãe, a linguagem é agora discreta. Esse corte introduzido pela colisão com o trator quebra a parede de cristal que, até esse momento, era para ela a linguagem, uma linguagem na qual duas orelhas são uma. Se concordamos que o chapéu faz de duas orelhas uma, se generalizamos, podemos dizer que uma criança autista vê a linguagem como um contínuo em que há somente uma orelha, em que não pode articular sua enunciação, porque não há um outro para o qual falar, em que a criança não é um outro para o outro. Neste episódio quebra-se esse imaginário aterrador que era a linguagem até esse momento, e então a menina fala. Mas fala dizendo "ice", em que podemos ouvir a homofonia I (eu) ce = is (és). Uma enunciação em holófrase "eu és" não apenas reveladora de que não é ainda um "eu sou", mas, em um primeiro momento do estádio do espelho, é um exemplo vivo da construção em alienação do eu, isto é, como outro. A leitura das memórias parece confirmar que permanece esse estado alienado no qual a parede aterradora da linguagem está quebrada e a função pacificadora da linguagem funciona de maneira fragmentada. Seu vocabulário durante anos é pouco extenso, a limitada série inclui "ice" (gelo), "go" (ir), "mine" (meu) e "no" (não), que fala pronunciando uma palavra de cada vez. Uma vez quebrado o cristal, o que fica são os cacos, os fragmentos que lhe permitem apenas reconstituir um jogo simbólico muito precário. "Quando menina, não usava palavras como 'é', 'o', ou 'isso', porque não têm significado em si mesmas. Da mesma forma, pajavras como 'de' e 'um' não tinham nenhum sentido. Finalmente, aprendi como usá-las apropriadamente porque meus pais sempre falaram inglês corretamente e eu imitava sua fala. Atualmente, certas conjugações verbais, com 'ser' não têm absolutamente nenhum sentido para mim". (Grandin, 1995, p.31) Esta deficiência lingüística, na qual a gramática funciona precariamente e a linguagem é concreta, manteve-se até tornar-se adulta. Não é curioso ela admitir que pensa em imagens e que as palavras são para ela como um segundo idioma.

Aqui, outro fragmento das memórias é revelador. Descreve que, antes de falar, a comunicação era para ela "uma rua de sentido único" (uma só orelha?). Entendia perfeitamente o que lhe diziam, mas era incapaz de responder. Gritar ou bater palmas era sua única forma de comunicar-se. Conta que graças à sua terapeuta da fala conseguiu começar a falar. Descreve a "Senhora Reynolds" com afeto, mas menciona algo que a assustava profundamente: um ponteiro. "A haste era afiada e parecia malvada. Podia arrancar um olho... Não creio que ela tenha entendido meu terror a essa haste. Apesar deste aspecto negativo, a Senhora Reynolds ajudou-me. Foi lá que falei ao telefone pela primeira vez" (Grandin & Sariano, 1986, p.21). Certo dia, no consultório da terapeuta da fala, em um momento em que estava sozinha, o telefone começou a tocar. E tocou, e continuou tocando sem que ninguém respondesse, até que, irritada, correu até o outro lado da sala, pegou o telefone e disse: "Hul-lo" (OLÁ). O que é essa haste que pode arrancar os olhos? É inevitável a tentação de interpretar a possível função fálica desse ponteiro que pode condenar ao destino da castração que sofreu Édipo. Também é interessante ver o terror que este falo desencadeia. Aqui a castração não funciona como ameaça de privação que possibilita o desejo. O falo é imaginário, e não simbólico. Apesar disso, é importante notar que a autora consegue falar pondo-se como receptor da mensagem quando há uma ausência, uma separação; uma separação, podemos dizer, do significante fálico, portado pela Senhora Reynolds (a quem sua mãe queria impressionar, recordemos o episódio do chapéu), e a partir desse espaço de intervalo pode emitir sua primeira resposta, posta como um sujeito que recebe uma mensagem. A Senhora Reynolds aparece como suporte do outro. Neste episódio, algo do Outro se inscreve, mas até onde?

É importante mencionar que Temple Grandin é uma apaixonada especialista em gado, uma especialista internacional em conduta e psicologia animal e inventora de equipamentos, máquinas e desenhos para matadouros de animais. "Um terço do gado dos EUA é conduzido a estabelecimentos desenhados por mim.... Minha conexão com estes animais remonta ao primeiro momento em que me dei conta de que o arreio podia ajudar-me a acalmar minha angústia. Comecei a ver o mundo desta perspectiva a partir desse momento" (Grandin, 1995, p.142). Temple Grandin sintetiza esta perspectiva quando relata que desejava inicialmente intitular seu segundo livro "A cow's eye view" (literalmente: "Uma visão a partir do olho de uma vaca"), mas finalmente publicou-o como "Pensando em imagens". Estaria Grandin tão próxima ao mundo animal porque lhe falta o inconsciente, porque carece do desejo que intervém no humano e impede-a de estar na pele do animal, que a desvia de um uso inteligente ou racional do instinto?

 

A FALA DENTRO DA FALA SEM FALA

O que é então o autismo? Nos Estados Unidos o uso do autismo é associado a uma longa lista de síndromes que manifestam algumas das condutas características do autismo, ainda que não sejam consideradas o autismo propriamente dito. O autismo incluiria a síndrome de Asperger, a síndrome de X Frágil, a síndrome de Laudau-Kleffner, a síndrome de Rett e a síndrome de Williams. Algumas têm um correlato orgânico concreto em uma falha cromossômica, outras simplesmente são decifráveis no nível da conduta observável. Neste enfoque descritivo, perde-se a perspectiva e fica a extrapolação na qual natura prima sem poder dar conta das causas. A parte é tomada pelo todo, e a anatomia é o destino irrevogável.

Como superar a descrição e entender esta característica do autismo que é a possibilidade que alguns autistas têm de "sair" de seu estado de isolamento? Como demonstra Yankelevich (1995), não podemos falar de psicose no autismo, porque, neste último, trata-se de uma primeira forclusão do nome do pai participante no significado que torna possível a separação do significante fálico. Somente podemos falar em psicose quando é impossível o segundo tempo da metáfora paterna.

Ainda que no autismo existam emissões lingüísticas, não podemos falar da existência do Outro. Há linguagem, mas não há fala, às vezes há palavras soltas sem uma gramática que as articule. No autismo, elabora Yankelevich (1995), não se estabeleceu a separação entre corpo e gozo, que é a condição necessária para o estabelecimento do inconsciente. A aterradora intensidade sensorial da qual Grandin dá conta com vividez, revela um corpo que não foi esvaziado de gozo, que estoura diante dos estímulos sensoriais, que responde a uma lógica do gozo, de um gozo excessivo e penoso que sobrecarrega o aparelho psíquico como uma ameaça aniquiladora. Um testemunho que recolhi na Internet mostra um adolescente chamado Chris Slater, cujo relato de sua "história de como conseguiu superar o autismo" é esclarecedor: "O motivo para adquirir a fala era prático: para poder dizer para minha Mamãe o que queria ou necessitava". Este testemunho parece dar conta de que o autista "recuperado" consegue escapar de ser o/a do Outro e constituir-se assim como um sujeito que já não é objeto da fantasia da mãe, preso ao gozo materno, mas possui seu próprio querer ou necessitar, que somente pode articular quando toma a palavra apropriando seu desejo nesse delicado equilíbrio entre Outro e a, fundante do inconsciente.

Grandin comenta, por exemplo, que é incapaz de usar um telefone em um aeroporto porque não consegue ignorar o ruído de fundo e concentrar-se na conversa. Alguns sons provocam-lhe dor porque se superpõem em um mesmo plano sem hierarquias. Explica que os nervos de sua pele são extremadamente sensíveis e que não se acostuma a uma roupa nova facilmente. De acordo com a perspectiva de Yankelevich, quando o gozo não está separado do corpo, são produzidas estas deficiências no nível da percepção, uma percepção que o gozo deve organizar; o gozo desmedido do autismo interfere na organização da percepção. A linguagem não é capaz de esvaziar o corpo de gozo. Os estímulos sensoriais sofrem um efeito generalizado de achatamento ou de exacerbação da intensidade do estímulo em uma intensidade que se torna insuportável.

Se examinamos como a linguagem opera no autismo, podemos então afirmar que os únicos verdadeiros infantes, entendendo esta denominação literalmente, são os autistas. Como já vimos, é possível para um autista nascer ou renascer na linguagem como falasser (parlettre).

Um desvio por uma figura mítica da religião católica nos ajudará a compreender este processo. Jesus no presépio encarna o paradoxo de um verbum infans. T.S. Eliot medita sobre isso quando retoma a maneira como o predicador Laucelot Andrews elabora um sermão sobre o tema da Natividade. No poema intitulado "Gerontion" (que por um tempo serviu de introdução a The Waste Land), Eliot modifica a fórmula inicial de Andrews, the Word without a word, unable to speak a word (a Palavra sem palavra, incapaz de falar palavra), por "The word within a word, unable to speak a word" (a palavra dentro da palavra, incapaz de falar palavra). Eliot aponta aqui o poder da literatura de revelar a essência da linguagem, as palavras contêm outras palavras, como o exemplifica o dicionário. Para chegar a ser um falante, deve-se ser capaz de explicar significados seriais e conflitivos, freqüentemente atravessando um tipo de morte, que paradoxalmente dá vida ao ser falante. É esta pequena morte o grande desafio para uma criança autista, uma pequena morte que deve atravessar para quebrar a parede lingüística que a aprisiona.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Agamben, G. (1993). Infancy and history: essays on the destruction of experience (L. Heron, trad, do italiano). Nova York: Verso. (Publicado inicialmente em 1978 como Infanzia e storia por Giulio Einaudi Editore)        [ Links ]

Edelson, S. (1999). Global vision of autism. Extraído do site da Sociedade de Autismo da América na Internet. Center for the Study of Autism, Salem, Oregon (EUA).         [ Links ]

Grandin, T. & Scariano, M. (1986). Emergence labeled autistic. Novato: Arena Press.         [ Links ]

_____. (1995). Thinking in pictures, and other reports from my life with autism. Nova York: Doubleday.         [ Links ]

Koplewicz, H. (1996). It's nobody's fault: new hope and help for difficult children and their parents. Nova York: Times Books/Random House.         [ Links ]

Pinker, S. (1995). The language instinct. Nova York: William Morrow.         [ Links ]

Yankelevich, H. (1995). Jerome's laughter: a case of autism. Clinical Studies: International Journal of Psychoanalysis, Vol. 1, n° 1. Nova York: Critical Press.         [ Links ]

 

 

Recebido em 05/99

 

 

NOTAS

Tradução do original em espanhol: Daniela Teperman
(Neste artigo redigido originariamente em espanhol todas as traduções de textos em inglês citados foram realizadas pela autora.)
1 Oscar Masotta oferece um brilhante exemplo para diferenciar a linguagem animal da linguagem humana, comentando que uma abelha nunca indicará a uma outra abelha a localização incorreta das flores simplesmente para fazer uma piada.
2 No original, "mal de muchos, consuelo de tontos", expressão idiomática sem equivalente em português. A autora, ao utilizá-la, procura transmitir a idéia de que, se todos têm a mesma doença, podem sentir-se consolados, mas isso é uma tolice, uma vez que o problema continua (N.T.).