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Estilos da Clinica

Print version ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.4 no.6 São Paulo July 1999

 

DOSSIÊ

 

A novela social sobre a infância desamparada

 

The social story of unattended childhood

 

 

Mercedes S. Minnicelli

Psicanalista, pesquisadora bolsista da Universidad Nacional de Mar Del Plata e diretora do Depto. "Infância" da Municipalidad del Pdo. de General Pueyrredón, Argentina

 

 


RESUMO

Este artigo propõe questionamentos e reflexões que surgem como produto da análise a partir de uma prática: a chefia a cargo da Direção da Infância, serviço público de administração municipal (Mar del Plata, Buenos Aires, Argentina). Se as marcas da infância determinam a direção da vida, quais serão os efeitos na constituição subjetiva quando estas marcas são delimitadas pelo "discurso da menoridade"?

Subjetividade; menoridade; infância


ABSTRACT

In this article are exposed inquiries and reflections that arise from the analysis of the author's practice and experience as chief of the Childhood's Direction, a municipal public service of the city administration (Mar del Plata, Buenos Aires, Argentina). If the infancy imprint stamps the direction of the life: which will be the consequences, on the constitution of the subject, when those impressions, those stamps, are signed by the minority discourse?

Subjectivity; Minority; discourse; infancy


 

 

"Devo acentuar novamente
que estas reflexões seriam inúteis
se o sonho e a neurose
não pertencessem por si mesmos à infância."
Sigmund Freud

 

INTRODUÇÃO

Este artigo surge como resultado de perguntas iniciais a partir do exercício de uma prática recente: um cargo público na "área da menoridade"1.

Uma convocatória que é definida como "encarregar-se da Direção de infância" pode oferecer alternativas arriscadas: "transformar-se no cargo" e/ou acreditar que é possível "dirigir a infância". Nenhuma destas alternativas torna-se tentadora devido a sua ânsia por totalidade. Ambas merecem sua revisão e considerações especiais.

Ainda que se saiba que a política apresenta-se desta forma, em sua pretensão de saber sobre o bem geral, é possível renunciar a isso e mesmo assim fazer parte do projeto de uma Secretaria que visa transformar os critérios de trabalho, as políticas municipais vinculadas à infância - em uma cidade de 600 mil habitantes - com a oferta de gestão profissional sustentada em uma convicção obtida através da própria análise e da formação psicanalítica: são as marcas da infância que determinam a direção de vida dos sujeitos.

A relação entre a política e a psicanálise implica encruzilhadas que mereceriam um capítulo à parte. Precipitadamente, afirmaríamos que, entre si e em si, são incompatíveis. Apesar disso, os ensinamentos da psicanálise não são incompatíveis com uma prática que, paulatinamente, tenta gerar questões onde antes havia apenas certezas. A escuta do discurso político, como a de qualquer outro, não é extrínseca à psicanálise. Também não o é a possibilidade -para um analista - de exercitar uma função que requer estabelecer claras diferenças em suas intervenções se, para tanto, estabelece como eixo o interesse psicanalítico pelo discurso em jogo nas situações nas quais intervém2.

 

A NOVELA SOCIAL SOBRE A INFÂNCIA DESAMPARADA

Procurarei transmitir algumas reflexões sobre o que me atrevo a denominar "a novela social sobre a infância desamparada"3.

Novela carregada de drama, intrigas, críticas à normativa legal, ao sistema institucional. Novela com personagens fantásticos e fantasmáticos, que o discurso social escreve partindo de suas próprias impressões imaginárias. Novela que se pode inscrever como as páginas da imprensa marrom, carregando as tintas com sentimentalismo, avalizando a beneficência que alimenta o narcisismo de quem se define como beneficente, excluindo o beneficiado, quem, no melhor dos casos, recusará essa dádiva, ocupando o lugar do "mal-agradecido".

Da novela social da infância desamparada participam também inescrupulosos interesses de certa "imprensa", quando, considerando que é o Estado que protege estas crianças, atribuem-se o direito de dar caráter de público ao que, em si mesmo, pertence à intimidade de uma vida carente de recursos para ser vivida no seio de um âmbito privado.

Os limites entre o público e o privado tornam-se obscuros nas instituições.

"Privado" em seus diversos sentidos: de propriedade, que se perde para compartilhar espaços, objetos e tempos comuns e/ou comunitários; de privacidade, que é limitada. A intimidade e a privacidade tornam-se um risco para o controle que o sistema deve exercer sobre os ritmos dos sujeitos abrigados. A organização perde controle quando dá lugar às diferenças nos ritmos dos sujeitos abrigados e, "deprivation"4: considerando a terminologia utilizada por Winnicott (1940, p.81) para definir a criança que é privada5 de seus laços familiares 6

Dessa forma, vão se constituindo identidades públicas, a criança passa a identificar-se mais com o nome de uma instituição que como o nome do pai. "As crianças do lar tal", "as crianças da rua", etc. Com a finalidade de ilustração destas idéias, recordo a exposição vivenciada por algumas meninas recolhidas em um lar de residência permanente (abrigo) que, em função de uma nota publicada em um jornal local, expressaram por escrito: "Não queremos que falem de nós".

Se infância é tempo; se dizer infância é uma forma de falar da condição psíquica da espécie humana em estado de desamparo durante um tempo no qual a subjetividade está em constituição; se a infância se inscreve em um universo simbólico outorgado pela linguagem, o que acontece quando esse universo simbólico é outorgado por um sistema, quando um ser humano ingressa no universo lingüístico dentro do discurso da "menoridade"?

 

NOTAS SOBRE AS NOMEAÇÕES I "OS BEBÊS SE REBELARAM!"

No berçário de um lar provisório, escutam-se sons de chocalhos de uma intensidade inusitada. Há 12 bebês na sala. Estão em seus berços e acabam de acordar do sono da tarde.

Diante desta "bagunça", o chefe da área - que estava em outra sala - dirige-se ao berçário e observa que, enquanto as funcionárias trocam as fraldas dos bebês, os outros - de aproximadamente entre 8 e 13 meses - estão parados em seus berços batendo os chocalhos com força contra a parede. Os adultos ali presentes detêm-se para observar a cena, comentando com um tom de humor, surpresa e um toque de espanto: os bebês se rebelaram!

"Nossa inteligência lingüística encontra-se em seu nível mais elevado aos 2 anos de idade. Só então, e às vezes antes, já que não podemos explicar nada metodicamente, começamos a compreender o sentido das palavras que escutamos"7.

"Como presos na cadeia" é a primeira associação que surge em todos aqueles aos quais fiz partícipes deste relato. Essa cena começou a ser interrogada e analisada nos dias que se seguiram, insistindo sobre qual é o lugar que se outorga a essas crianças por estarem imersas no discurso da "menoridade".

Os termos que nomeiam os laços sociais da menoridade seguem a linha dos códigos carcerários, assinalando um destino inefável.

Fenômeno de laço social e demanda coletiva em uma idade muito precoce. Quais são. os efeitos quando os espelhos nos quais olhar-se são múltiplos olhares, e não o retorno especular da própria imagem sustentada no olhar materno?

Suspeito que significar esse ato como "rebelião" tem conseqüências na forma em que será situado no tecido das relações sociais. As mamadeiras não chegavam a tempo. Rebelião? Ou protesto expresso em um jogo de imitação com o prazer do som provocado? Reação especular? Momento de criação de personagens da "novela social da infância desamparada"?

 

ERROS DE ESCRITA...

A Direção da Infância tem sob sua responsabilidade 16 instituições que atendem a "menores". Até alguns anos atrás, a denominação deste "cargo" não era "infância", mas "menoridade", e ainda hoje tanto os menores como a população em geral assim identificam essa função do Estado (neste caso, municipal), e, por conseguinte, os funcionários que se encontram "a cargo" do desempenho da mesma. Função que é exercida como auxiliar da Justiça de menores.

Menoridade e Justiça de menores aparecem ligadas tanto nas práticas institucionais como no discurso social e profissional.

Duas linhas de análise e de posicionamento diante do tema estavam escritas em um erro de escrita no organograma que indica as responsabilidades a cargo da Direção da infância (desperta a minha curiosidade saber quem o teria cometido, mas a burocracia é impessoal). Em um lugar estava "Departamento de proteção ao menor", e em outra cópia, "Departamento de proteção do menor". Este aparente erro demonstra não o ser quando, ao desdobrar-se a história no dizer das pessoas, aparece com clareza a dupla questão: proteger a criança e proteger-se da criança.

(As marcas da infância determinam a Direção. De que criança se trata?)

Em nome de um e de outro, os uns e outros encontram modos de situar-se em um lugar de Saber e de Poder sobre o objeto - criança que, silenciada em sua palavra, silenciada em seu desejo em nome da proteção, somente pode encontrar como modo de escape a "fuga", a atuação violenta ou a conduta anti-social.

As instituições são apresentadas como algo que tem entidade e existência própria, alheia àqueles que a conformam - em alguns casos há mais de 20 anos -, aqueles que, em nome do cumprimento de sua obrigação, vêm sustentando a escuridão e o silêncio de incipientes - ainda que complexas e traumáticas - histórias de vida infantil destinadas a ficar em um impasse - como se parte da vida pudesse ser posta entre parênteses - enquanto estejam internadas e não residindo ou vivendo nesse lugar.

A vida dessas crianças, marcada pelo antes de entrar e pelo quando sair, invadida pela concepção de que esse tempo de vida (tempo no qual a constituição subjetiva não pode ser posta entre parênteses) seja justamente isso: um tempo vital constitutivo.

Detenho-me e busco na biblioteca o livro de Maud Mannoni: Um lugar para viver. Na leitura, há uma frase que reaparece em várias oportunidades. Ali, a autora expressa: "Este livro deixa a loucura dizer uma verdade". Parafraseando Mannoni escrevo: "As instituições de menores deixam a loucura da sociedade encerrada". Sua abertura não refere que as portas tenham ou não chave, mas visualização daquilo que se pretende ocultar tornando as crianças responsáveis por delitos não cometidos por elas.

 

BRINCADEIRAS PERIGOSAS, POR FIM BRINCADEIRAS

A polícia encontra um grupo de crianças e adolescentes dormindo na praia. São "levantados" e algemados. Assim são trazidos à "menoridade". Entrevistamos cada um deles, espantados pelo trato que receberam .esses perigosos sujeitos. Não são crianças que moram na cidade, mas que vieram "como turistas". Sua idade oscila entre os 10 e os 13 anos. Contam que "não conheciam o mar" e que "vieram para conhecê-lo". Confirmamos logo que seus familiares desconheciam seu paradeiro. "Viram-se sozinhos." Enquanto são entrevistados, vão mudando de atitude, começam a sentir-se em um ambiente protegido e com bom trato. O clima de desconfiança e temor inicial foi se transformando paulatinamente. Estavam esgotados pelo cansaço e a experiência da manhã. Enquanto esperavam no corredor da instituição municipal, escuto que riem. Vou ver o que estão fazendo e - com assombro - observo que estavam brincando de ser algemados e escapar da polícia.

Freud interessou-se pelo enigma da repetição a partir do jogo do Fort! Da!, no qual a criança repete uma situação desagradável, para, em seguida, assumir o controle sobre ela. "Freud mostra então o modo pelo qual a dramatização cênica introduz uma ligação da pulsão de morte com a pulsão de vida'. No transcurso do brincar, o sujeito efetua um trabalho que torna possível a elaboração psíquica da perda do objeto" (Mannoni, 1994, p.23).

A polícia levantou "menores". Estes "escondem-se" freqüentemente em lugares em que sabem que a polícia poderá encontrá-los. Brincam às escondidas com os lugares "secretos" preestabele-cidos. Apesar disso, esta brincadeira - tradicional na infância - não se desdobra no pátio de uma escola ou entre os amigos do bairro, mas com a polícia "de verdade", na rua "de verdade", e o descobri-los e algemá-los não responde a uma ficção. Neste ato e neste jogo com (brinquedos?) da realidade desdobram seu mundo, esperando encontrar-se com adultos que possam descobrir sua brincadeira para poder situá-los como crianças.

Apesar disso, são menores, e é importante a dificuldade para que sejam pensados e abordados como crianças. Eles também não deixam que isso ocorra com facilidade.

Essa distinção não é puro jogo semântico. Implica um trato e um tratamento diferente. Estas crianças chegam à instituição escapando de cenas familiares nefastas, escapam para chegar a encontrar outras experiências que reafirmam sua repetição. As experiências traumáticas encontram poucas possibilidades de opção para sua elaboração.

"Nem pensar em fazê-los sonhar com outro mundo no qual participariam como sujeitos. Assim, não podendo deixar-lhes esperança, lhes transmitem ódio."
(Mannoni, 1994)

 

NOTAS SOBRE AS NOMEAÇÕES II "A MINORÂNCIA"8

Menoridade é chamada - de forma depreciativa - por alguns cidadãos, de "minorância". Se me permitem brincar com este termo, poderíamos dizer "menor (ig)norância" ou a "ignorância do menor" ou "o menor ignorado"... Também surge na associação "mi (ig)norância"9 sobre o tema "menoridade", a objeção apresentada diante da nomeação de profissionais e técnicos que integram a equipe - até mesmo funcionários - por não ter "experiência em menoridade".

O lugar da "ignorância" pode ser ressignificado. O saber de que se fala não é saber, mas certeza (do statu quo). A pergunta questiona o óbvio e revela a perda do sentido comum.

Opondo saber a ignorância, sobre estas crianças todos sabem demais. Nada se ignora sobre elas. Seus prontuários sabem sobre eles.

Quando a pergunta carece de lugar, faz com que nós defrontemos nossa própria ignorância. Ou será que estas crianças sabem demais, e devemos calá-las (castigos, sanções, reprimendas...)? É ressignificado então o erro de escrita: proteção do menor.

Se nos posicionamos questionando o saber que encobre cada um desses atos, oferecendo uma escuta que permita o desdobramento discursivo, aparece a criança e... as instituições "estouram". O que se descobre é que nessas instituições não havia nenhum lugar para o conflito. A rigidez de seus modelos apenas dá lugar à explosão. À criança lhe é demandada adaptação, em nome do cumprimento de normas arbitrárias organizadas em função dos requerimentos de um sistema que, por sua vez, não contempla as marcas que ocorrem em um tempo estruturante do psiquismo dessa mesma criança.

Apesar disso, a criança se protege, recusando a instituição e/ou seus representantes quando esta não lhe dá lugar sequer para que esta recusa seja possível. Repete suas experiências prévias de recusa como demanda de amor.

Diferente é a proposta de Maud Mannoni: oferecer uma instituição estourada, uma instituição que suporte ser recusada, proporcionando para as crianças a possibilidade de achar "um lugar para viver".

Adaptação às instituições se opõe a aprendizagem nas circunstâncias de vida - institucional ou não - que cada um venha a viver.

Longe do tempo em que foram fundadas, as instituições de menores conservam o nome de "reformatories" ou "internatos" no imaginário geral. O que pode ser reformado se ainda não foi "formado"?

Antes de ser inserido na legalidade - inexistente ou fraturada já em sua família de origem -, o sujeito é esmagado pelos modelos normativos, burocráticos e ideológicos do "sistema", representado por cada uma das instâncias institucionais que intervém diante de "sua" situação, às quais se solicita que "o protejam".

Não posso, nem é minha intenção, afiliar-me à "tradição" em menoridade. Seus traços culturais não me pertencem.

Questiono-me, e procuro abrir o debate e a reflexão sobre a influência de tanto saber sobre os menores e suas conseqüências quando esse saber é preconceito e está a serviço do não questionamento de uma prática, que, independentemente da disciplina de que se trate, é desafiada por cada criança que ingressa persistindo no sistema de menoridade e reclama - em seu justo direito - um lugar.

As crianças tomam a palavra em ato quando não são escutadas, ou quando seu dizer ultrapassa o holding (Winnicott) que um adulto pode tolerar ao tentarem "tirá-lo do sério".

Uma hipótese que se comprova enuncia que, justamente, as crianças esperam encontrar o suporte de adultos que possam deter (cortar) o redemoinho pulsional que busca sua descarga. O limite que o amor (o temor de perdê-lo) põe à descarga pulsional não é fácil quando, em uma idade muito precoce, parece que "não há nada a perder".

Reiterando o anteriormente dito, ainda que os atos das crianças falem por elas, não obstante, a significação que lhes é atribuída não responde ao dizer silenciado - ainda que atuado -, mas à significação que lhes atribuem os adultos responsáveis neste momento por sua criação.

Proporcionar vias discursivas convidando à análise das situações atuadas pelas crianças e com as crianças, ainda que não seja de fácil instrumentação num meio em que as transferências hostis marcaram a história, não é impossível.

Dar lugar para que a desconfiança não seja silenciada, mas analisada, em um modelo de instituição como a municipal, tem seus riscos para quem proporcione - mesmo que seja ocasionalmente - essa possibilidade.

 

A HISTÓRIA OFICIAL10 É ESCRITA EM "PRONTUÁRIOS"

"Fazer-se" funcionário, e não "ser" funcionário, implica recuperar a possibilidade de "estar analista" em certas circunstâncias, reconhecendo os limites que esta proposição implica.

Uma via discursiva importante está escrita sob o nome de burocracia, a qual corre o risco - como as instituições - de aparecer com entidade própria, despojada daqueles que escrevem as linhas desses papéis chamados expedientes (municipais) ou prontuários (das crianças).

Quando se trata de prontuários, estes conservam a história de acordo com o parecer de sucessivos profissionais e juizes atuantes.

Longe de se tratar da história de acordo com a forma em que cada um a conte, cada qual a relate, cada um signifique sua própria experiência, esses prontuários falam de uma causa judicial aberta, que, na maioria dos casos, não fechará até a maioridade.

Em português, para nomear um menino, se diz "criança", termo que, em espanhol, foneticamente soa como "crianza", ou seja, tempo em que vai se criando, gestando, desenvolvendo, acompanhando o crescimento em suas vicissitudes. Tempo de "crianza", sinônimo de infância. Tempo no qual a dependência do ser humano ao Outro é constitutiva do psiquismo. Tempo inicial que prepara o porvir de uma história que está por escrever-se, ainda que as letras dessa partitura já estejam marcadas.

A nomeação de menor de idade implica a inscrição no discurso jurídico, o qual administra uma legislação que pretende outorgar proteção legal para essa parcela da sociedade.

No entanto, o paradoxo apresenta-se quando se confunde menor com criança, insere vendo-a, neste ato, no discurso da menoridade, desconhecendo-a em sua infância. Atrevo-me a afirmar que, onde há menor não há infância, nem brincar, nem lugar para a fantasia. Não existe adulto que determine à criança o que ela é.

Ao escutar "essas" crianças que vivem decidindo suas próprias vidas, nos confrontamos com uma infância marcada pela falácia da ilusão de liberdade encobrindo o desamparo que nutre de atos no Real, em que se supunha que devia instalar-se um lugar para que, mediante a instância imaginária do brincar e da fantasia, se possibilitassem operações simbólicas que as inscrevessem como sujeitos de sua cultura.

Dizer infância demarca um tempo. Tempo esquecido ou apenas recordado de maneira encoberta. Tempo de desenvolvimento. Tempo de marcas "invisíveis" das quais apenas sabemos por seus efeitos ulteriores. Tempo em que a crueldade pode expressar-se desenfreadamente - tal como o investigou Freud e se confirma, apesar de seus detratores e omissões atuais de certas psicologias -, ou pode processar-se por vias sublimatórias.

A infância é, por sua vez, um tempo idealizado e menosprezado - paradoxalmente - pelo discurso social, que não se dá conta da complexidade de emoções e vicissitudes que o mesmo implica, e desconhece que se trata das novas gerações que requerem de adultos que assumam a responsabilidade por sua criação.

A inocência da infância já foi desconsiderada por Freud no começo do século.

Também se pode chamar de meninice11; ainda que se refiram ao mesmo, não são a mesma coisa.

Infância, tempo cronológico em que "ser criança" não corresponde aos modos em que pessoas de diversas épocas da humanidade deram um lugar à mesma.

Como se nomeiam em espanhol as crianças? Infantes, pequeños, criaturas, crianza, mocosos, pendejos, enanos, niños, chicos, purrete... 12.

Diferentes discursos disciplinares definem de modo diferente, por sua vez, o que entendem por "criança".

O saber psicológico influiu visivelmente em certos âmbitos, expressando - na forma de um mandato - como é a infância, o que devem fazer os pais para que seus filhos cresçam sãos e saudáveis, marcando diferentes tempos ou correntes de pensamento em torno à infância. Parece que, algumas vezes, mudam os critérios em torno do que se supõe como infância de acordo com a classe social do infante de que se trate.

A Convenção Internacional dos Direitos da Criança define criança como menor de 18 anos. Esta denominação mereceria uma reflexão que excede os propósitos deste trabalho.

Cabe então perguntar-se: da infância não se sabe, ou se sabe demais?

Releio artigos de meados do século escritos por Winnicott ou por Françoise Dolto e surpreendo-me pela vigência de seus trabalhos de atenção à infância "deprivada" ou a crianças evacuadas pela guerra. Estes trabalhos impressionam por sua vigência, apesar de não estarmos em tempos de "guerra" (pelo menos de guerra armada), e parece que foram esquecidos dos currículos universitários atuais.

Cada nova criança atendida pelo Estado traz à tona a mesma pergunta: de que criança se trata?

Em 1913, Sigmund Freud amplia o interesse da psicanálise a outras disciplinas. Especificamente em relação ao interesse pedagógico, expressa:

"O grande interesse da pedagogia pela psicanálise descansa em uma tese que se tornou evidente. Só pode ser educador aquele que é capaz de compenetrar-se por empatia com a alma infantil, e nós, os adultos, não compreendemos a criança, porque deixamos de compreender nossa própria infância" p.191.

As crianças interpelam-nos nesse saber sobre a infância quando esse saber exclui o próprio infante, constituindo(-lhe) uma vida paralela, inscrita em um prontuário que fala da história oficial de uma causa judicial, confundindo-a com uma história de vida que não é historicizada por seu proprietário. Uma história é construída sem atender à constituição subjetiva quando a causa é nomeada antes do nome de seu dono. Encontramos assim "causas judiciais" sem causa; com relatórios e mais relatórios de muitas pessoas, ao longo de uma vida curta, que falam das vicissitudes "oficiais", mas nada dizem desse sujeito.

Poderíamos dizer, então, que há infâncias e infâncias. Não será inútil, nestes tempos, reiterar que não somente não há uma única maneira de conceber a infância, mas que nos esquecemos de que o sonho e a neurose são inerentes à infância.

Ainda que as vicissitudes da infância de cada um sejam diversas e diferentes para cada sujeito, a perspectiva torna-se complexa quando a tendência a incluir na análise as condições socioeconômicas de uma criança desloca a perspectiva de análise, excluindo aquilo que, em si mesmo, faz o caminho por onde transita a infância.

Um dos riscos será acreditar que se pode tomar um único ponto de vista entre o social e o psicológico. Em todo caso, poderemos dizer quais as implicações, para esse "sujeito", de suas particulares circunstâncias de vida, mesmo que sejam muitos os que encontremos em condições similares. Ótimas condições socioeconômicas não garantem a felicidade. As conseqüências das atuais condições socioeconômicas não têm por que ser pagas com a infância de poucos.

Quando essas crianças, em plena infância, em plena humanização, falam, não é sempre que suas palavras podem ser escutadas. Essas palavras denunciam o desamparo primitivo que perdura para além dos "tempos" cronologicamente esperados. Esse desamparo soa violento aos ouvidos de quem escuta.

Há infâncias que, diante do desamparo próprio da espécie humana, são sustentadas por adultos que exercem sua função constituindo-se como Outro para o psiquismo infantil.

Há infâncias cujo desamparo é encoberto, aparentando liberdade, desinteresse e excessiva desconfiança e transparecendo por meio de condutas anti-sociais.

Essas infâncias nos interpelam. Convidam à criatividade.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Freud, S. (1927). El provenir de una ilusión. In Obras completas (Vol.21, pp.1-56). Buenos Aires: Amorrortu. (Originalmente publicado em 1927).         [ Links ]

_____. (1913). Multiple interés por el psicoanalisis. In Obras completas (Vol. 13, p. 125-192). Buenos Aires, Amorrortu, 1994.         [ Links ]

Mannoni, M. (1983). Un lugar para vivir. Barcelona: Grijalbo.         [ Links ]

_____. (1994). Amor, odio, separación. Buenos Aires: Nueva Visión.         [ Links ]

Winnicott, D. W. (1940). El niño y el mundo externo. Buenos Aires: Hormé         [ Links ].

Stazzone, R. (1997). Psicoanalisis en instituciones. In: COSIMI. Alfredo (org.) Estudios psicoanaliticos en la Universidad. Rosário: Homo Sapiens.         [ Links ]

 

 

Recebido em 04/99

 

 

NOTAS

Tradução: Daniela Teperman
1 A autora exerce este cargo - de diretora da Infância - há pouco tempo e não exerceu qualquer cargo público anteriormente (N.T.).
2 A experiência na aplicação do dispositivo "escuta analítica em âmbitos coletivos" passou a ser uma ferramenta fundamental no trabalho tanto como a investigação em psicanálise e ensino desenvolvida nos últimos anos (Stazzone, 1997).
3 Parafraseando Freud em seu conceito de "novela familiar do neurótico".
4 Optamos por manter o termo "deprivación" conforme aparece no original em espanhol, pois não o encontramos nas traduções de Winnicott ao português. É possível que o conceito - um neologismo winnicottiano - tenha sido traduzido como privação, porém, em algumas passagens, o autor afirma que "deprivación" e privação não são equivalentes. Em inglês, encontramos o termo "deprivation" (N.T.).
5 No Capítulo "A mãe 'deprivada" aparece a seguinte nota do tradutor: "(...) 'Deprivada' deve ser entendido como privada do afeto e contato com seus filhos. O inverso seria a criança privada do afeto e contato com sua mãe".
6 Abriríamos outro capítulo se considerássemos privação no sentido que Freud outorga ao termo em O futuro de uma ilusão: "Visando empregar uma terminologia uniforme, chamaremos frustração [denegação] ao fato de que uma pulsão não possa ser satisfeita; proibição à norma que a estabelece e privação ao estado produzido pela proibição" (Freud, 1927, p.10).
7 O. Mannoni, "Un Mallarmé pour les analystes", Un si vif étonnement. Seuil, 1988, p. 76. Citado em "Reencontrarse com la lengua perdida de la infância" (Mannoni, 1994, p.63).
8 Não encontramos um termo em português equivalente a este neologismo (N.T.).
9 "Minha (ig)norância" (N.T.).
10 Na Argentina, dizer "história oficial" remete ao período da ditadura militar. A letra de uma canção escrita por Lito Nebia diz: "Se a história é escrita pelos que vencem, isso quer dizer que há outra história, a verdadeira história quem quiser ouvir que ouça".
11 No original "niñez" (N.T.).
12 Optamos por manter os possíveis nomes utilizados para falar da criança conforme aparecem no texto original, tendo em vista que, em português, os diferentes nomes também designam diferentes lugares para a criança (N.T.).