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Estilos da Clinica

Print version ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.4 no.6 São Paulo July 1999

 

DOSSIÊ

 

Sobre um momento da constituição da idéia de infância: ponto de vista de um historiador

 

About the constitution of infancy's idea: the point of view of a historiographer

 

 

Waldir Cauvilla

Professor do Depto. de Filosofia da Educação e Ciências de Educação da FEUSP

 

 


RESUMO

Perguntando-se sobre a importância historiogáfica do livro de Ariès, L'enfant et la vie familiale sous l'Ancien Régime, o autor analisa a construção da idéia de infância a partir do advento da escola, da família e do Estado. Reflete sobre as obras de Comenius, Locke e Rousseau.

Ariès; idéia de infância; historiografia


ABSTRACT

Asking himself about the value of Ariès'book L 'enfant et la vie familiale sous VAncien Regime, the author analyses the construction of the idea of infancy, based on the work of Comenius, Locke and Rousseau.

Ariès; idea of infancy; historiography


 

 

Pelo menos historiograficamente é com o livro de Ariès L'enfant et la vie familiale sous l'Ancien Régime que o tema da constituição da infância entra em cena.

Esse livro foi publicado em 1960, mas sua elaboração levou 10 anos, já que Ariès o foi escrevendo em seus fins de semana; aliás, seu livro de memórias teve, justamente, o simpático título de Un historien du dimanche, que no Brasil recebeu do tradutor o título equívoco de Um historiador diletante (Aries, 1994).

Aqui já se instalaria uma questão: por que alguém se interessaria por esse tipo de assunto nesse momento? Com isto não estamos querendo formular a questão no plano puramente pessoal, quero dizer, por que um indivíduo - Ariès - interessou-se pelo tema. A resposta cairia no mesmo plano de por que uns gostam de música clássica, outros de popular; uns de maçã, outros de pêra, etc. Quem quiser conhecer as razões pessoais de Aries, no entanto, pode consultar seu livro de memórias acima citado (o que é extremamente interessante e esclarecedor).

Na verdade, a questão é por que o livro "pegou"? Por que, ainda que com resistências iniciais no meio acadêmico oficial francês, acabou se tornando um marco historiográfico e hoje é considerado um verdadeiro clássico? Por que, e mesmo com possíveis e várias críticas, não se pode escrever ou falar nada sobre infância e família sem se remeter a Aries? Tornou-se, antes de qualquer coisa, um bê-á-bá dos estudos sobre esses temas.

Mas Ariès nos interessa, aqui, no que nos pode esclarecer sobre um dos momentos de constituição da idéia de infância sugerida pelo título deste artigo.

Ariès estudou o período correspondente ao Antigo Regime, na França, particularmente os séculos XVI, XVII e pelo menos parte do XVIII. É nesse momento que ele capta a emergência do que denominou "sentimento da infância". Vale notar que ele faz isso contrastando esse momento com o período anterior, da Idade Média, em que não teria existido o sentimento da infância. Esclareçamos com as palavras do próprio Ariès:

"[...] Afirmei que essa sociedade via mal a criança e pior ainda o adolescente. A duração da infância era reduzida a um período mais frágil, enquanto o filhote do homem ainda não conseguia bastar-se; a criança, então, mal adquiria algum desembaraço físico, era logo misturada aos adultos, e partilhava de seus trabalhos e jogos. De criancinha pequena, ela se transformava imediatamente em homem; mas, sem passar pelas etapas da juventude, que talvez fossem praticadas antes da Idade Média e que se tornaram aspectos essenciais das sociedades desenvolvidas de hoje" (Ariès, 1981, p.10; itálico nosso).
"Na sociedade medieval, que tomamos como ponto de partida, o sentimento da infância não existia - o que não quer dizer que as crianças fossem negligenciadas, abandonadas ou desprezadas. O sentimento da infância não significa o mesmo que afeição pelas crianças: corresponde à consciência da particularidade infantil, essa particularidade que distingue essencialmente a criança do adulto, mesmo jovem. Essa consciência não existia. [...]" (Aries, 1981, p.156).

Na verdade, Ariès capta dois sentimentos da infância. Um presente no século XVI (talvez já pudesse ser captado nos séculos XIV e XV) e que o autor identifica com a "paparicação" ("mignotage"). Esta teria nascido no ambiente familiar, no trato com as crianças pequenas. O segundo, que é o sentimento "verdadeiro" da infância caracterizado pela consciência da especificidade desse momento da vida humana, "... proveio de uma fonte exterior à família: dos eclesiásticos ou dos homens da lei, raros até o século XVI, e de um maior número de moralistas no século XVII, preocupados com a disciplina e a racionalidade dos costumes. [...]" (Ariès, 1981, p.163; itálicos nossos).

Ariès chama a atenção para o fato de que aquele primeiro sentimento já no século XVI era criticado acerbamente por pensadores como Montaigne, que via na "paparicação" uma forma de tratar as crianças como "macaquinhos", e essa "macaqueação" o irritava profundamente.

É essa sensibilidade que marcará também os eclesiásticos, os jesuítas, os moralistas do século XVII, já que "recusavam-se a considerar as crianças como brinquedos encantadores, pois viam nelas frágeis criaturas de Deus que era preciso ao mesmo tempo preservar e disciplinar. Esse sentimento, por sua vez, passou para a vida familiar" (Ariès, 1981, pp.163-4).

Essas últimas citações devem nos deixar pelo menos uma pergunta: quem são esses moralistas, eclesiásticos, homens da lei? onde se encontram? de que lugar falam? como podiam influenciar as famílias?

O próprio Ariès nos dá o encaminhamento da resposta. Em seu livro, ele indica a escola como uma das responsáveis pela mudança citada, na medida em que ela vai substituir o aprendizado como meio de educação. Expliquemos melhor: antes dos Tempos Modernos (já que é deles que falamos quando tratamos dos séculos XVI e XVII) a educação realizava-se pelo aprendizado fora da família original, junto a outras famílias; assim que a criança deixava de ser um infante (enfant, em francês) -um "não falante" -, ela era enviada para o convívio com outras famílias, em que aprendiam os hábitos, costumes, modos de ser, comportamentos, desde como servir à mesa (lembremos que uma das palavras que designam o jovem na língua francesa - garçon - chegou até nós em sua forma portuguesa de "garção" como identificadora daquele que serve à mesa) até como se vestir, cumprimentar as pessoas, etc.

A partir do século XVI temos então essa mudança: as crianças passarão a freqüentar a escola, em vez de se dirigirem às casas de outras famílias.

Vale a pena citar o próprio Ariès:

"[...] Isso quer dizer que a criança deixou de ser misturada aos adultos e de aprender a vida diretamente, através do contato com eles. A despeito das muitas reticências e retardamentos, a criança foi separada dos adultos e mantida à distância numa espécie de quarentena, antes de ser solta no mundo. Essa quarentena foi a escola, o colégio. Começou então um longo processo de enclausuramento das crianças (como dos loucos, dos pobres e das prostitutas)1 que se estenderia até nossos dias, e ao qual se dá o nome de escolarização" (Ariès, 1981, p.11).

Essas palavras nos mostram, então, um dos comportamentos do período estudado, que devem ser levados em conta para entender a origem do sentimento da infância: o ambiente escolar.

Essa pista, para um historiador da educação, permite-nos chegar a obras de educadores da época, como Comenius (1592-1670), Locke (1632-1704) e, como uma culminação desse processo de valorização da infância enquanto tal, já no século XVIII, Rousseau (1712-1778).

Antes de avançarmos um pouco além na pista acima, anotemos mais um trecho de Ariès que vem logo a seguir desse último que citamos:

"Essa separação - e essa chamada à razão - das crianças deve ser interpretada como uma das faces do grande movimento de moralização dos homens promovido pelos reformadores católicos ou protestantes ligados à Igreja, às leis ou ao Estado [...]" (Ariès, 1981, p.11; itálicos nossos).

Assinalamos o trecho acima para, justamente, apontar mais dois fatores - externos à família - que agiram marcantemente na geração do sentimento da infância a partir do século XVII: as reformas religiosas e a constituição do Estado Moderno. Vale notar que o próprio Ariès, em um outro texto (Ariès, 1991), chama a atenção para esses fatores, aos quais acrescenta o movimento de alfabetização, impulsionado principalmente depois da invenção e aperfeiçoamento da imprensa (desde o século XV).

Cremos que não é demais lembrar que, na prática, todos esses elementos estão reunidos. Apontemos a seguir alguns exemplos.

A reforma luterana teve como um de seus instrumentos de evangelização a criação de escolas. Podemos lembrar que um dos primeiros colégios propriamente ditos foi criado por J. Sturm, um luterano. O historiador Frederick Eby o considera o "fundador do ginásio clássico" (Eby, 1978, p.76).

A reforma católica vai ter na criação da Companhia de Jesus por Inácio de Loyola um de seus principais esteios, e a ordem jesuíta, por sua vez, vai fazer do ensino, em seus famosos colégios, um dos principais meios de defesa da Igreja Católica. É só pensar, aliás, na importância que os jesuítas tiveram na história da educação no Brasil, antes e depois do período pombalino.

Notemos também que, de um lado ou de outro das reformas religiosas - se pensarmos na polarização católicos x protestantes (simplificação válida apenas para facilitar a discussão no âmbito deste artigo) -, os Estados nacionais emergentes da Europa do início dos Tempos Modernos tomaram posição diante das mesmas, assimilando-as como religiões oficiais: as monarquias católicas de Portugal e Espanha, onde, aliás, a Inquisição foi muitas vezes mais um instrumento político do que religioso; a monarquia inglesa que faz do rei o chefe não só do Estado, mas também da Igreja Anglicana; a Suécia e a Noruega convertendo o luteranismo em suas religiões oficiais, o próprio galicanismo da época de Luís XIV na França, e por aí vai...

Mas é interessante notar que na formação do Estado Moderno - religião à parte -, particularmente no caso francês, a iniciativa do absolutismo monárquico, procurando controlar o mais que pudesse a vida do indivíduo, favorecerá também todo um processo de valorização da vida íntima das mesmas, no qual um dos aspectos será uma maior preocupação com os filhos, portanto, com as crianças. Pensamos que é também no âmbito da influência do Estado, em especial no que ele tem de busca de uma racionalidade administrativa2, que vamos encontrar a gênese da preocupação dos moralistas e dos homens da lei do século XVII, "a disciplina e a racionalidade dos costumes" citada por Ariès (Ariès, 1981, p.163).

Voltemos, porém, ao âmbito das escolas e dos educadores. Aqui, aproveitemos os três autores acima citados, Comenius, Locke e Rousseau, e vejamos alguns aspectos de suas obras que podem ter contribuído na constituição de uma idéia de "infância" na época considerada.

Um dos aspectos que podemos citar, comum aos três, é a valorização da criança no processo pedagógico. Todos os três levam em conta o amadurecimento biológico e mesmo psicológico da criança. O professor, ao ensinar, deve levar em conta as condições da criança, variáveis conforme sua idade.

Claro que, ainda que houvesse esse aspecto comum, existem diferenças marcantes entre os três, e uma das razões dessa diferença está no posicionamento religioso de cada um, o que, diga-se de passagem, confirma o que dissemos acima quanto à conjunção dos fatores políticos e religiosos, e, acrescentemos, culturais nessa época.

Comecemos pelo mais envolvido em religião dos três, Comenius, já que o mesmo era pastor. Poderíamos citá-lo simplesmente como "protestante", mas em seu caso isso seria uma simplificação deturpadora3.

Comenius pertencia à comunidade hussita, e isso o diferencia não só dos católicos, mas dos luteranos e dos calvinistas; arriscamos dizer que os hussitas eram "marginais" a todos os demais grupos, e isso os deixou também "marginais" politicamente, o que lhes valeu perseguições de todos os lados, mas que talvez expliquem, no caso de Comenius, o teor revolucionário, democrático e utópico, no melhor sentido desta palavra, o que o torna um autor importante até os dias de hoje.

Comenius é um dos primeiros educadores que propõem uma educação adequada a cada etapa do desenvolvimento humano, e vai mais longe quando admite que até os "debéis mentais" podem ser educados (Coménio, 1976, pp.35, 140, 175, 214). Sua proposta era o ensino de tudo a todos; crianças, adultos, deficientes, normais, qualquer categoria social, todos podiam e deviam ser educados.

Mesmo tendo em sua concepção a idéia de "pecado original", Comenius, no entanto, tem uma visão otimista do ser humano e vê na educação uma espécie de graça a mais (além da divina) que pode contribuir para a salvação da alma dos homens. É interessante este aspecto: Comenius valoriza a educação tanto quanto a vê como instrumento para a salvação eterna.

Devemos notar, também, que a extrema religiosidade de Comenius não o impediu de acompanhar os progressos do pensamento moderno, em particular as obras de Descartes e de Francis Bacon. Há no pastor hussita uma composição do racionalismo cartesiano e do empirismo baconiano.

Comenius talvez seja um dos raros (raríssimos) exemplos de que a religião não precisa, necessariamente, afastar os homens. Numa época de luta religiosa fratricida e extremamente violenta, ele conseguiu, principalmente devido a sua obra pedagógica - em que se destaca a Didactica Magna -, a simpatia dos católicos, luteranos, anglicanos e teve pelo menos uma de suas obras - a Janua linguarum (Porta das línguas) - traduzida já naquela época para o árabe, o turco, o persa e o mongol (Coménio, 1976, p.17).

Mas, de qualquer modo, é possível encontrar limitações em sua proposta educacional. Roque Spencer Maciel de Barros, por exemplo, em um artigo muito simpático a Comenius, aponta, no entanto, um "porém" talvez decisivo: apesar de todas as preocupações para com o aluno, o professor, entretanto, não o vê com autonomia suficiente para ser o próprio ponto de partida de um projeto educativo, o que para o educador paulista só acontecerá com a chegada de Kant e de Rousseau ao cenário da cultura ocidental (Barros, 1971, p.124).

Locke será uma espécie de transição entre o educador morávio e o educador franco-suíço. Isso porque, de um lado, Locke, como o elaborador do empirismo filosófico, que vê a alma humana como uma "tabula rasa", na qual o conhecimento só pode ser inscrito a partir de uma experiência que vem do mundo externo via sentidos (Locke bem poderia assinar o aforismo aristotélico "nada está no intelecto que antes não tenha passado pelos sentidos"), Locke, dizíamos, também espera que o educador obedeça aos passos do "desenvolvimento natural", biológico, psicológico do educando. Talvez não seja exagero ver em Locke um "precursor" das chamadas pedagogias ativas -ele chegou a propor que as crianças fossem alfabetizadas brincando com dados em que estivessem inscritas letras do alfabeto (um precursor dos jogos educativos?).

Mas, por outro lado, Locke era um homem de sensibilidade religiosa e, dessa forma, ao mesmo tempo que preconizava propostas como a acima lembrada, não via nenhum problema em que a criança aprendesse, desde pequena, a rezar orações como o "Pai Nosso", por exemplo, ou seja, que as decorasse.

De qualquer maneira, não se pode negar que ao lançar as bases de uma teoria do conhecimento de caráter filosófico-empirista, Locke, independentemente de suas possíveis contradições pessoais, criava condições para uma compreensão cada vez maior da psicologia humana (pelo menos até Freud...).

Por último (mas não finalmente), Rousseau.

Lembremos, de início, que Rousseau foi um leitor de Locke, conviveu com importantes representantes da Ilustração (ou Iluminismo) francesa, Diderot, particularmente, entre eles, e sofreu influência tanto da doutrina religiosa católica como da calvinista (às quais aderiu de uma forma um tanto quanto "utilitarista").

É a partir desse variado tempero que Rousseau vai elaborar sua concepção do homem, do mundo, da sociedade, do universo. No que nos interessa, sua obra fundamental é Emílio, ou da educação, publicada em 1762.

Para nossa finalidade, assinalemos que Emílio é a primeira obra sobre educação em que o educando é o verdadeiro centro do processo educativo. É ele que, concretamente, elabora o "programa" de seus estudos; nada é predeterminado pelo preceptor: este apenas conduz seu pupilo, a partir dos interesses expressos por este. É certo que é aí que muitos vêem o caráter utópico da pedagogia rousseauniana, sem falar na crítica daqueles que, mesmo admitindo-a possível, no entanto, a consideram impraticável nos moldes propostos originalmente por Rousseau, já que teríamos de ter um preceptor para cada pupilo, ou seja, seria uma educação totalmente individualizada. No mínimo dos mínimos, elitista.

Mas não há dúvida de que foi o aspecto, talvez, mais ético do que pedagógico, de um total respeito àquele que aprende, que deu à obra de Rousseau toda a importância que até hoje recebeu, e recebe. Há, até, um historiador da educação que intitula o capítulo sobre Rousseau, em sua História da educação moderna, "Rousseau: o Copérnico da civilização moderna" (Eby, 1978, p.277).

Rousseau costuma ser considerado "o pai do romantismo", entendido este em seu sentido filosófico. É aqui que reside, fundamentalmente, sua revolução copernicana, ao deslocar o eixo da compreensão do ser humano da razão para o sentimento; uma das palavras-chave do Emílio é sentir. Mesmo quando à primeira vista Rousseau parece estar seguindo um caminho estritamente racionalista, ele, em última análise, fecha sua argumentação com um sinto. É o que faz ao elaborar uma demonstração da existência de Deus, na parte do Emílio denominada "A profissão de fé do vigário de Savóia": depois de suas considerações, que lembram o argumento cosmológico de Aristóteles e mesmo de Santo Tomás de Aquino, ele nos desfecha um "Acredito portanto que o mundo é governado por uma vontade poderosa e sábia; eu o vejo, ou melhor, eu o sinto e é que me importa saber" (Rousseau, 1979, p.313; itálicos nossos).

Mas poderíamos citar também (e são talvez afirmações mais contundentes):

"[...] sentimos antes de conhecermos [...] (Rousseau, 1979, p.330).
"Existir para nós é sentir. Nossa sensibilidade é incontestavelmente anterior a nossa inteligência e tivemos sentimentos antes de idéias. [...]" (id., ib., p.320).
"Senti antes de pensar; é o destino da humanidade [...]" (id.,1965, p. 18).

Mas não confundamos esse "sentir" e esse "sentimento" com um mero "sensismo" (ou melhor, uma dependência total e mecânica da inteligência aos sentidos) ou com "sentimentalismo", no sentido novelesco (se assim podemos dizer) de "romântico" (o doce enlevo dos enamorados...). Consideremos o que diz o filósofo Luiz Roberto Salinas Fortes, para o qual, na obra de Rousseau, "a atividade do conhecimento não é mais deixada com exclusividade ao puro intelecto ou às impressões sensíveis. No conhecimento acha-se comprometido o homem na sua totalidade e, portanto, também o seu sentimento e suas 'paixões'. Trata-se, pois, de uma recusa do intelectualismo e do racionalismo" (Fortes, 1989, p.34).

Bem, para não nos alongarmos - para respeitarmos os limites de espaço que nos foram dados -, tentaremos resumir algumas idéias a partir do que já escrevemos acima.

Nem sempre o período da vida humana que denominamos "infância" foi visto e considerado como o vemos hoje.

Esse tipo de consideração, denominado pelo historiador Philippe Ariès "sentimento de infância", configura-se a partir do século XVI e principalmente durante o século XVII, atingindo uma espécie de culminância no século XVIII.

Em parte, esse conhecimento desenvolveu-se dentro da própria família, num momento em que esta também faz uma espécie de "encolhimento", buscando garantir sua intimidade, diante de certas forças externas, particularmente, o Estado.

Uma outra fonte geradora do sentimento de infância localiza-se nas obras de moralistas, homens da lei e eclesiásticos, principalmente durante o século XVII; essas obras situavam-se no contexto do grande movimento das reformas religiosas, nascidas no século XVI.

Outrossim, tudo isso está coincidindo com o desenvolvimento da instituição escola ou colégio, dentro de um processo de escolarizaçâo crescente que virá até o século atual.

Dentro desse processo destacamos, como outros exemplos de uma reflexão que levará a um reconhecimento cada vez maior da especificidade da infância e mesmo de sua autonomia, a obra de educadores como Comenius, Locke e Rousseau; este último, em especial, aparece como o apogeu desse reconhecimento, estabelecendo uma espécie de pedagogia puerocêntrica que permanece até os dias de hoje.

Com todas essas considerações, queremos apontar a idéia de que "infância" não é algo que pertença a uma natureza humana dada de uma vez por todas. Estamos, na verdade, diante do par dilemático natureza-cultura. É a infância um estado natural ou uma criação cultural? "Bebês", "crianças", no sentido de seres que têm certas características físicas durante um certo período cronológico de suas vidas, podem, de certa forma, serem vistos como expressão de fenômenos naturais (biológicos, fisiológicos), no entanto, desde muito cedo, no mínimo desde o momento do parto, para não dizer desde constatada a gravidez da mulher, ou mesmo antes, na condição de escolher, aceitar, planejar a própria gravidez, essa criança é "marcada", pela cultura, e entre essas marcas existe aquela que define sua condição "infantil", "adolescente", "adulta", "madura", da "terceira idade", "velhice", "senil", etc. Sobre isso é esclarecedor e agradável ler o primeiro capítulo do livro de Ariès intitulado "As idades da vida" (Ariès, 1981, pp.29-49).

Com o que foi posto neste artigo, cremos encontrar uma razoável "demonstração" da historicidade da idéia de infância. Não sabemos se a contribuição do historiador deve parar por aí. Se considerarmos o que o próprio Ariès afirmou em uma entrevista - "[...] penso que nunca segui um comportamento histórico que não tivesse como ponto de partida uma questão posta pelo presente" (entrevista concedida ao Le Nouvel Observateur, publicada no Brasil em Ensaios de Opinião n° 2 + 5; apud Ariès, 1981, contracapa) -, poderíamos, agora, analisar um outro momento da constituição da idéia da infância: o atual; até mesmo para responder à questão levantada nos parágrafos iniciais, mas isso implicaria um novo trabalho...

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Ariès, P. (1981). História social da criança e da família, 2ª ed. Rio de Janeiro, RJ: Guanabara.         [ Links ]

_____. (1991). Por uma história da vida privada. In P. Ariès & R. Chartier (orgs.). História da vida privada, 3: da Renascença ao Século das Luzes. São Paulo, SP: Companhia das Letras.         [ Links ]

_____. (1994). Um historiador diletante. Rio de Janeiro, RJ: Bertrand Brasil.         [ Links ]

Bachelard, G. (1978). A filosofia do não. Vol. Bachelard da Col. Os Pensadores. São Paulo, SP: Abril Cultural.         [ Links ]

Barros, R. S. M. de (1971). Em torno de Comenius. In Ensaios sobre educação. São Paulo, SP: Edusp/Grijalbo.         [ Links ]

Coménio, J. A. (1976). Didactica Magna. Tratado da arte universal de ensinar tudo a todos, 2ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.         [ Links ]

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Fortes, L. R. S. (1989). Rousseau: o bom selvagem. São Paulo, SP: FTD.         [ Links ]

Rousseau, J.-J. (1965). As confissões. Rio de Janeiro, RJ: Edições de Ouro.         [ Links ]

_____. (1979). Emílio ou da educação, 3ª ed. São Paulo, SP/Rio de Janeiro, RJ: Difel.         [ Links ]

 

 

Recebido em 11/98

 

 

NOTAS

1 Os leitores de Michel Foucault poderão fazer muitas reflexões interessantes sobre estas palavras de Ariès.
2 Lembremos que é no bojo desse processo que se configura a importante noção de "razão de Estado", que é por onde, por exemplo, devemos entender os casamentos reais, mesmo - e principalmente - os do "Barba Azul", Henrique VIII, rei da Inglaterra.
3 Afinal, concordamos plenamente com Gaston Bachelard e seu "paradoxo pedagógico": "[...] No que se refere ao conhecimento teórico do real, isto é, no que se refere a um conhecimento que ultrapasse o alcance de uma simples descrição - deixando também de lado a aritmética e a geometria -, tudo o que é fácil de ensinar é inexato. [...]" (Bachelard, 1978, p.14).