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Estilos da Clinica

Print version ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.4 no.6 São Paulo July 1999

 

DOSSIÊ

 

Estrutura e fantasia em educação na rua

 

Structure and fantasy on street education

 

 

Helder R. Dias Greco

Supervisor de educadores da Fundação Projeto Travessia, que atende crianças e adolescentes em situação de rua no Centro histórico de São Paulo

 

 


RESUMO

Partindo de um caso, pretendemos mostrar que a causa dita da saída de crianças e adolescentes de casa para viver nas ruas -agressões - não é mais que um efeito insistente que repete uma estrutura que se atualiza sempre no entrecruzamento das cadeias sintagmática e paradigmática do discurso.

Lévi-Strauss e psicanálise; psicanálise e discurso; educação na rua e psicanálise


ABSTRACT

Starting from a case, we intend to demonstrate that the cause spoken of children and adolescents leaving home to live in street - agressions - is nothing more than an insisting effect that repeats itself in a structure that always update at the intersection between the sintagmatic and paradigmatic chains from the speech.

Lévi-Straus and psychoanalysis; psychoanalysis and discourse; street education an psychoanalysis


 

 

Não é raro nos perguntarmos qual é a causa de crianças e adolescentes saírem de casa para viver nas ruas. O senso comum e a experiência mostram que a agressão em casa e a miséria são motivos bastante presentes no discurso das crianças e adolescentes em situação de rua, e são vias para o início do trabalho. Mas, quando um discurso como este ganha valor de causa e é tratado no campo do verdadeiro e do falso, perdemos outras dimensões importantes. Como Deleuze (1998), estou inclinado a escutar um discurso como efeito de um sentido evanescente. Para ele, as três dimensões da proposição - a designação, a manifestação e a significação -não indicam sentido sem a dimensão da expressão, que é o expresso da proposição e que está para além dela. O discurso se dá no entrecruzamento de uma cadeia sintagmática e de uma cadeia paradigmática: enquanto a primeira "escorre" seus termos numa linha de sucessão, em que o sentido se dá por oposições entre os termos, a segunda é "estrangulada" num ponto qualquer da primeira, mas ambos se referem à mesma estrutura. Assim, a causa dada é expressa por uma estrutura que a põe no campo dos efeitos. A partir de um caso, pode-se ver que a queixa de saída de casa como discurso de causa do fato de estar na rua transcende a uma escuta proposicional.

Como supervisor do Projeto Travessia, que atende crianças e adolescentes em situação de rua no Centro de São Paulo, recolhi um caso a partir de discussões em reuniões de supervisão com os educadores de rua que acompanharam o adolescente em questão. Agradeço, portanto, aos educadores na figura de Kátia Mercadante Catão Bastos e Rosemary Reguzino, além das supervisoras que comigo acompanharam estas discussões, Maria Júlia Azevedo e Cláudia Sintoni. A equipe conheceu um adolescente (aqui denominado por M.) de 12 anos que vivia na rua e quando, perguntado sobre o porquê de não querer ficar em casa, disse de pronto: "Meu padrasto é violento, e eu não agüento ver minha mãe apanhando dele". Assim, a causalidade estava posta: o padrasto é violento e bate na mãe. Morava em um pequeno barraco na Grande São Paulo junto com a mãe, o padrasto e um irmão mais novo, fruto desta união. O adolescente, visivelmente educado, encantava os educadores por sua inteligência e articulação. Fazia poemas e era bastante ligado às artes, tanto que conhecia e citava Tom Jobim -músico completamente fora dos padrões musicais dos meninos em sua situação. Nas ruas ficava com um adulto, carroceiro, que recolhia papéis. O adolescente algumas vezes retornava para casa e para a escola, onde permanecia por algum tempo. Despertava o mesmo encantamento nas professoras, que reconheciam nele inteligência e responsabilidade. Por duas vezes, largou a escola e a casa e voltou para as ruas; a primeira frustrado por não conseguir o papel que queria em uma encenação na escola e a segunda quando a professora corrigiu seu trabalho de fim de ano, fazendo críticas bastante pertinentes as quais ele não tolerou.

No contato com sua família, sua mãe nos contou que era filha adotiva e saiu de sua cidade no Nordeste para vir com o pai de M. O pai, depois de tê-la engravidado, abandonou-a e foi constituir família com outra mulher. A mãe nunca se conformou com isso e expressava seu descontentamento dizendo que ele arranjou uma mulher logo após a sua separação, enquanto, para ela, uma nova união só aconteceu depois de muitos anos. O menino não chegou a conhecê-lo, a não ser recentemente, quando a mãe quis mandá-lo para que o pai se responsabilizasse por ele, pois não podia mais conter suas fugas de casa. O adolescente pedia que, caso fosse morar com ele, não fosse revelada a sua vivência de rua.

A mãe veio a casar-se de novo, mais tarde, quando o menino já estava na segunda infância. Dizia que seu atual marido, o padrasto de M, fora abandonado pela família. Ninguém o queria, por ser alcoólatra, e ficava pelas ruas. Ela, com dó, acabou pondo-o para dentro de casa. Numa das visitas realizadas, o padrasto foi apresentado por M. como seu pai, e parecia que estavam se dando bem, até ocorrer nova saída de casa e a queixa de brigas com o padrasto. A situação parecia sempre a mesma: por um lado, a mãe dizia, ora que tinha pena do padrasto e que não podia abandoná-lo, pois ele não teria para onde ir, ora que ela teria que dividir o barraco com ele, se saísse.

Diante dessa situação, dois acontecimentos parecem ser esclarecedores no caso: o primeiro foi que a mãe, depois das tentativas frustradas de que o pai assumisse ficar com o filho, resolveu processá-lo para que pagasse pensão alimentícia. Seus planos eram de que voltassem para a casa da avó no Nordeste, e que M. fosse sozinho imediatamente e a família seis meses depois. Quando desta resolução, o menino, entre a casa e a rua, voltou para a rua e agrediu o carroceiro sem motivo explícito, dando-lhe uma pedrada na cabeça, que lhe tirou sangue. Nervoso, M. acusou-o de manter relações sexuais com um outro menino que ficava nas ruas - relações presenciadas por ele. Depois disso, retornou para casa. De posse da informação de que o menino seria levado para o Nordeste, foi feita uma visita e, diante das preocupações dos educadores se esta seria a forma mais adequada de tratar a situação, pois havia a suspeita de que ele fugiria de lá, a mãe, voltando-se de forma brusca e inesperada, disse: "Se o Travessia quer ajudar, que dê o dinheiro das passagens". Enfim, o fato de o pai ser processado causou um efeito importante: o menino voltou para casa, aceitando ir para o Nordeste, e o padrasto parou de beber e começou a trabalhar.

O menino foi para o Nordeste, onde passou menos de um mês, tendo tentado fugir por uma vez e saindo definitivamente após este tempo. Por toda a viagem, que fazia de carona, ligava para os educadores e não perdia o contato. Conseguiu, no Espírito Santo, uma carona com um caminhoneiro que ele acompanhou até Brasília e, finalmente, fazendo o trajeto do frete, chegou a São Paulo. Sempre, em cada parada, ligava indicando sua posição por telefone.

Desde então, o menino permanece nas ruas, mas mantém contato telefônico constante com a equipe. Por um período dizia estar na casa de um adulto em Carapicuíba, adulto este responsável, que trabalhava no Fórum e a quem acompanhava todas as manhãs ao trabalho no centro da cidade, retornando com ele para casa no final da tarde. Mais recentemente, estava na rua com dois meninos, sendo um mais velho e outro bem mais novo. Na última vez em que foi visto, veio ao Travessia conversar com os educadores, que lhe propuseram ficar em um abrigo. Quanto a isso, disse que tinha de resolver a situação do menino mais novo, pois tinha responsabilidade sobre ele.

O segundo acontecimento, também importante, foi que ele dizia que dormia junto com a mãe e o padrasto na mesma cama, e que, de noite, a mãe o empurrava.

Em primeiro lugar, as falas de agressões do padrasto à mãe como justificativas para as fugas de M. não são infundadas, pois a mãe não as negou. Porém, pode-se dizer que eram mais freqüentes as brigas entre M. e o padrasto, mas estas estavam mais para uma relação de disputa que para agressões. Discussões, por exemplo, por causa da bicicleta que o padrasto pegou do adolescente sem pedir ou por escolha do canal de televisão. Para tentarmos elucidar melhor os elementos em questão, podemos, desde já, tentar nos aventurar por algumas indicações: notadamente a atitude da mãe em processar o pai. Não podemos deixar de fazer uma forte relação entre a atitude da mãe, até então inibida, de processar o pai, e sua atitude para com os educadores, bastante diferenciada até então, quando nos impede de resolver qualquer questão sobre o futuro do filho, a não ser com as passagens para o Nordeste. A mãe nos punha na mesma posição que o pai, ou seja, fora da decisão, pois ambos, pai e Travessia, se quisessem responsabilizar-se pelo menino, que o fizessem com dinheiro -pensão e passagens. De fato, este posicionamento da mãe gera os efeitos indicados acima: o menino volta para casa e o padrasto pára de beber.

A título de hipótese, podemos pensar que, desde a saída do pai, este lugar nunca foi ocupado, ou de forma diversa, era ocupado pela sua ausência, sob o termo responsabilidade. Quando a mãe processa o pai, os posicionamentos se equilibram. O lugar do pai, que até então era um lugar de responsável na ausência, passa agora a ser presentificado por via judicial, simbolizado no sistema pela responsabilidade jurídica, que ao mesmo tempo lhe dá um lugar e delimita seus efeitos. O lugar do pai, então, sob o termo responsabilidade pela ausência, aparecia no comportamento do menino nas ruas, seja de forma passiva - sempre acompanhado de um adulto -, seja de forma ativa -sua responsabilidade na escola e nos cuidados com uma criança mais nova por quem verbalizou ser responsável -, ou mesmo em meio-termo - quando atribui aos educadores a responsabilidade por ele, na mesma medida em que cumpre rigorosamente as ligações nos horários combinados. Podemos encontrar no sintoma de sair de casa um desejo sustentado pela mãe, diretamente relacionado com a responsabilidade do pai, numa equação: fugas de casa -retorno do pai, de onde M. respondia.

Delimitado o lugar do pai, pela via judicial, o padrasto pode ocupar o lugar de marido da mãe. As discussões e brigas entre menino e padrasto eram temidas, já que adolescente e padrasto estavam na mesma posição de filho, e assim o adolescente poderia, caso conseguisse vencê-lo, ascender ao lugar vago deixado por seu pai e que o padrasto jamais ocupou. Pode-se pensar, então, que a mãe, designando um lugar judicial ao pai, faz com que toda a cadeia se reajuste.

Como afirmei anteriormente, o adolescente, em dado momento, nos diz que dormia na mesma cama com o padrasto e a mãe. "Eu sou empurrado da cama", dizia. Em alguns trabalhos que M. realizou no Programa de Educação na Rua, a questão central parecia ser a relação sexual entre a mãe e o pai. Numa destas histórias que produziu, ele quer insistentemente saber como são feitas as crianças e sempre é enganado pelos adultos. Não podemos deixar de pensar no carroceiro, acusado de manter relações sexuais com outros meninos e presenciadas à noite por ele. Este conteúdo remete diretamente à afirmação de dormir na mesma cama que a mãe e o padrasto.

Estou inclinado a pensar na causa de saída para as ruas do menino como uma sobredeterminação de fatores, na qual a fuga é resposta a uma tentativa de resgatar um modelo paterno, fazendo um apanhado do desejo da mãe, que só pode se resolver em ato, ou seja, fugir de casa. Quanto ao modelo paterno, vemos que é um condensado de um pai "em fuga" ou (i)responsável, que abandonou a mãe, e um homem abandonado pela família na rua; condensado este do qual ele se socorre quando o modelo paterno é exigido e que o leva diretamente para as ruas (pai em fuga + homem abandonado = desejo da mãe).

Comecei o relato indicando que a causa dada para as saídas de casa eram as agressões do padrasto, mas fomos conduzidos por outras vias, que nos levaram a outras possíveis causas.

Em A estrutura dos mitos, Lévi-Strauss (1991) mostra que o pensamento mítico é realizado a partir da tomada de consciência de uma oposição, e tende a fazer mediações progressivas na tentativa de anular uma contradição real, mas, não sendo possível, entra em uma série de mediações que fazem novas oposições entre si, criando novas séries de correlações. Sendo que os mitos se contam, segundo uma perspectiva estruturalista, pode-se fazer uma tentativa de que este caso seja contado por ele mesmo.

Em Le cru et le cuit(1964) Lévi-Strauss encontra uma estrutura lógica em que os mitos se encaixam, e chama de "armadura" dos mitos esta estrutura, como no exemplo retirado de Estrutura e mito,de Pandolfo & Mello (1983):

(doadores: receptores) :: M 20 (pássaros: homens) :: M 15 (homens: porcos) sendo que os doadores de mulheres estão para os receptores de mulheres, assim como, no mito 20, pássaros estão para homens e, no mito 15, homens estão para os porcos.

Pode-se tentar recolher dos acontecimentos que o caso nos mostra as relações insistentes que se repetem durante todo o processo, seja nos discursos ou em atos. Encontradas estas insistências, pode-se, através de suas relações, encontrar oposições e inversões e ainda ver as posições significantes deste relato, formando, como nos mitos, uma "armadura" do caso.

Não vamos muito longe para encontrar as oposições insistentes:

As primeiras oposições se apresentam desde o início, quando encontramos uma relação recíproca de abandono e adoção, que criaram como mediadores as oposições fuga e responsabilidade, sendo fuga o inverso de responsabilidade e um correlativo do abandono.

Acontecimento 1

Mãe abandonada (posição do filho) é adotada pela avó (posição da mãe).

(Abandono: Adoção: Fuga) : : (Mãe : Avó : Mãe Biológica)

Acontecimento 2

Mãe e filho abandonados (posição do filho) por pai fugido

(posição do pai...) que se responsabiliza (...na posição da mãe) por nova família.

(Abandono : Fuga : Responsabilidade) :.- (Mãe e Filho : Pai: Pai fugido)

Neste contexto, o abandono do pai põe a mãe e o filho na posição do filho (abandono), dada no início da cadeia de oposições, sendo este abandono do pai um correlativo do que se formará com o termo fuga, enquanto a responsabilidade lhe faz oposição. O termo responsabilidade traz um pai na posição da mãe, que, pela adoção na relação mãe e filho, faz uma série conjunta com a do pai. Neste caso, o pai é responsável na sua ausência. Ambos, fuga e responsabilidade, chamaremos de série paterna.

Acontecimento 3

Mãe (posição da mãe) adota padrasto abandonado pela família (posição do filho).

(Abandono : Adoção : Fuga) :: (Padrasto : Mãe : Família Padrasto)

Acontecimento 4

Padrasto adotado bate na mãe, e o menino foge de casa (filho na posição do pai) e fica sob responsabilidade de um adulto na rua - carroceiro (pai na posição da mãe).

Deixemos ainda em suspenso a relação da agressão dentro da estrutura, pois ela não pode ser explicada antes de introduzirmos novas mediações. Limitemo-nos a mostrar que a posição de abandono pelo pai introduz o termo fuga.

Acontecimento 5

Menino fugido de casa (filho na posição do pai...) responsabiliza-se (...na posição da mãe) por menino abandonado (posição do filho).

(Abandono: Fuga: Responsabilidade) :: (Menino abandonado e mãe: Filho fugido : Filho)

Assim:

Chegamos, então, a uma "armadura" do caso:

(Abandono : Adoção : Fuga : Responsabilidade) : :

(Posição do filho : Posição da mãe : Filho na posição do pai: Pai na posição da mãe)

Cada acontecimento enquadra-se em uma estrutura em que há inversões de sujeitos em cada lugar ou posição indicada, criando nas séries posicionamentos que se apresentam como uma estrutura insistente.

Dito isso, podemos agora ver estes efeitos que se apresentam em cada acontecimento, em que a estrutura se repete, a partir do modelo do par significante apresentado por Juan David Nasio em Os olhos de Laura (1991).

Chamaremos as formações atuais, ou produções da estrutura, de S1 (o Um), contra S2 (os outros), que será a própria estrutura, sendo SI a produção discursiva da estrutura S2, que só insiste e que só pode adquirir existência através de S1, mas que não a significa. Portanto S1 é efeito de S2, mas S2 não é sua causa.

Em que posição entrou a mãe quando processou o pai, fato que fez um novo reajuste da cadeia, invertendo posições?

S1 - Mãe processa o pai, e o padrasto pára de beber e começa a trabalhar, enquanto o menino volta para casa e é mandado para a avó no Nordeste.

Dentro deste acontecimento, temos todas as posições indicadas anteriormente. Seguindo o quadro acima, vemos que a mãe encontrava-se na posição do filho (abandono) em relação recíproca com o lugar do pai. Enquanto abandonada, a mãe estava tanto na posição do filho quanto na posição de esposa. Quando o pai abandona a família, marca a posição do filho na relação com a paternidade por um filho abandonado por fuga de uma responsabilidade, mas marca também, o lugar de marido, que é esperado pela mãe. O padrasto respondia do lugar de filho (adotado), mas de um filho indicado pela responsabilidade em relação recíproca com o lugar da mãe, de forma que padrasto e menino ocupavam a mesma posição de filho, o primeiro adotado e o segundo abandonado. Quando o menino foge, indica duas posições: como filho que não pode ascender ao lugar do pai em conflito com o posicionamento fraterno com o padrasto, mas, em sentido inverso, responde da posição de marido da mãe, agora abandonando-a desde o lugar de pai fugido.

Em S1, a mãe abandona o pai fugido quando o processa via judicial, invertendo o posicionamento, pondo-o na posição do pai da responsabilidade; trazendo este lugar para dentro do sistema de forma simbólica, pois está sujeito à outra ordem. Agora o lugar do pai pode ser ocupado pelo padrasto, que passa a ter uma boa relação com o menino. Entretanto, a estrutura repete-se em S1. Quando a relação entre a mãe e o padrasto se equilibra, o menino é mandado para fora, agora sob a responsabilidade da avó. Neste sentido, a fuga do adolescente da casa da avó é o inverso da primeira situação de fuga da casa da mãe, pois é um retorno, ou melhor, um movimento centrípeto.

Todos os acontecimentos são da ordem de S1, ou seja, são efeitos e não causas; efeitos evanescentes do sentido, pois não há nada em S2, a não ser a insistência que atualiza, a partir do acaso, os vários S1.

Concluí que os acontecimentos primeiros não causam os segundos, mas que todos estão sujeitos à mesma estrutura discursiva de S2. Assim, a causa dita de saída de casa por agressões do padrasto à mãe deve ser encontrada dentro da estrutura, em S2. Neste sentido, a produção atualizada do adolescente sobre a causalidade de sua saída de casa não deve ser mais vista como causa, mas sim efeito da mesma estrutura insistente. Retornemos a ela a partir de outras produções discursivas.

S1- fuga de casa porque não agüenta ver a mãe apanhando do padrasto.

Cheguei a uma produção anterior de onde podíamos ver que o adolescente e o padrasto se encontravam na mesma posição, e que pode servir como intermediária para a causa expressa pelo adolescente.

S1' - Dorme junto com a mãe e o padrasto. A mãe o empurra da cama.

Até o presente momento, a estrutura acima nos levou a considerar que a mãe abandonada pelo pai fugido/responsável deixava um espaço vago e indefinição nas posições do menino e o padrasto, ambos na posição do filho (com responsabilidade ou sem responsabilidade), com possível ascensão ao lugar de marido. De forma "sobredeterminada" o menino ocupava o lugar de pai na representação fuga que punha a mãe na posição de abandonada pelo marido e o lugar de filho em conflito com o padrasto, para ascensão à posição vaga (fuga ou ausência de responsabilidade).

S1 e S1' são ambos produções que levam à mesma marca, à qual chegamos pelos posicionamentos na insistência de S2 através de S1.

Parti do pressuposto de que o adolescente, por estas produções, repete algo que podemos identificar como da cena primária, ou melhor, a relação sexual entre a mãe e o pai, da qual está excluído. As representações do pai ou do desejo da mãe encontram-se em um pai fugido ou um padrasto abandonado.

Seguindo Freud em "Uma criança é espancada" (1976b), encontramos que a construção imaginária do bater-apanhar pode muito bem substituir o componente sexual de uma relação, e estas transformações ocorrem tanto entre o conteúdo da relação (sexual/agressivo) quanto de sujeito e objeto da ação. Tendo presenciado agressões à mãe, estas, como restos diurnos do sonho, como indicado por Freud em A interpretação dos sonhos (1976a), podem representar o pensamento indizível, no caso, seu desejo e sua exclusão da cena primária.

Chamarei de (X) esta relação indizível entre a mãe e o pai, e teremos, para a cena primária, a seguinte formulação:

Mãe ( X ) Pai

- Menino fora -

Entretanto, a relação entre os termos era a seguinte:

Mãe abandonada ( X ) Lugar vazio

Pai fugido/responsável

- Padrasto e filho fora -

Ora, quando o padrasto era chamado no lugar do pai, o menino estava no lugar da exclusão, quando era ele chamado nesta posição, não poderia responder neste lugar senão pela representação fuga, condensado da posição pai + posição marido

Considera-se, então, desde Ferdinand de Saussure (1995), que o discurso se dá no entroncamento entre uma cadeia sintagmática e uma cadeia paradigmática, que ele chamou de relações associativas. Quando o menino diz "meu padrasto bate em..." está pondo em um eixo horizontal uma série que poderia ser dita de modo diverso, mas que foi escolhida por um mecanismo para ser posta em uma ordem de sucessão, em que as idéias conjuntas devem ser distribuídas para serem significadas em linha e, em um desfile de significantes, são expressas segundo sua distribuição no eixo - estamos na ordem do sintagma. Enquanto na ordem paradigmática seguem a escolha aleatoriamente, ou melhor, por associações intrínsecas próprias, dadas em simultaneidade, que são "escolhidas" num ponto preciso do eixo sintagmático. Podemos dizer que a primeira é do campo da substituição sucessiva, combinatória, metonímica, enquanto a segunda é do campo da substituição por similaridade, correlativa e metafórica.

Neste termos, então, pode-se dizer que as expressões de S1 e S1', enquanto expressões sintagmáticas, são cortadas pelo eixo paradigmático da seguinte forma:

Assim, pode-se encontrar em SI e S1' tanto a expressão de uma exclusão, quanto uma ausência desta exclusão, apresentadas em inversões de conteúdo e de sujeito.

Mãe apanha do Padrasto = Sujeito copula Objeto = Mãe empurra menino

Quando a mãe apanha do padrasto, indica uma série sexual ao mesmo tempo que a nega. Neste sentido, o adolescente, negando a relação sexual entre eles, posiciona-se no lugar de marido, já indicado pelo abandono por fuga. Inversamente, o termo sexual indicado pela agressão do padrasto, retorna em SI', quando é o menino que está nesta relação com a mãe, mas aí deve ser excluído da cama.

Quando esta relação ocorre, o adolescente não pode responder no lugar do pai por uma simbolização. Este chamamento na posição de desejo da mãe não pode ser substituído senão por uma passagem ao ato, ou seja, o abandono da mãe (fuga).

Assim, a causa indicada pelo menino não é mais que um efeito que remete a uma ordem insistente que não cessa. A proposição, mesmo sendo verdadeira, indica mais do que a cadeia sintagmática faz ouvir.

No discurso, a série sintagmática indica sentido preciso quando os sujeitos se referem às suas próprias histórias, mas, devido à cópula inconsciente dos significantes em questão, o sentido se dá por si mesmo em inversões, e mediações que ampliam as séries em correlativos. A cadeia paradigmática busca uma significação dentro da série, ou seja, os elementos reúnem-se para significarem-se mutuamente. As significações não adquirem direitos de significados, significam-se entre si, reunindo-se, separando-se e formando novos termos não dizíveis. Os sujeitos passam a ser efeitos da cadeia da estrutura. Desta forma, sob efeito de "carta roubada" (Lacan, 1990), o sujeito não pode sair da estrutura que o significa, já que é prisioneiro de algo que insiste fora, pois um significante é o que representa o sujeito para outro significante.

"Não agüento mais ver meu padrasto bater na minha mãe", causa dita, significada, coerente e coextensiva ao mundo, mas, puro efeito, sentido expresso, pura significação.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Deleuze, G. (1998). Lógica do sentido. São Paulo, SP: Editora Perspectiva.         [ Links ]

Freud, S. (1900). A Interpretação dos sonhos, In Obras psicológicas completas. ESB. Rio de Janeiro, RJ: Imago, v, V, 1976a        [ Links ]

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Lévi-Strauss, C. (1964). Mythologique - Le cru et le cuit. Paris. Plon        [ Links ]

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Nasio, J. D. ( 1991). Os olhos de Laura, o conceito de objeto "a" na teoria de Lacan, seguido de: Introdução à topologia psicanalítica. Porto Alegre, RS: Artes Médicas.         [ Links ]

Pandolfo, M. C. P. & Mello, C. M. M. (1983). Estrutura e mito, Introdução a posições de Lévi-Strauss. Rio de Janeiro, RJ: Tempo Brasileiro.         [ Links ]

Saussure, F. (1995/. Curso de lingüística geral. São Paulo, SP: Cultrix.         [ Links ]

 

 

Recebido em 08/99