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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.4 no.6 São Paulo jul. 1999

 

FUNDAMENTOS

 

Perversões ou perversão

 

Perversions or perversion

 

 

Geraldino Alves Ferreira Netto

Psicanalista, diretor do Fórum de Psicanálise, em São Paulo

 

 


RESUMO

O conceito de perversão era usado na Psiquiatria para catalogar comportamentos sexuais desviantes da norma. Freud designou como perversão uma posição subjetiva direcionada ao desmentido da castração. Segundo Lacan, a perversão é sobretudo um fato de linguagem.

Perversão; psicanálise; linguagem


ABSTRACT

The concert of perversions was used in Psychiatry to list sexual behaviors turning aside from the normal course. Freud called perversion a subjective position toward the disavowal of castration. According to J. Lacan, perversion is more a fact of language.

Perversion; psychoanalysis; language


 

 

Entre os muitos conceitos complexos e difíceis de definir na teoria psicanalítica, o de perversão ocupa um dos primeiros lugares, gerando equívocos e ambigüidades, seja pela abordagem médico-psiquiátrica com que é geralmente tratado, seja pela contaminação moralista ou religiosa de que dificilmente consegue escapar. Isto sem falar de outro vício comum mesmo em publicações psicanalíticas, que consiste em identificar a perversão com a homossexualidade, fazendo desta última uma' suposta estrutura clínica.

O termo perversões, no plural, surgiu na psiquiatria e na sexologia, designando uma série de práticas sexuais consideradas desviantes com relação à norma social ou moral, ora num sentido pejorativo, ora positivamente valorizadas.

A partir de 1850, os manuais de psiquiatria elaboraram a primeira lista oficial das perversões com os seguintes itens: incesto, homossexualidade, zoofilia, pedofilia, pederastia, fetichismo, sado-masoquismo, transvestismo, narcisismo, auto-erotismo, coprofilia, necrofilia, exibicionismo, voyeurismo, mutilações sexuais.

A entrada em cena da psicanálise, pela porta da histeria, fez com que Freud elaborasse minuciosamente e dominasse com bastante segurança a teoria das neuroses. Entretanto, e conseqüentemente, a compreensão do fenômeno neurótico trazia em seu bojo, pelo lado avesso, o conceito de perversão, já agora no singular. Assim, em 1897, em carta a Fliess, faz a famosa afirmação de que a neurose é "o negativo da perversão". Entendia, com isso, que tudo o que o neurótico recalca é justamente aí que o perverso acentua o caráter bárbaro, polimorfo e pulsional de uma sexualidade infantil, em estado bruto, que não respeita devidamente a interdição do incesto, nem o recalque, nem a sublimação. Freud adota o conceito de perversão ainda como desvio sexual em relação a uma norma, embora desprovido de qualquer conotação pejorativa ou valorativa, fundando aí o trio das estruturas clínicas:

neurose, novo domínio incontestável da psicanálise;

psicose, tradicional domínio da psiquiatria;

perversão, campo antes dominado pelo direito e pela sociologia, como perversões.

O conceito psicanalítico de perversão propriamente dito só foi elaborado depois que surgiu a teorização sobre as pulsões, em substituição aos instintos. Assim, as perversões, ligadas aos instintos, apontam para desvios, aberrações e inversões na função biológica, partindo do pressuposto de que o objetivo da sexualidade é a reprodução, cujo objeto é definido, enquanto a perversão, no rastro da pulsão, cujo objeto é indefinido e que aposta na finalidade de obter prazer na sexualidade, designa uma posição subjetiva diante da castração e da lei.

Na história da humanidade, as perversões sempre ocuparam um lugar de destaque nas artes, tanto no Oriente como no Ocidente, com variações e nuances de acordo com cada época, cada país ou cultura, acompanhando os costumes. Ora eram marginalizadas pela sociedade e pela religião, ora eram altamente valorizadas na literatura, na poesia, na filosofia, como superiores às práticas ditas normais.

Ainda hoje, por exemplo, a mutilação sexual feminina (excisão e infibulação) é aceita e praticada em algumas regiões da África, com a finalidade de abolir o desejo e o prazer sexual das mulheres, ao mesmo tempo que é considerada um crime na Europa. Na China ainda se pratica o genocídio infantil feminino, com a finalidade de controlar o aumento da população feminina, considerada improdutiva. A emasculaçâo dos homens no Antigo Egito e na índia foi aceita ou não, dependendo de circunstâncias históricas. O próprio cristianismo produziu seus eunucos, para garantir a harmonia melodiosa dos sopranos masculinos, nos corais das catedrais

Na Grécia Antiga, a homossexualidade era a forma suprema do amor desinteressado, cantada em prosa e verso no Banquete de Platão. No cristianismo, ela é considerada vício e pecado ainda hoje. Na psiquiatria do século passado, era uma degenerescência.

E mais recentemente, em 1974, alguns países democráticos começaram a incluir em sua legislação o casamento entre homossexuais, com todos os direitos contratuais, até mesmo permitindo a adoção de filhos e as garantias de herança e de bens. No Brasil, começa um movimento reivindicatório nessa direção.

Em Freud, sobretudo no início, a teoria da perversão e da homossexualidade ressente-se da mesma ambigüidade que caracterizou sua visão sobre a sexualidade feminina. Por um lado, rejeita qualquer idéia de tara ou degeneração na perversão, quando aplica a todas as pessoas, especialmente na infância, a "disposição perversa polimorfa". Por outro lado, conserva a idéia de norma e desvio na sexualidade, que só aos poucos vai se arejando.

A partir de 1905, aquele mesmo Freud que era admirado e cumprimentado nas ruas de Viena, por causa de suas teorias sobre a interpretação dos sonhos, passa a ser supermalvisto após a publicação de seus escandalosos ensaios sobre a teoria da sexualidade, especialmente a infantil, um dos lampejos mais profundos, fecundos e clarividentes que já se produziram a respeito dessa singela criatura chamada criança. Reutilizando o plural perversões, distingue dois tipos: as perversões de objeto e as perversões de objetivo.

O objeto da sexualidade pode ser:

humano (incesto, homossexualidade, pedofilia, auto-erotismo);

não-humano (fetichismo, zoofilia, transvestismo).

Com relação ao objetivo da sexualidade, há três tipos de prazer:

o visual (exibicionismo, voyeurismo);

o de sofrer ou fazer sofrer (sadismo, masoquismo);

a superestimação exclusiva de uma zona erógena, como a boca (felação) ou o aparelho genital.

Nenhuma dessas práticas sexuais é intrinsecamente perversa. Desde que produza prazer, o ato é simplesmente uma forma a mais dentro do polimorfo. A designação de perversão é extrínseca ao ato em si, e é definida pela exclusão de outras práticas prazerosas. O ato seria então perverso não pelo que se faz, mas pelo que se deixa de fazer. E foi justamente neste ponto que Freud levantou a dúvida cruel, assinalada em nota de rodapé, se a heterossexualidade, quando praticada com exclusividade, não seria também classificável como perversão.

De 1915 em diante, com a metapsicologia e depois com a segunda tópica, Freud dá o passo decisivo das perversões para a perversão como paradigma da organização do ego, baseado no conceito de clivagem.

De 1923 a 1927, Freud busca desesperadamente um mecanismo que dê conta da psicose e da perversão. Nos textos sobre "A organização genital infantil", de 1923, "A perda da realidade na neurose e na psicose", de 1924, "A negação", de 1925, "Inibições, sintomas e angústia", de 1926, e "Fetichismo", de 1927, introduz o conceito de Verleugnung, ou desmentido, mostrando que as crianças negam a realidade da falta de pênis na menina. Neste momento, este mecanismo de defesa caracteriza a psicose, pela negação da realidade, enquanto na neurose há o recalque das exigências do id.

Entretanto, para chegar à Verleugnung, foi necessário um longo percurso. Em 1927, Freud entra em contato com o francês René Laforgue, o qual já havia citado em alguns dos textos acima, e com quem discute sobre o conceito de escotomização, surgido de um outro conceito utilizado de 1895 a 1917, que era a alucinação negativa.

Laforgue, citado por Roudinesco (1988), foi o primeiro discípulo francês de Freud, um dos introdutores da psicanálise na França, e diretor do Grupo Evolução Psiquiátrica. Escreveu o livro La psychanalyse et les néuroses, e ficou famoso como clínico, principalmente pelos trabalhos com pacientes psicóticos. De certa feita foi informado sobre um paciente que não conversava com ninguém já havia doze anos, e que proferia sempre uma única e mesma frase. Apesar de aconselhado a não perder tempo com este caso, em que todos haviam fracassado, Laforgue assume o desafio de fazer o paciente falar. Dirige-se a ele e pergunta: quem é você? Resposta de sempre: "Sou o cavalo de Nancy, com a mulher em cima". Ao que Laforgue retrucou: "Bom dia, Joana d'Arc". E o paciente: "Até que enfim, um homem me compreende". E voltou a falar normalmente.

Laforgue fez supervisão com Freud, bem como manteve uma longa correspondência com o mestre. No texto sobre o fetichismo, Freud cita uma frase do discípulo: "O menino escotomiza sua percepção da falta de pênis na mulher". Mais tarde, afastou-se de Freud por causa de ciúmes pela princesa Maria Bonaparte.

Outro nome decisivo nesse momento importante da teoria psicanalítica é o do pouco citado Édouard Pichon, autor da famosa Gramática, em sete volumes, e de um artigo intitulado "Sur la signification psychologique de la negation en français". Ele aprofundou o conceito de escotomização, que na oftalmologia indicava uma impressão visual- incidindo sobre um ponto cego da retina, aplicando-o à psicanálise como "um mecanismo inconsciente ou uma cegueira, pelo qual o sujeito faz desaparecer da memória ou da consciência certos fatos desagradáveis".

Segundo Elisabeth Roudinesco, Pichon chegou ao inconsciente freudiano através da gramática. Afirmava que a negação gramatical tinha a ver com a separação entre consciente e inconsciente. E a língua francesa tem uma particularidade ímpar com relação à negação. A frase negativa utiliza dois advérbios ao mesmo tempo, dos quais nenhum por si só é negativo. Antes do verbo, vem a partícula ne,e depois do verbo podem vir pas, rien, jamais. Numa linguagem erudita, o ne pode ser suprimido: "J'en sais rien" (não sei nada disso). Portanto, o elemento negativo está mais no segundo membro. A particularidade consiste no seguinte: quando o segundo membro é constituído por rien, aucun, personne, plus, guère,etc., a negação aplica-se a fatos que o locutor já não encara como algo que faz parte da realidade. O seguinte diálogo de uma entrevista jornalística ilustra a questão: "O caso Dreyffus, disse Esterhazy, é para mim um livro fechado para sempre". Resposta do jornalista: "Il dut se repentir de l'avoir jamais ouvert"(deveria arrepender-se de tê-lo aberto). O fato aludido estava forcluído.Pichon chamou de forclusiva a segunda parte da negação na língua francesa. Um fato acontecido era afetivamente excluído do passado.

Numa outra característica da língua, a expressão ne... queacumula, ao mesmo tempo, uma afirmação e uma negação, como na frase: je ne parle que français (eu só falo francês). Nesta frase há uma negação (eu não falo) e uma afirmação (eu falo), exatamente como Freud concebia a denegação na clássica frase de seu paciente: não é minha mãe, que deve ser entendida como: (é minha mãe, mas não suporto isto). Aliás, é pouco provável que Pichon tivesse conhecimento do texto de Freud sobre a denegação, escrito em 1925, mas só traduzido para o francês em 1934.

Pichon teve, portanto, um papel essencial na história da psicanálise. Aprofundou a polêmica Freud-Laforgue sobre a escotomização e inventou, em 1928, o conceito mais apropriado de forclusão, tirado de um fenômeno da língua, como que antecipando a tese lacaniana do inconsciente estruturado como linguagem. Enquanto a escotomização mantinha a psicose como patologia médica, a forclusão situava o mecanismo da psicose como fenômeno de linguagem, e não como anomalia. Curiosamente, e estranhamente, o Vocabulário de psicanálise publicado pela dupla Laplanche-Pontalis (ex-analisandos de Lacan) atribui a invenção do conceito de forclusão a Lacan, sem nenhuma referência a Pichon. O próprio Lacan apresentava-se como autor da façanha. Entretanto, 25 anos depois, no Seminário I, em 1954, Lacan retoma o mesmo debate, agora com Jean Hyppolite, não mais pela vertente da escotomização, mas da denegação.

A algumas particularidades da língua francesa, portanto, devemos os conceitos de denegação, desmentido e forclusão. Com base na experiência clínica com o elemento fetiche, Freud postula que na perversão há duas realidades opostas e simultâneas: por um lado, a negação e, por outro, o reconhecimento da ausência de pênis na mulher. Ausência esta que o fetiche escamoteia. É a mesma clivagem do ego, antes entendida como mecanismo da psicose, agora estendida à neurose e à perversão, que passa a se alinhar com as estruturas clínicas, assim descritas:

neurose: conflito interno, seguido de recalque;

psicose: reconstrução de uma realidade alucinatória;

perversão: denegação ou desmentido da castração, com fixação na sexualidade infantil.

Sendo assim, o percurso de Freud até então consistiu em ultrapassar a descrição das perversões, para chegar a um mecanismo geral da perversão que, mais do que apontar para uma disposição polimorfa infantil, descreve a atitude de uma escolha subjetiva diante da diferença anatômica dos sexos, tanto no homem quanto na mulher.

Depois de Freud, de 1930 a I960, seus discípulos continuaram a estudar a perversão, mas abdicaram do espírito do mestre, a ponto de proibir os perversos, agora identificados aos homossexuais, de praticar a psicanálise em todas as sociedades ligadas à IPA, sob o pretexto de que poderiam prejudicar os pacientes, numa época em que nem mais a psiquiatria encarava as perversões com moralismo.

Com Lacan, a perversão ganha status inconteste de estrutura, juntamente com a neurose e a psicose, que passam a ser pensadas como versões diferentes da relação do sujeito com a lei da castração, cada versão podendo ser chamada de Père-version, a versão do Pai.

Ligado à tradição da poesia erótica, da filosofia de Platão e da corrente libertina na literatura, afirmava que somente os perversos sabem falar da perversão. Aprofunda dois conceitos da psicanálise, o desejo e o gozo, dizendo que a perversão é uma componente do funcionamento psíquico do homem e da mulher, um desafio permanente à lei.

Em 1956, no seminário sobre a relação de objeto, que é mais uma teoria da falta de objeto, esclarece que, se existe alguma inversão, é a inversão (ou deslocamento) do simbólico pelo imaginário, característica da perversão. É assim que Lacan interpreta a afirmação de Freud, segundo a qual a neurose é o negativo da perversão:

"Aquilo que estava articulado de maneira latente no nível do grande Outro começa a se articular de maneira imaginária, à maneira de perversão, e é, aliás, por essa razão e não por outra que isso vai resultar numa perversão" (p.120).

Como conseqüência dessa inversão e do desmentido, a perversão vai se caracterizar pela dessubjetivação:

"Resta, com efeito, uma dessubjetivação radical de toda a estrutura, em cujo nível o sujeito ali está reduzido ao estado de espectador..." "No nível da fantasia perversa, todos os elementos estão lá, mas tudo o que é significação está perdido, a saber, a relação inter-subjetiva. O que se pode chamar de significantes em estado puro mantém-se sem a relação intersubjetiva." "Vocês vão encontrar aí o que eu chamei de metonímia, que consiste em dar a escutar alguma coisa, falando de uma coisa completamente diferente." "Existe aí como que uma redução simbólica, que eliminou progressivamente toda a estrutura subjetiva." Trata-se de um "jogo de tapeação", um falso pacto.

Nesse ponto, Lacan está comentando o texto freudiano "Psicogênese de um caso de homossexualidade feminina", de 1920, que ele denomina "A jovem homossexual": Uma moça decide aproximar-se de uma prostituta, com a qual supostamente inicia uma relação amorosa. Saem as duas ostensivamente pelas ruas, de mãos dadas. A prostituta, ao que tudo indica, está envolvida apaixonadamente. Mas a moça não quer outra coisa que se exibir com a prostituta para impressionar o próprio pai, do qual estaria assim exigindo um outro tipo de atenção, a saber, um amor desinteressado, como o dos homossexuais, do qual não se pode esperar um filho. Ao ser duramente recriminada pelo pai, ameaça suicidar-se, justamente na hora em que sua mãe estava às vésperas de ter um filho dele. O que caracteriza este caso como perversão não tem nada a ver com as possíveis ou supostas transas sexuais aí envolvidas, mas sim com o fato de que a moça usou a prostituta como instrumento para conseguir objetivos totalmente outros, camuflados num interesse sexual, e que não foram devidamente explicitados. É o jogo da tapeação.

No filme italiano La condanna (O processo do desejo), de 1991, dirigido por Marco Bellocchio, supervisionado por um psicanalista lacaniano, apresenta-se uma situação semelhante à do caso acima. Uma mulher (Andrzej Sewerin) tira o dia para fazer uma visita a um grande museu. Fica toda entretida com as obras de arte, que sempre admira. Na hora de fechar o expediente do museu, um rolo compressor de funcionários e seguranças costuma rastrear os visitantes, pelo menos no Louvre é assim, convidando-os delicadamente a se retirar. Essa mulher escapou da vigilância nesse dia, mais por distração do que por premeditação. E percebeu, depois de algum tempo, que ficara trancada sozinha no museu. Condenada pelo destino a passar toda a noite ali, resolve relaxar e... continua a observar as obras de arte. Depois de perambular algumas horas, dá de cara com um homem (Vittorio Mezzogiorno) que também se deleitava apreciando os quadros famosos, perdido na noite como ela. Os dois se apresentam, acham graça no insólito da situação, e seguem juntos no turismo acidental. Nada melhor que este cenário para se imaginar o que vai rolar a seguir. Pinta um clima, os dois deitam e rolam, a mulher adora, havia tempos que não desfrutava de uma noitada tão divertida quanto inesperada. Foi bárbaro. Estava muito grata pelo prazer proporcionado por seu amigo notívago, e continuaram a fazer hora até o raiar do dia, quando os portões seriam abertos. Daí a pouco iam se despedir. Talvez trocassem os telefones, ou marcassem um próximo encontro. Começando já a se preocupar com os compromissos daquele dia, ela consulta o relógio, quando então o homem declara que tinha a chave do museu e que poderiam sair de imediato. Nisso a mulher percebe o equívoco todo, sente-se injuriada e usada. Re-significando retroativamente tudo o que acontecera naquela noite, sai à procura de um advogado, processando o homem. Ganha a batalha judicial.

Onde está a perversão nesse caso? Não está no sexo que fizeram, aliás, todo certinho. A perversão está no fato de o homem ter usado a mulher como instrumento do próprio gozo, criando todo um entorno simbólico, quando sua intenção imaginária era outra, já que não declarou de imediato que possuía a chave. Ela foi enganada. É o mesmo jogo da tapeação feito pela jovem homossexual.

Com a redução simbólica, por meio da metonímia, o registro do imaginário passa a organizar os outros dois na perversão, assim como na neurose esta função cabe ao simbólico, pela metáfora paterna, e na psicose é o real que comanda, na ausência da metaforização. Isto é, o lugar da lei varia em cada estrutura clínica: na psicose, a lei está do lado da mãe como o Outro Absoluto; na neurose, a lei está do lado do Grande Outro, o Pai; na perversão, devido à redução simbólica, a lei está no pequeno outro, no próprio sujeito que se assujeita, sim, à lei do Pai, mas com a condição de cumpri-la a seu jeito, ao seu bel-prazer, que é sua maneira de desmentir a lei.

Na perversão, o sujeito finge utilizar o simbólico dentro dos códigos convencionais da linguagem, mas introduz um sentido todo seu, criando uma ambigüidade da qual vai se beneficiar, em detrimento do outro, e/ou sem o consentimento deste. A perversão, assim entendida, é um fenômeno de linguagem, não um ato ou um fato sexual. A metonímia, de que fala Lacan, significa etimologicamente que algo vai além do nome, da palavra, que um determinado significante (puro, porque só aparentemente é um elo na cadeia) é usado fora do contexto, deslocado da significação convencionada pelo código, provocando uma atribuição de sentido da parte do ouvinte, diferente do sentido que o emissor intenciona. O significante puro, para Lacan, é um significante objetivado, mais signo que significante. Ora, o signo não representa (ou não produz) um sujeito. Para que um sujeito se constitua, um significante deve representá-lo para outro significante na seqüência da cadeia significante. Daí a saída perversa pela dessubjetivação.

Naturalmente, qualquer significante dá margem à ambigüidade em virtude do deslizamento do significado. Mas há um referencial socialmente aceito e um limite de equivocação que na perversão é ultrapassado, constituindo a "desmentira" do mal-intencionado. A saber, o mal-entendido, inerente ao registro do simbólico, é essencialmente diferente do mal-intencionado, no registro do imaginário. Aí está a inversão.

Confrontando as propostas de Sade, autor de Justina e de Filosofia na alcova, com os imperativos categóricos de Kant na Crítica da razão prática, Lacan (1966) tenta conciliar o que parece impossível: a fantasia sadiana com o imperativo kantiano. Diz Sade:

"Tenho o direito de gozar de teu corpo, e este direito eu o exercerei sem que limite algum me detenha no capricho das extorsões que me dê gosto de nele saciar". Já a proposta kantiana diz: "Faz de tal modo que a máxima de tua ação possa ser tomada como uma máxima universal" (p.l 11).

Essas considerações desenvolvidas por Lacan, em 1966, culminaram com a sugestão de fazer do mal, no sentido sadiano, um equivalente do bem, no sentido kantiano. Na perversão, o sujeito se transformaria em objeto de gozo oferecido a Deus, subvertendo a lei, e desejando inconscientemente anular-se no mal absoluto e no aniquilamento de si.

A partir daí, perde sentido o diagnóstico de incurabilidade da perversão, e caduca a proibição de acesso dos perversos (não necessariamente perversos sexuais) à prática da psicanálise nas instituições psicanalíticas.

Em 1972, Joyce McDougall, no livro Plaidoyerpour une certaine anormalité, postula que o modelo da tríplice estrutura clínica é rígido demais para explicar as perturbações sexuais e as desordens narcísicas. Propõe os conceitos de neo-sexualidade e de sexualidade aditiva para as formas de sexualidade ligadas à droga e à toxicomania, que permitem a certas pessoas, beirando a loucura, encontrar o caminho da cura, da criatividade e da realização de si mesmas. É a visão de um caráter curativo da perversão, semelhante ao que Lacan atribuiu à paranóia de autopunição, no caso Aimée.

Em 1995, foi publicado o DSM - IV - TM - Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, em quarta edição, pela Editora Artes Médicas. A grande novidade e avanço teórico da atual psiquiatria consiste em "deletar" os conceitos de perversões e de homossexualidade, que nem constam mais no índice geral. Para substituir os "antigos" conceitos, esse manual inventa a nova denominação de "parafilias". E as enumera na seguinte listagem:

exibicionismo;

fetichismo transvéstico;

fetichismo;

frotteurismo (tocar ou esfregarse numa pessoa);

masoquismo sexual;

pedofilia;

sadismo sexual;

voyeurismo;

e, sem outra especificação, escatologia telefônica (telefonemas obscenos), necrofilia, parcialismo (foco em uma parte do corpo), zoofilia, coprofilia, clismafilias (enemas) e urofilia (urina).

Com relação ao parceiro, a "parafilia" pode contemplar: um sujeito (pedofilia, sadomasoquismo); o próprio corpo (transvestismo, exibicionismo); um animal ou objeto (zoofilia, fetichismo).

Certamente que a influência da psicanálise foi decisiva nessa virada da psiquiatria. Substituir o significante "perversões" por "parafilias" e eliminar a categoria de homossexualidade tem, pelo menos, o mérito de livrar-se de uma contaminação moralista e discriminatória que dominou soberana todo um saber médico-psiquiátrico, durante tanto tempo. Praza aos céus que um significante novo signifique novas idéias.

O avanço que a psicanálise realizou com a teorização sobre a perversão consiste em desvinculá-la da patologia mórbida, do moralismo social ou religioso, do preconceito sexual. Caracterizá-la como estrutura clínica, uma estrutura de linguagem, como uma escolha subjetiva, no sentido em que Freud falava da escolha das neuroses, é vinculá-la à lei ou versão do Pai, como uma alternativa. Com isto, a homossexualidade, do mesmo modo que a heterossexualidade, ou qualquer outra prática sexual, passa a ser um sintoma localizável em qualquer uma das estruturas clínicas.

 

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