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Estilos da Clinica

Print version ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.4 no.6 São Paulo July 1999

 

RESENHA

 

Maria Joana de Brito D'Elboux Couto

Doutoranda em Educação na Universidade de São Paulo

 

 

Lopes, E. M. T. (org.). A psicanálise escuta a educação. Belo Horizonte, Autêntica, 1988

Tendo como marca a decidida escuta,a pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Minas Gerais, nas palavras de Lopes, tem claro que a psicanálise é um saber à disposição dos que se interrogam sobre o mal-estar na cultura, na civilização, no gênero, na educação.

Os autores de A psicanálise escuta a educação,Eliane Marta Teixeira Lopes (orientadora das dissertações que deram origem a esses artigos), João Batista de Mendonça Filho, Tânia Aparecida Ferreira, Marcelo Ricardo Pereira e Margareth Diniz (mestres ou mestrandos na época), situam-se, na modernidade, numa sociedade que se diz globalizada, em que as realidades virtuais e a nova temporalidade levam ao imediatismo e à descarga de toda tensão. Sociedade em que, num estrato social, a adolescência se "eterniza", e em que, em outros estratos, é obrigada a adultizar-se precocemente; sociedade em que se abole a possibilidade de reflexão dos jovens, seja pelo imperativo do abandono, seja pelo excesso de atividades competitivas, seja pelo ritmo alucinante dos jogos processados pela velocidade crescente dos chips;sociedade em que o culto ao corpo e à juventude, a banalização das tragédias humanas, as formas sutis e as explícitas da violência fazem-se cada vez mais presentes. São estas as questões que o XVII Congresso de Psicanálise retomou, tentando uma interlocução tanto com a universidade como com o ambiente cultural, escutando-os1.

É essa escuta - especificamente a do mal-estar na Educação - que os autores desse livro propõem-se a realizar; e sua sugestiva capa aponta para o imprevisível da resposta, pois se trata de um processo em cujo bojo encontra-se o sujeito dividido2.

Célio Garcia, psicanalista e professor da UFMG, faz a tessitura entre as cinco produções que compõem esse livro e os fios da filosofia, da psicanálise e da prática político-educacional, introduzindo-o.

O imaginário, que atravessa as concepções relativas ao campo pedagógico, envolve o desempenho do professor e se introduz nas entranhas de sua profissão. Plasmadas por tudo o que comporta o radicalmente contingente, tais "bengalas" imaginárias acabam sustentando uma identidade profissional, que se compõe dos diferentes mantos tomados àquilo que Merleau-Ponty cunha com a expressão "pregnância".

Lopes, no primeiro artigo do livro - "Da sagrada missão pedagógica" -, formula a questão da pregnância como aquilo que resta de tudo o que perpassa historicamente as práticas e as relações pedagógicas. "Não podemos dizer que os/as professores/as são iguais. Mas, na diferença, há um resto que insiste em ser dominante, em se dizer verdade." Pregnância que se aproxima daquilo que Pierre Bourdieu chama de habituse Walter Benjamim de "poderosa massa submarina", algo que fica, como semelhança.

Também no Brasil, educadores - através de seus escritos, discursos, falas e depoimentos - imprimem na alma do professor caracteres cunhados no campo religioso, que deslizam para a esfera do leigo, do público, e ficam: resto, repetição, sintoma. O professor, sob essa construção imaginária, reveste-se, ao longo da história, das vestimentas dos mais diversos epítetos, formulados em tons ideais, apontando para rotulações quase sempre vinculadas à ação materna, sacerdotal, crística.

Para tornar suportável o desamparo humano, "a História construiu uma imagem de professores e de professoras eximidos e desembaraçados dessa humanidade que nos faz tão desvalidos", diz Lopes. "Talvez possamos dizer que o sintoma da pedagogia seja a construção dessa ilusão, a incessante busca de reparação de faltas; talvez não tenham sido gastas tantas e tantas páginas, em tempos e histórias diferentes, para dizer o que deveria ser, mas para tamponar o impossível de ser feito."

Antes da Contra-Reforma, tanto a filosofia como a pedagogia católica se apoiavam em dois grandes discursos: o De Magistro de Santo Agostinho (389) e o De Magistro de Santo Tomás de Aquino (1257).

A autora destaca elementos do De Magistro agostiniano -impregnado do pensamento cristão e da tradição greco-romana -, especialmente a aporia de que nada se ensina sem o signo, mas os signos nada ensinam, e a questão do Mestre Interior, articulando-os com textos lacanianos e de Bourdieu.

Articula-os também com o De Magistro de Santo Tomás, que, partindo de Santo Agostinho, fundamenta-se em versículos do Evangelho de Mateus. Pensamento que exclui a dimensão triádica agostiniana, dando lugar à idéia de conduzir,que leva a uma requintada metodologização.

Para o pensamento tomista, o homem pode causar o saber no semelhante, não por incutir-lhe o conhecimento dos princípios, mas por atualizar o que neles estaria implícito e como que potencialmente incluído, por meio de sinais sensíveis propostos dos sentidos exteriores. Marcado pela exterioridade, pelo método, em contraposição à interioridade agostiniana, essa idéia não comporta o papel do terceiro exercido pela Verdade, pelo Mestre Interior.

A teoria pedagógica agostiniana, abrindo espaço para a insuficiência, contrapõe-se ao pensamento pedagógico da Contra-Reforma, que não lida com a incompletude, fazendo tudo para obturá-la. Para o mestre da Contra-Reforma, a prática pedagógica mais bem acabada será a que der conta da insuficiência. Mas, diz Lopes, "uma educação possível será aquela sem iluminados, sem profetas, sem missão a cumprir. Quem estiver disposto à sua prática também deverá estar disposto a sair do lugar da onipotência, para ocupar o lugar do 'claudicante'". Para Lopes a psicanálise oferece-se como uma saída, um saber que deverá ser esquecido, pois não serve à prática pedagógica. "Estranho paradoxo, semelhante ao proposto por Santo Agostinho, para quem os signos não ensinam, mas não se ensina sem os signos."

Contrapondo e articulando idéias de Santo Agostinho, Rousseau e Comenius, Freud e outros, Mendonça Filho, em seu trabalho "Ensinar: do mal-entendido ao inesperado da transmissão", propõe-se a desacertar o ensinar a ensinar,pensando sobre suas dimensões perdidas e apontando para uma impossibilidade radical, pouco considerada pela educação. Seu ponto de partida é a diferença entre o transmitir e o informar.

Como conciliar o que é axiomático na educação - o aluno aprende com o professor - e a concepção de que o processo educativo se reduz à acumulação de dados?

O que sustenta a diferença, segundo o autor, é que a educação tem como objetivo levar à produção de uma relação com o saber, mesmo que a adaptação seja um efeito inevitável do educar.

A informação pode ser avaliada em sua aprendizagem. Disso a metodologia educacional e a didática supõem dar conta. Mas, quando a informação não é (re)produzida pelo aluno com a menor perda possível, o porquê cai no campo da psicologia e é explicado por um desajuste emocional/intelectual, ou do professor ou do aluno. Presa à crença na condição do saber como algo consciente, passível de controle e avaliação, a psicologia embebe o campo pedagógico da estranheza em relação à idéia de que possa haver um saber de que o "eu" nada sabe - incontrolável, inconsciente. A não ser quando se toma o inconsciente como algo que pode ser convertido em consciência. Isso inviabiliza qualquer diálogo educação-psicanálise - pois esta é tomada como outra coisa que não a psicanálise. A educação, segundo o autor, acaba desconhecendo um saber que não sabe de si,mas que sustenta o verdadeiro desejo tanto de saber quanto de ensinar.

Se se admite que transmitir é mais que veicular informação e que a transmissão circula por um cenário que escapa ao saber que sabe de si,é preciso incluir na educação o pensar sobre o sujeito dividido, que não corresponde ao cogito cartesiano, diz Mendonça Filho.

Se a transmissão pode ocorrer por um viés que escapa à consciência - não excluindo os ruídos subjetivos que denunciam a presença de um (O)outro texto, que envia enigmas para o "eu" -, então o acúmulo de saber não torna ninguém menos ou mais apto a ensinar. A transmissão está além do que se define como aprendido. As palavras marcam, ao mesmo tempo, a expressão do que desejamos e queremos transmitir e a impossibilidade de nos tornarmos totalmente inteligíveis ao outro.

Traçando um paralelo entre o modelo de ensino da Escolástica (no que concerne à metodologização do processo de transmissão do conhecimento, que atravessou a Idade Média até o Renascimento) e o modelo de ensino da modernidade (que migra do religioso para o científico, sobrando sempre algo a ser teorizado, empecilho para ensinar tudo a todos),o autor aponta a conseqüência deste modelo para a educação: a ciência passa a ser o metron do seu discurso e dos conteúdos curriculares.

O autor acredita que "a transmissão só ocorre mediada pela transferência", pois a relação professor-aluno implica a enunciação de dois desejos: o de ensinar e o de aprender. Onde o planejamento didático aguarda o previsível, encontra o imprevisível, o desencontro e o mal-entendido: todo método encerra sua validade e sua insuficiência.

O homem real que ensina - professor(a) - é "aquele(a) que sustenta a função de operar a ligação entre o seu próprio desejo de ensinar e o desejo de um outro de aprender". O conteúdo entra como "matéria" com a qual se constrói a ponte entre esses dois desejos. A transmissão ocorre na tangência de dois arcos - o que enuncia o desejo de ensinar e o que enuncia o desejo de saber. Implica um inesperado, num jogo de presença-ausência; sem certeza do resultado. O enunciado do saber produzido pelo desejo de ensinar cria uma oferta - um porto -, em que o desejo de saber do aluno, ocasionalmente, poderá atracar.

Em "Freud e o ato do ensino", Ferreira interroga sobre a existência do ensino e da transmissão no interior da psicanálise.

Mantendo a tensão existente entre educação e psicanálise, visa situar historicamente a época em que Freud foi educado e na qual iniciou seu ensino: suas relações com a sociedade em que viveu, com sua cultura de origem, com seu meio. Retrata a Viena de seu tempo, lançando mão de Gay (1995), Schorske (1990) e Mezan (1996).

Busca um fio condutor - no campo das idéias pedagógicas -em Pestalozzi, Herbart, Froebel e Kerschensteiner, destacando os valores recorrentes em todos eles e as especificidades do desenvolvimento biológico e psíquico por eles estudadas. A idéia de "maturidade" e a confiança na "natureza infantil" estão presentes nessa pedagogia carregada de características que lhe conferiam caráter missionário. Os princípios religiosos davam o tom da "formação do caráter" - fim último da educação.

Imerso no mundo em que vigoravam essas idéias, Freud não é nem livre delas nem capturado por elas. Alterando completamente a representação de criança vigente na época, Freud tece uma outra forma de pensar a educação: suas idéias não buscam a adaptação e a modelação, pois a pulsão escapa ao domínio do controlável.

Em busca dos "andaimes do ensino de Freud", Ferreira tangencia suas relações com a ciência, a literatura, a arte e o judaísmo, relações que sustentam seu desejo de aprender e seu desejo de ensinar e perpassam seu estilo. E esse estilo segue os ditames e as emergências do inconsciente - convicto de que o saber não é a causa imediata de nenhuma mudança subjetiva. Aponta com isso para a "impotência epistêmica", que se contrapõe à cobiça do discurso universitário.

Passando do ensino de Freud ao ensino em Freud, a autora pinça a marca do ensino em Freud: a "consideração do inconsciente que trabalha naquele que ensina e naquele que aprende".

Para Ferreira, a educação, ancorada na psicologia, desconsidera as emergências inconscientes na prática educativa; descarta a existência dos avatares da transferência - presente em qualquer relação do sujeito com o Outro. Transferência que supõe o inconsciente, como um saber que trabalha, um saber que escapa ao sujeito, constituindo-o, embora ele o ignore.

"A experiência de ensino em Freud aponta para o fato de que o material ensinado trabalha aquele que ensina e aquele que aprende." Ambos não estão isentos das ebulições que a matéria de ensino possa desenrolar em suas subjetividades.

"A transmissão é de um saber que não se sabe"... Portanto, a constituição de um saber por aquele que aprende passa por vicissitudes que aquele que ensina ignora; e a construção daquele que ensina, sujeito dividido, processa-se no bojo daquilo que ele não sabe. A transmissão, para Freud, não é de um conhecimento, mas de algo que toca o sujeito. Embora Freud se encantasse com a relação de seus professores com o saber, admitia que "eles me transmitiram um conhecimento que, a rigor, não possuíam" (Freud, 1923). O ensino, em Freud, é um ato, no sentido psicanalítico do termo. Uma ética.

Pereira, em "O relacional e seu avesso na ação do bom professor", analisando a educação sob a influência positivista, mostra que, ao longo do século XX, a ação docente é avaliada à luz do conhecimento científico e de habilidades instrumentais. Nessa perspectiva, também a ação do bom professor passa pela análise instrumental e técnica, privilegiando aspectos didático-metodológicos em detrimento de aspectos relacionais.

O autor situa o educador moderno entre o idealismo ingênuo e o racionalismo; entre as teorias rogerianas e as teses comportamentais.

Prisioneiro da racionalidade técnica ou de uma ficção, a ação educativa é concebida como imune de incertezas, divergências, conflitos. Fica-se entre o universal, o ideal, a lógica formal (se-então) e a afirmação freudiana de que é "impossível que o método educativo possa ser uniformemente bom para todas as crianças" (Freud, 1976, Vol. 22, p.183).

Há um debate no interior da racionalidade que interroga a própria racionalidade, tentando um exercício de integração do saber-teórico, do saber-fazer e do saber-ser.

Diversos autores interrogam a influência positivista e percebem o quanto os fatores lacunares são constitutivos do processo ensino-aprendizagem; propõem modelos à educação que escapam à racionalidade técnica: o clínico de Cifali, o reflexivo-na-ação de Schõn e o da racionalidade prática de Gómez. Mas, diz Pereira, em todos se esboça uma tendência idealista da prática educativa. De alguma forma negligenciam o coração da descoberta freudiana, enfatizada por Lacan: de um lado, a particularidade, a hiância, a pulsão, o residual, a falta; de outro, a universalidade simbólica, a palavra, o significante, o ideal, a certeza, o pensamento.

A incompletude fundante do sujeito - constitutivamente heterogêneo - contrapõe-se ao ser. O sujeito é pré-ontológico, não é nem ser nem não-ser. É algo não realizado, que está lá onde não se pensa. O discurso do sujeito freudiano está sempre marcado pelo seu avesso, pelo inconsciente.

Optando pela racionalidade e pela funcionalidade, a educação não "arreda pé" da tentativa de reduzir o que é da ordem do irredutível ao "explicável". Assim, segundo critérios metodológicos, os compêndios educacionais explicam o que é o bom professor, e qual a chave do sucesso docente, desconsiderando que o pensamento está subordinado à divisão fundamental do sujeito e que este é movido pelo "falta-a-ser".

Focalizando a questão relacional -como cerne da profissão -, o autor não privilegia aspectos metodológicos e a racionalidade instrumental, mas dá ênfase à afirmação de Freud de que a aquisição do conhecimento, o caminho que leva à ciência passa pelo professor(Freud, 1914/1976).

Quem é então o "bom professor"?

Não mais aquele que fenomenologicamente dá prova de eficácia metodológica.

Talvez aquele que cerque as rupturas causadas pelo avesso do sujeito "que não pára de não se inscrever e de se repetir";aquele que não insiste em técnicas vazias, não explica o que não tem explicação, não responde apenas para aliviar seu mal-estar causado pelo desamparo. Aquele que suporta o lugar de objeto (crenças, fantasias, valores, identificações, idealizações), ocupando o lugar de um substituto parcial da projeção do aluno; que "sabe" que sua intervenção ultrapassa a ressonância semântica, escapando ao domínio do previsto; que leva em conta o residual de sombras que "faz de professores e alunos seres estrangeiros entre si (...), invasores de territórios alheios"; que suporta um "não-saber-o-que-fazer-com-isso" que descentra suas certezas e as certezas da pedagogia impregnada de positivismo.

O autor aponta para a necessidade de se construir no território da educação "o amor à verdade" do sujeito, operando a subversão conceitual de verdade: de uma suposta verdade universal a uma verdade residual, particular, irredutível. Sua meta ética é inclinar-se - sem saber - sobre essa verdade.

A intervenção do professor - que se dá dentro da sua cultura, de seu universo simbólico, de seu valor social, de sua história - é também influenciada por fatores inomináveis e incapturáveis, porém suficientes para delimitar destinos.

Escapando ao cerco das metodologias e aos fenômenos de competências, o bom professor está atento ao "resíduo incomum", à dimensão extragramatical, à construção de algo novo, tomando como pressuposto ético o "Lá onde isso era, eu devo advir" (Freud, ESB, 1976,

Vol. 22, p. 102). Essa máxima freudiana nos diz da posição do sujeito que deve advir de onde se desconhece, de suas sombras e resíduos, do issoque impele as suas pulsões. Há aí uma "exigência de verdade".

No coração da civilização há um isso, diz Pereira, que será sempre "sem educação". Resta ao professor não o aprisionar sob o cárcere da palavra, mas apenas suportá-lo para fazê-lo advir tanto quanto possível.

"De que sofrem as mulheres-professoras?", pergunta Diniz. Seu artigo é uma tentativa de resposta.

Segundo a autora, as pesquisas apontam duas vertentes: a presença de mulheres-professoras como figuras fixadas à sua condição "natural" de esposa e mãe, da qual decorre "naturalmente" o ensinar; e rechaço à posição que expressa certa passividade da mulher-professora, seu campo de trabalho como espaço de outras lutas.

Uma vertente que recentemente tem ocupado a reflexão de alguns educadores, sob o imperativo da lógica cultural, não da subjetividade - priorizando uma análise que extrapola o viés sociocultural -, é a configuração profissional nas trajetórias "individuais".

Para além das considerações socioeconômicas e históricas sobre a predominante presença do feminino no magistério, e para além de explicações que se baseiam em questões de aprendizagem, de educação e de cultura, a autora se pergunta: "O que há de singular na mulher que faz com que se encaminhe para a função de ensinante?"

Diniz considera o modo como determinadas representações culturais incidem sobre os desejos - e como as mulheres aderem a esse discurso cultural -, e a possibilidade de passagem da posição de objeto à posição de sujeito, fazendo "furos" no artifício cultural e em suas certezas. Constata em sua escuta que da subjetividade da mulher-professora destaca-se um profundo mal-estar, latente no discurso da queixa e no constante pedido de ausência; doenças e "saídas", sintomas que denunciam ao mesmo tempo um mal-estar e uma postura que assegure a não mudança de posição, a paralisação no discurso da queixa.

Para Freud, a civilização é construída sobre a renúncia ao instinto; renúncia que tem seu preço: o "mal-estar na civilização", inerente à condição humana.

Numa situação "institucionalizada" percebe-se uma "evitação" do confronto de "posições de mal-estar", um apaziguamento do insuportável. Conseqüência: "a instituição, quando sutura o mal-estar, transforma-se em fonte de mal-estar", diz a autora.

No cotidiano escolar, as mulheres-professoras privilegiam o discurso da queixa, negando discussões inerentes ao campo pedagógico, apaziguam o conflito, construindo um sintoma. O corpo doente esforça-se por dizer o que não pode ser dito. E as mulheres-professoras permanecem no magistério.

A autora faz um outro caminho para entender o enigma feminino.

Para a psicanálise o que constitui a masculinidade e a feminilidade foge ao alcance da anatomia. O acesso ao humano tem como preço uma falta, uma perda cobrada pela entrada no simbólico. A castração não incide no corpo biológico, mas num corpo imaginário; tendo a ver com o desejo, é temida tanto pelo menino como pela menina.

Diniz faz um percurso pelo território do processo edípico, via Freud e Lacan, formulando que a menina, da mesma forma que o menino, deve renunciar à mãe, porém a dificuldade do tornar-se mulher resulta da impossibilidade de identificação feminina, pois ali onde algo não presente se encontra, resta um vão, uma pergunta: o que é uma mulher?Mesmo submetida à lei fálica, a menina não se encontra em um traço de identificação propriamente feminino, pois, desde Freud, a psicanálise vê no falo o significante único para ambos os sexos, não existindo inscrição psíquica de um significante do sexo feminino. Para Lacan - que parte do impasse de Freud -, a mulher "não é toda", não é toda submetida à função fálica, não é toda submetida à castração.

A teoria psicanalítica da sexualidade feminina abre a questão do "tornar-se mulher" como um estar às voltas com esse indizível, para além da busca de imagens em espelhos e vitrines, nas palavras de Diniz.

Freud, ao se aproximar do feminino, percebeu um certo tipo de sofrimento - o sofrimento histérico. A histeria seria, para além de uma neurose, um modo de pôr a questão da feminilidade, uma das respostas a esse buraco no significante.

Os sintomas histéricos seriam o nó que o neurótico tece na sua relação com os outros; seriam a encarnação de uma fantasia inconsciente que serve à realização de um desejo. Cenário em que a histérica desempenha o papel de insatisfeita, de vítima infeliz.

O adoecimento mental das mulheres-professoras das séries iniciais é abordado pela via do mal-estar - no campo pedagógico. A saída para lidar com esse mal-estar: adoecem, entram em licença médica e acabam por entrar em "desvio de função".

Os estudos que articulam saúde-trabalho - também no campo educacional - muitas vezes apontam para uma relação linear entre trabalho e adoecimento, não levando em consideração o sujeito dividido.

"Essas 'saídas' poderiam ser traduzidas como sintomas - cujo sentido estaria relacionado com as experiências vividas por esses sujeitos?", pergunta a autora.

Analisando o discurso que perpassa diagnósticos psiquiátricos - na Rede Municipal de Ensino de Belo Horizonte -, a autora constata que a psiquiatria herdou do discurso médico a intenção de manter a objetividade científica e excluir a subjetividade. As queixas são ouvidas e medicadas - retornando sob a forma de um outro sintoma.

Tomando como instrumento de trabalho a escuta - atenta à emergência do sujeito nos ditos e não-ditos de sua história -, a autora vai percebendo que os problemas que as professoras apresentam extrapolam a sala de aula e a sua relação com os alunos, pois os motivos que alegam quanto ao desvio de função trazem à tona cenas de sua vida de mulher-mãe-professora - componentes subjetivos e inseparáveis desses lugares que ocupam, e que são culturalmente estabelecidos pela ideologia da feminilidade.

Presente na cultura ocidental, tal ideologia impregna tanto a maternidade como a vocação para cuidar de crianças, não havendo brecha para questionamento sobre o porquê dessa "escolha". A escolha supõe um ato do sujeito que nela se implica. Não havendo escolha, a relação com o aluno torna-se ambígua e misturada: mãe-professora.

Relação complexa - que envolve a história da subjetividade da professora e do aluno, dentro de um campo social impregnado de representações sobre o pedagógico, o professor e a criança -, e que parece comportar um componente trágico, acarretando o adoecimento físico e mental das professoras, no discurso médico.

Segundo a autora, o desvio de função não dissolve o nó que angustia essas mulheres-professoras, nem lhes garante livrar-se do mal-estar do trabalho pedagógico, uma vez que esse mal-estar transpassa suas vidas: ser mulher, ser mãe, ser professora. A saída para lidar com o mal-estar, quando aparece uma falhanum desses projetos, impregnados de idealização, é o enlouquecimento, ainda que histérico. Mas as mulheres permanecem no magistério, embora adoecendo como forma de suportá-lo.

Sendo o espaço educacional um espaço de possibilidades, não de totalidade, talvez se possam abrir brechas para que cada mulher - atravessada pelo inconsciente - se pergunte sobre seu desejo. Quando a angústia, a dúvida... puderem ser ditas e discutidas, talvez se possa mudar a posição diante do impossível da tarefa educativa, sem cair na impotência que paralisa.

Os autores - sob óticas diferentes - escutam a educação, buscando desvelar o cenário educativo. Escuta-se a educação na sua trajetória histórica e naquilo que resta como pregnância; escuta-se o ensinar, que comporta o mal-entendido e o inesperado da transmissão; escuta-se o ato do ensino, como ética, em Freud; escuta-se o relacionai e seu avesso na configuração do bom professor; escuta-se o sofrimento das mulheres-professoras.

Volta-se, neste momento, à capa do livro: La réponse imprévue.

 

NOTAS

1 Cf. Mensagem de Plínio Montagna e Wilson Amendoeira em preparação ao XVII Congresso Brasileiro de Psicanálise, 21 a 24 de abril de 1999, Rio de Janeiro. Tema: "O homem, a psicanálise e o novo século".
2 Cristiane Linhares, sobre o quadro La réponse imprévue, de René Magritte.