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Estilos da Clinica

Print version ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.4 no.7 São Paulo  1999

 

DOSSIÊ

 

O que uma analista e um autista podem aprender com hamlet

 

what a psychoanalyst and an autistic child can learn with hamlet

 

 

Leda Mariza Fischer Bernardino

Psicanalista, presidente da Associação Psicanalítica de Curitiba, membro da Association Freudienne Internationale, doutoranda pela USP

 

 


RESUMO

A autora propõe uma interrogação sobre os determinantes da "escolha autista", enquanto fechamento para a função do Outro, tesouro dos significantes. Apresenta várias concepções do autismo na literatura psicanalítica lacaniana, para propor como hipótese essa escolha enquanto possibilidade de um tempo de suspensão, em que a criança estaria à espera de um interlocutor. Propõe que haveria aí um lugar privilegiado para o tratamento psicanalítico, ilustrando com um caso clínico.

Autismo; alienação; foraclusão; elisão; objeto a


ABSTRACT

The author proposes an interrogation about the determinants of de "autistic choice", where the child would be closing to the Other's fonction. Presents several autism conceptions in the Lacanian psychoanalytic literature, for propose like hypothesis: this choice would be a possibility of suspension, where the child would wait for an interlocutor, privileged place to the psychoanalytic treatment. Also relates a case to illustrate this idea.

Autism; alienation; forclusion; elision; object a


 

 

Hamlet é, desde o começo, culpado de ser. É-lhe insuportável ser. O problema, o crime de existir põe-se para ele nos termos que são os seus, to be or not to be, o que o empenha irremediavelmente no ser como o articula bastante bem.

Lacan (1959)

 

No livro O nascimento do Outro, Rosine Lefort (1980) relata dois casos em que o ponto de partida diagnóstico tem como referência o autismo. Entretanto, fica muito clara a diferença na evolução do tratamento das duas crianças ali descritas. Se para Nadia, como aponta Rosine Lefort, há uma abertura para o Outro, para Marie-Françoise há um fechamento quase total para essa função. Ao comentar as duas análises, a autora refere-se a essa diferença primeiramente em termos da relação especular: "É verdade que o espelho para Marie-Françoise concerne apenas a um registro paralelo, em que ela não se constitui, como Nadia, no lugar do Outro que eu sou, do mesmo lado que eu do espelho. Ela permanece radicalmente do outro lado de um espelho que é apenas um vidro, e que só pode fazer de mim o seu duplo no Real". Em seguida, conclui: "Ela perdeu o Outro" (p.262).

O que se depreende dessa comparação é o que já se podia observar nos relatos: os tratamentos tiveram encaminhamentos bem diversos. Enquanto Nadia evoluiu para a "normalidade", Marie-Françoise confirmou seu autismo.

Na trilha destas observações - que conduziram os Leforts a formulações teóricas bastante radicais, do meu ponto de vista, quanto à definição da estrutura na infância -, e ao mesmo tempo como um contraponto, proponho interrogar:porque, em alguns casos, há esta abertura para o Outro, e em outros, fechamento?

A própria Rosine Lefort aponta, nesse trabalho, do ponto de vista simbólico, que "esta abertura sobre o significante implica uma etapa anterior, original, uma relação de Nadia ao 'Pai Mítico' de Freud, ao 'Nome-do-Pai' de Lacan, isto é, uma metáfora original que faltava radicalmente ou foi dissolvida em Marie-Françoise" (p.283).

Será que poderíamos definir quais determinantes influiriam nessa incidência ou não do Nome-do-Pai? Em outras palavras, haveria uma "escolha autista", da mesma forma que, como Freud se refere, uma "escolha da neurose"?

Para Contardo Calligaris (1989), sim. Ele aborda essa questão, em seu livro Introdução a uma clínica diferencial das psicoses, nestes termos: "A escolha do autismo me parece diferente: uma tentativa de apagar a Demanda do Outro, se anulando, segundo a idéia de que, se não houvesse criatura, não haveria falha na perfeição do criador e por conseqüência o criador não queria nada" (p.67). O termo "escolha" aí utilizado me chamou muito a atenção, na época em que o li. Tempos depois, tive a ocasião de formular pessoalmente minha pergunta ao autor1: como se poderia falar de escolha de uma não alienação nesse momento tão precoce? Calligaris respondeu-me: "Não se trata de jeito nenhum de uma operação psicológica que necessite da intervenção de uma subjetividade; não é da ordem das significações, é da ordem propriamente da cadeia significante. É um trabalho comandado pelas cadeias significantes ao redor do significante paterno, e a partir disso o cálculo se faz, sendo evidente que este cálculo não é nenhuma operação psicológica, é uma determinação que de fato para o sujeito é automática". Esclarecimento que achei de suma importância. Situar essa escolha em termos de uma determinação inconsciente da cadeia significante familiar, isto é, de um funcionamento simbólico que excede os sujeitos envolvidos, configurando lugares e destinos desde antes até de um nascimento, permite uma leitura do autismo fora dos limites inibidores da culpabilização dos pais quanto a uma pretensa "rejeição" do filho. Mais ainda: permite entender desde onde é fundado esse lugar de I (Ideal do Eu), em que o adulto-referente principal do bebê posiciona-se enquanto transmissor (ou não) do traço unário que permitirá (ou não) sua humanização propriamente dita: um lugar simbólico.

No intervalo entre a leitura do livro e a ocasião de formular a pergunta, tive oportunidade de escrever e apresentar um trabalho inspirado nessa questão, intitulado Ser ou não ser... autista2, em que relatava dois casos de minha clínica que, a partir de um diagnóstico inicial de autismo, tiveram também evoluções bem diferentes. Na verdade, tratava-se de um pequeno trabalho em que formulei pela primeira vez esta que se tornou a minha pergunta de pesquisa, que venho perseguindo deste então, e que me pareceu importante rever neste momento de concluir do qual me aproximo, de defesa de minha tese3.

O que me chamou a atenção na retomada desse trabalho foi que a pergunta tenha se formulado para mim na ordem do ser, ou seja, o que primeiro o "Autismo" me provocou foi uma indagação sobre o ser e não sobre o sujeito. Por que será?

Por um lado, penso que talvez essa questão não possa ser pensada fora de um percurso de formação e que, para mim, talvez se tratasse muito mais, naquele momento, de um ser ou não ser... analista, em que eu estaria mais envolvida na busca de consistência de um certo status profissional, à custa da nova roupagem que a psicanálise vinha conferir ao meu Nome-do-Pai. Estava em busca, então, dos ouropéis de uma certa posição. Sem dúvida, eu estava às voltas com o Nome-do-Pai em todas as suas vertentes! O que pensar de uma escuta, nessas condições?

Por outro lado, como eu situava teoricamente o autismo? Na época, eu estava vivendo ainda os efeitos de duas experiências muito impactantes: um estágio prático na École Expérimentale de Bonneuil-sur-Marne, dirigida por Maud Mannoni4, e um estágio teórico com psicanalistas lacanianos que tentavam propor leituras para o enigma do autista.

Percorramos um pouco o que pude ouvir e anotar, naquele momento, sobre o autismo5.

Para Guy Clastres, por exemplo, "a criança autista é um condensador de gozo, ela própria ocupa a função do a ", "personifica este impossível para seu meio"(e também para a equipe que dela se ocupa, numa instituição). Segundo ele, a direção da cura do autista implicaria que "pode restituir a dialética significante do sujeito - fazê-lo renunciar a este lugar [de gozo] para levá-lo a fazer para si o jogo significante". Aponta ainda que na relação com a figura materna, "a criança autista garante que esta não tem mais que se preocupar com seu fantasma, sua castração", "ela goza da criança, que tem aí também seu gozo e se faz gozar por sua mãe".

Para Serge Cottet, tendo Lacan como referência, "o autista vem obturar um buraco no Outro, tapando sua divisão, em lugar de sua própria divisão, que nunca advém".

Esthela Solano, referindo-se à experiência de satisfação exemplar, ressalta como a mãe de uma criança autista responde no registro da necessidade, e não no registro da demanda de amor. Então, "a criança toma o lugar de causa do desejo e de nenhum modo de objeto visado pelo desejo da mãe", inscrevendo-se assim como exceção e ficando excetuada do campo da linguagem.

Michel Silvestre pergunta-se, a respeito do autista: "Pode alguém se retirar da linguagem?" Para ele, o autista situa-se entre a função da fala e o campo da linguagem. Observa que "nada do que entra na categoria 'humano' pode escapar à linguagem, mesmo antes de nascer". A conseqüência disto são as escolhas, uma das quais o autismo, que "pode escapar das palavras calando-se", mas "não pode se recusar a ouvir um interlocutor". Assim, "o autista não está confrontado ao diálogo, não foi iniciado nesta arte por seu Outro materno". Para Silvestre, a função do analista aí é muito mais injetar significantes, para incluir o autista como efeito destes. O analista deve se oferecer como objeto de referência: construir um conjunto de objetos cujo ponto de convergência é ele. Assim, "se há uma escolha possível - escolher não falar -, isto entrega o ser ao gozo". Neste sentido, propõe o autismo como uma "experiência limite para o discurso analítico", já que a escolha vai para o lado do gozo, oposto ao do significante.

Eric Laurent, por sua vez, lembra que Lacan fala de modo muito rudimentar do autismo. Mas ressalta que "Lacan não se resume a um Inconsciente da palavra" e que o horizonte de seu ensino é justamente o de "um discurso sem palavras" (referência já de Rosine Lefort, no prefácio para a edição brasileira de seu livro, com o seguinte acréscimo: "Lá onde o pré-verbal não é menos discurso").

Para Laurent, o autista estaria fora das palavras, capturado no campo puro da linguagem que não supõe nenhuma palavra, seria um "ser de duas dimensões, de superfície, circulando num mundo sem distâncias, desorientado em seus trajetos", como tal, seria o "puro ser da topologia lacaniana, com o dentro e o fora simultâneos, num mundo de superfície e de buracos".

Referindo-se ao lugar do Outro enquanto tesouro dos significantes, Laurent fala do autista como aquele "que faz sacrifício de seu corpo ao Outro". Assim, se para o psicótico a pergunta crucial seria "o que é um Pai?", para o autista, a questão parece ser "o que é o gozo?" Ao recusar absolutamente qualquer alienação ao significante - pois falar é perder gozo, passar pela castração que simboliza o gozo em falo -, o gozo do autista é inteiramente objeto do gozo do Outro. Daí o caráter hipnotizante da criança autista, a fascinação (ou o horror) que ela pode provocar na transferência, pois cristaliza este lado de puro gozo, com o qual o neurótico sonha, após ter escolhido situar-se em outro lugar.

Para Jean-Jacques Gorog, o autismo se situa antes do estágio do espelho, o eu ideal não se fabrica. Mas ele descreve duas posições: onde há narcisismo originário (O Ideal do Eu, I, que já está aí de início, mais além do espelho); e onde não há narcisismo originário - "seriam praticamente animais" (o que é muito raro). Esse autor assinala: "Para a clínica, o que nos interessa é em que os autistas não sào autistas, numa clínica que ainda tem muito a inventar".

Para Dominique Miller, na medida em que o autista é ele mesmo a resposta para realizar o fantasma da mãe, "está na impossibilidade de perceber seu próprio sintoma". "Nesta função de obturador do Outro, ele não pode se perguntar 'quem sou eu', 'quem sou eu para o Outro?'" O trabalho da análise deve permitir, no contexto da transferência, a constituição de um sintoma para si, pelo autista, para que ele saia do campo das respostas e possa se deixar tomar pela interrogação: "O que quer o Outro de mim?"

Jean-Daniel Matet, a partir da apresentação de um caso clínico, situa uma importante interrogação quanto ao diagnóstico do autismo - do lado do comportamento (fala de uma fenomenologia) e do lado da estrutura (fala do fantasma). Isto com relação a um caso que analisou, em que uma menina "se apresentava como autista, mas a título de sintoma de sua mãe".

Como se pôde observar, os autores convergem para a idéia de "escolha" no autismo, bem como para o desfecho dessa escolha: manter o Outro primordial todo, imune ao desejo. A criança autista ficaria então no lugar deste objeto a, não mais causa do desejo, mas obturador da falta do Outro. Abdicaria do acesso a um lugar significante em prol de um ser-objeto-para-o-Outro. A abertura para o tesouro dos significantes romperia esse equilíbrio - donde todas as defesas a qualquer contato que possa ameaçá-lo.

Fora desse contexto do estágio teórico, mas na mesma linha de pesquisa, deparei com um excelente texto de Colette Soler, "Hors discours: autisme et paranoia", com importantes indicativos teóricos para pensar o autismo. A autora diz: "Podemos situar o autismo num aquém da alienação: uma recusa a entrar nela, um deter-se na borda" (Soler, 1983, p.10).

Referindo-se ao pensamento de Lacan sobre a paranóia, a esquizofrenia e o autismo, Colette Soler vai enunciar: "Precisaríamos chegar a mostrar que o mecanismo único da foraclusão tem efeitos diferentes nos três casos" (p.10). Veremos mais adiante como Alfredo Jerusalinsky vai nesta direção.

Para Colette Soler, "a alienação deve-se à estrutura binaria do significante, o que faz com que um significante possa realmente representar o sujeito, mas para um outro significante". A falha disto no autismo resulta na presentificação do autista como objeto para a figura materna. Para essa autora, as crianças autistas devem ser consideradas como sujeitos, mesmo que não falem, "na medida em que são capturadas pelo significante, porque fala-se delas: no Outro há significantes que as representam" (p.15). Apresenta então o seguinte materna para o autista:

 

S1

s -» sujeito não dividido, posto abaixo dos significantes que o representam no Outro. Para Soler, isso caracteriza a emergência de qualquer sujeito, autista ou não. A diferença estaria em que os autistas, por não saírem desse lugar, não podem inverter a mensagem do Outro para dela se apropriar. Logo, o sujeito autista aparece como "um puro enunciado" (p.18).

Para Colette Soler, "o autismo é uma doença da libido", reportando-se neste sentido ao Lacan do SeminárioXI, para quem é a linguagem que faz o órgão-libido; ao texto O aturdito e ao Seminário XX, em que a linguagem aparece como instrumento do gozo.

Outras referências teóricas permitem pensar qual é o impasse posto pelo autista diante do campo da linguagem e do desejo. Marie-Christine Laznik (1991), por exemplo, em seu artigo "Quando a alienação faz falta", refere-se ao autismo como uma patologia marcada "por uma falha fundamental da própria presença original do Outro, tendo como conseqüência a impossibilidade da instauração do tempo constitutivo do imaginário, e então do eu, através da relação especular com o Outro". Há um tempo lógico anterior ao tempo especular e pré-condição do mesmo, que é a instauração do narcisismo primário. Isto é, há um primeiro tempo, do espelho côncavo como o concebe Lacan, que institui o lugar do Outro o qual preparará a pssagem do Ur-Ich (Eu primitivo) à Ur-Bild, protótipo da imagem especular. Uma vez propiciado o espaço virtual, o Imaginário, há possibilidade de constituição do eu ideal, tempo do espelho plano, narcisismo secundário.

Neste processo, como diz Laznik, "esta falicização da criança situa-se somente no olhar do Outro" (p.37), ou seja, é condição prévia que a figura encarnadora do Outro possa já situar a criança como objeto perdido para ela, isto é, que nesta relação já haja uma marca da referência à metáfora paterna na mãe. Esta é a função paterna de que se trata, para a abertura aos significantes, o que Contardo Calligaris (1989) designa como o tempo preliminar, de "disposição já inscrita no Outro" (p.67).

Para Gabriel Balbo, o autista está impossibilitado de chegar a essa primeira incorporação significante da Ur-Bild do corpo próprio, porque o autismo primário "se produziria quando originariamente falta para o sujeito uma relação auto-erótica biunívoca entre ele e o que lhe é Outro" (p.99).

Seguindo Laznik, se a criança não é considerada como perdida a priori, ela não tem como consistir neste outro que introduziria a biunivocidade. O que se produz é a univocidade pura e simples do Outro com seu objeto real, donde o boicote do Imaginário, que não chega a se constituir.

Marie-Christine Laznik, agora em seu livro Rumo à palavra (1997), vai distinguir radicalmente o autismo das psicoses, propondo-lhe um mecanismo próprio: a elisão, inspirando-se na Carta 52 de Freud a Fliess. Essa autora encontra nos múltiplos registros de inscrição e de tradução dos traços mnêmicos propostos por Freud uma maneira de distinguir os diversos tempos lógicos da constituição do aparelho psíquico. Sobre o primeiro nível, dos sinais perceptivos organizados por simultaneidade e que não chegam à consciência, Laznik lembra que Lacan situava aí seu conceito de significante. O segundo nível, do inconsciente, é organizado por relações causais. O terceiro nível, do pré-consciente, encontra uma tradução em representações de palavras. Assim, o inconsciente situarse-ia no segundo registro de inscrição dos traços mnêmicos, inaugurado pelo recalque - e não num primeiro registro. Há um hiato, então, entre percepção e recalque. Laznik então se pergunta: o que acontece entre estes dois níveis? É onde ela propõe situar as crianças autistas: "A clínica com autistas tem pequenos revela que seu aparelho psíquico funciona aquém do recalque originário, portanto, aquém do registro da segunda inscrição, denominada por Freud Inconsciente" (p.59). Laznik vai adiante, perguntando-se então sobre qual seria o mecanismo de defesa próprio ao registro dos sinais perceptivos, para responder: "Lacan propôs em 1959 a elisão como o mecanismo de defesa específico desse primeiro registro de inscrição" (p.60).

Ancorada nesse conceito, Laznik (1997-b) tem uma proposta de prevenção do autismo, justamente porque a direção do trabalho analítico seria a transposição do estatuto do significante, de puro sinal perceptivo para significante que representa o sujeito para outro significante.

Já Alfredo Jerusalinsky6 trabalha com o conceito de foraclusão, mesmo no caso de autismo, mas ressaltando que se trata de uma foraclusão específica, não a foraclusão do Nome-do-Pai, descrita por Lacan a partir das psicoses paranóicas, mas de uma foraclusão do objeto, que bloquearia a possibilidade de relação tanto com o pequeno outro quanto com o Outro, já que o olhar materno justamente elide a criança de seu campo desejante, como Jerusalinsky (1981) já desenvolvera em um trabalho anterior, Psicanálise do autismo.

Poder-se-ia encontrar nessas diferentes referências uma concepção lacaniana do autismo que norteasse uma escuta psicanalítica desses pequenos sujeitos? Destaquenos os principais pontos de convergência nos diversos autores pesquisados, quanto àquilo com que somos confrontados ao encontrar crianças autistas:

1) há uma falha prioritária do registro do Imaginário, o que as situa num tempo pré-especular;

2) há recusa à alienação ao campo dos significantes;

3) há falta de lugar para a função de Outro, tesouro dos significantes, o que as localiza no campo da linguagem, mas fora do campo da fala, como sujeitos não divididos, puros enunciados;

4) propõem-se como objetos de puro gozo, remetidas a um estado puro de ser,

O que me interessa apontar, nas proposições de vários dos autores, é o autismo como uma patologia de borda. Parece-me importante reter esta idéia para ressituar a questão da escolha autista como uma resposta primeira, parcial, da criança, a essa determinação significante que a precedeu e a recebeu com a exclusão do lugar de sujeito desejante.

Interessa-me pensar essa borda como uma suspensão, em que a escolha entre alienar-se e não se alienar no significante passa por tempos lógicos marcados por escansões: momentos de indecisão da definição da estrutura, que pode se caracterizar por uma fenomenologia autística, mas ainda não como uma estrutura autística. Tempo fértil, justamente, para o trabalho analítico, para uma inflexão aí nesse impasse entre Outro primordial e criança. A função do analista como garante deste setting Simbólico pode sustentar o movimento de um em direção ao outro, em que um Imaginário poderia desabrochar, promovendo a queda desse objeto real cristalizado no autista. Seria possível, então, o advento de um sujeito que, entre alienação e separação, poderia formular alguma questão sobre si, tendo vivido a angústia da incidência do desejo e do apelo do Outro para com ele.

Proponho isso principalmente por ter testemunhado isso, num dos casos que relatei naquele trabalho de dez anos atrás, e que só agora, quando uma virada pessoal em minha relação com a psicanálise me permitiu situar a questão mais além do ser analista, para entender o analista enquanto sujeito de um desejo peculiar, desejo de analista. Penso agora nesse caso como um encontro entre o tudo-no-ser do autista e a falta-a-ser do analista. O que disto foi possível concluir? O que significa para uma criança, na borda do autismo - marcada por um encontro que se revelou já de princípio como totalmente faltoso -, a chance de se arriscar a um novo encontro com a palavra? O que representa para um analista a confrontação com a radicalidade da recusa ao desejo?

Bem, vamos ao caso.

Os pais de Michel vieram me procurar em grande desespero: estavam preocupados com o destino de seu filho, então com 2 anos, diagnosticado como "portador de traços autistas".

Michel é o segundo filho adotivo do casal. Segundo a mãe, adotaram-no "para o irmãozinho ter com quem brincar", pois não recusavam nada a este primeiro filho, representante da vitória deles contra a esterilidade que marcara seu casamento,

Essa frase resume o descomprometimento, a indiferença na qual a mãe se encontrava, diante dessa nova maternidade que relutava em assumir, e as conseqüências prováveis disso para Michel: não se tratava de um desejo de filho. Situado como brinquedo, boneco, Michel passava ao largo do que poderia ser o desejo materno.

Aos 4 meses, Michel sofreu uma queda, inofensiva enquanto tal, mas que situou, para a mãe, o momento do aparecimento dos sintomas autistas. Numa leitura a posteriori, podemos dizer que esta queda "acidental" vem apontar uma outra queda: a falência do Outro primordial. Uma mãe sem condições de garantir as funções descritas por Winnicott (1967): segurar (holding), manusear (handling) e apresentar objetos, condenando o bebê à ansiedade de cair e desintegrar-se.

Michel passou a apresentar movimentos estereotipados com as mãos, esquivação ao olhar, auto-isolamento, balanceio, além de um atraso motor importante. Sintomas que podem ser entendidos fenomenologicamente no registro do autismo e que em termos psíquicos podemos ler como recusa à presença do Outro e remetimento a um puro gozo corporal, ou seja, falha na passagem do corpo real ao significante.

A sintomatologia de Michel provocou uma mobilização na família: os pais começaram a se preocupar com ele, buscando vários médicos e uma fisioterapeuta, culminando numa crise da mãe, que finalmente começou a se perguntar a respeito desse filho.

Esses movimentos provocaram um recrudescimento dos sintomas e um retorno, um tanto incerto, de Michel ao desenvolvimento interrompido. Foi então que decidiram me procurar, seguindo a indicação da neuropediatra que o avaliou.

O trabalho analítico de Michel iniciou-se, então, com a participação da mãe.

Uma primeira fase do trabalho deu lugar à escuta das questões da mãe, de seus relatos e lembranças, enquanto Michel permanecia em seu colo - de início alheio, para gradativamente ir se interessando pelo que a mãe contava, ou pelo que eu lhe falava do que estava ouvindo da mãe e que se referia à história dele.

Segundo a mãe acabou concluindo, o processo de adoção foi muito rápido (adoção à brasileira, fora dos trâmites legais), sem que ela tenha podido se dar conta das conseqüências de seu ato. Ela sabia prestar todos os cuidados quanto às necessidades físicas do bebê, fizera isto com seu primeiro filho, mas não conseguiu desenvolver isso que Winnicott (1956) denominou de "doença necessária" das mães: a preocupação materna primária, e que MarieChristine Laznik (1991) aponta como a capacidade da mãe de identificar-se com seu bebê ao ponto de dar lugar à verdadeira pulsão ativa, terceiro tempo em que o sujeito, depois de se oferecer como objeto, ser tomado como objeto, reconhece-se como o sujeito destes movimentos.

A mãe de Michel não podia identificar-se com ele para poder compor a mãe suficientemente boa - aquela que permite ao bebê instaurar a ilusão de onipotência necessária para enfrentar suas vivências concretas de fragilidade, tanto quanto viver experiências de desilusão, que lhe abram uma perspectiva de vida psíquica. Para ela, identificar-se com seu bebê remetia-a a lembranças dolorosas de sua infância, marcada por abandono, desamor e ausência de referências.

O marido fora sua principal referência quando da adoção do primeiro filho, sustentada pelo desejo dele. Por ocasião da adoção de Michel, o pai encontrava-se em outra situação profissional, que o obrigava a ausentar-se com freqüência.

Falar de sua história permitiu à mãe, diante do incentivo deste terceiro que eu representava, oferecer-se como continente para este filho. Um encontro mãe-filho começa a se esboçar, instaura-se o apelo: há uma busca do corpo da mãe, de seus toques e palavras, por parte de Michel, à qual a mãe tenta, surpresa, corresponder.

Michel "não sabia brincar", contou a mãe. Na verdade, era-lhe muito difícil "reconhecer" as brincadeiras que o filho podia propor, ou mesmo dar-lhe alguma dica neste sentido. Foi necessária uma introdução do campo do faz-de-conta de minha parte para que a mãe, identificando-se comigo, esboçasse algum movimento nessa direção, que retroativamente lhe proporcionava encontrar, no meu olhar, um reconhecimento de sua possibilidade de ser mãe ali.

Uma segunda fase do trabalho teve início quando Michel pôde descer do colo da mãe e começar a explorar a sala e os objetos. Os brinquedos passaram a ser utilizados na sessão e em casa, em sua função de objetos transicionais, instaurando uma área de experiência imaginária entre a criança e a mãe, marcada principalmente pelo que aí se jogava de possibilidade, como bem o apontou Lacan, de a criança ser transicional para a mãe, ou seja, que sua perda fosse possível.

Sobrevém, então, um momento reativo difícil. A mãe ficou doente "por ter ficado com Michel no colo por muito tempo, não estando bem". A mãe dá mostras finalmente de sua falta, mas fora do espaço da análise. Eles deixam de comparecer a algumas sessões. Enquanto isto, Michel também adoeceu, com diarréia e vômitos, a mãe o levou ao médico, e este solicitou vários exames, até mesmo EEG. Este remetimento ao corpo teve graves conseqüências para Michel. Na sua volta às sessões, observo com surpresa seus sintomas que retornam: não me reconhece, volta aos movimentos estereotipados, auto-isola-se.

Observamos aí que a passagem que vinha ocorrendo, do real ao significante - em direção a uma queda do a cristalizado em Michel enquanto objeto causa do desejo da mãe -, provoca nesta última uma reação depressiva. Índice da retomada, por ela, da angústia até então obturada pelo filho, angústia enquanto representante de seu lugar de desejante. Apesar de necessária, esta angústia provocou reações primitivas tanto na mãe quanto no filho, levando os dois a se situarem novamente no nível do corpo. E, como muitas vezes acontece, nestes casos, não deixaram de encontrar um profissional da "saúde" disposto a complementar sua demanda

Nesse momento, minha intervenção fez-se firmemente em duas direções: em relação a Michel, marcando -por uma reconstituição de sua história e de nosso trabalho ali - seu lugar na sua história e na de sua família; e em relação à mãe, interpretando seu estar doente como algo relacionado ao lugar que deu - no seu corpo e na sua vida - a esse filho, que está crescendo.

Iniciou-se então a terceira fase do trabalho, em que o corpo de Michel e da mãe estavam constantemente em questão enquanto falados, a mãe tentando dirigi-lo aos brinquedos, nomeando os objetos, brincando com ele e sua imagem no espelho. O tempo do especular se instaurou, dando lugar à constituição do Eu Ideal.

Nessa fase, assisti à posta em cena, nas sessões, da separação de Michel em relação à presença concreta da mãe - tempo do fort da!, e conseqüente apropriação da fala por parte de Michel, que passa a se expressar com bastante desenvoltura.

Num primeiro tempo, Michel propõe à mãe que o espere, sentada do lado de fora do consultório, ao lado da porta aberta. Depois, foi ela quem propôs ficar esperando-o na sala de espera. Ele aceitou, desde que a porta entre as salas se mantivesse aberta. Mais adiante, Michel mesmo fechou a porta. Um segundo tempo surgiu, povoado de brincadeiras, personagens e histórias, principalmente de heróis, que davam conta do objeto metonímico em que ele pudera se transformar para a mãe, uma vez constituído um lugar metafórico para ele.

Michel estava, então, com 3 anos. Toda a aventura edípica parecia a sua espera.

Os pais começaram a planejar matriculá-lo numa pré-escola, perspectiva que Michel via com agrado: assistia a seu irmão saindo para a escola e queria fazer como ele.

Com seu ingresso e adaptação à pré-escola, fato com que Michel estava muito satisfeito e orgulhoso, os pais decidiram que seu tratamento chegara ao final.

Michel costumava referir-se a mim, depois de um certo tempo de trabalho, como "a minha Ledinha", momentos em que me mostrava como fui capturada e transformada por ele em objeto, na transferência. Poder brincar com ele, entre outras coisas, de esconde-esconde - em relação à mãe, aos bonecos, entre nós - fez-nos circular por objetos transicionais diversos, que permitiram um trajeto, no espaço imaginário ali constituído, rumo à realidade externa, quando ele pôde querer me dizer "tchau" e planejar outros lugares para si, embora bastante atribulado com sua nova função de ser... o falo.

Três anos depois, quando de seu ingresso na 1ª série, a mãe voltou a me procurar devido a uma indicação da escola. Lamentavelmente, por estar entrando em licença de gestação, não o pude atender e encaminhei-o para uma colega.

O interessante foi que, ao discutir com essa colega, meses depois, sobre o andamento da nova análise de Michel, parecia se tratar de uma outra criança, não era o Michel que eu conhecera! Parece que ele deixara seus traços autistas no meu consultório e na minha memória.

Com ele aprendi a separar autismo de sujeitos autistas à espera de um interlocutor.

O que Hamlet tem a ver com isso? Entre outras coisas, a referência ao cadáver, à questão da perda e do luto envolvidos na possibilidade de dar lugar a um sujeito. É só ao deixar cair a caveira que se pode ir além do ser e encontrar o significante. Como disse Lacan (1959), "a tragédia de Hamlet é a tragédia do desejo" (p. 102).

 

NOTAS

1 Quando de sua vinda a Curitiba, em 18 de agosto de 1990, para proferir o seminário "O fantasma masculino e o fantasma feminino ou A sexualidade entre a Colônia Penal de Franz Kafka e a História d'O de Pauline Réage".

2 Trabalho apresentado no Encontro Paranaense de Psicologia (23 a 26 de agosto de 1989) e publicado nos Anais do III Encontro Paranaense de Psicologia. Curitiba, PR Conselho Regional de Psicologia, 1991.

3 Faço referência ao doutorado em Psicologia Escolar e Desenvolvimento Humano, em que está inscrita minha pesquisa, sob a orientação da profª drª Maria Cristina M. Kupfer.

4 Tive oportunidade de escrever sobre essa experiência paia a Estilos da Clínica, 4.

5 As citações que apresento a seguir são de anotações que fiz durante o estágio teórico "L'autisme de l'enfant", promovido pelo College de la Formation Permanente da Fondation du Champ Freudien, em Paris, em fevereiro de 1984.

6 Seminário proferido na Associação Psicanalítica de Curitiba, sobre "As psicoses", em 14 de novembro de 1997.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Balbo, G. (1991). A escolha autística da biunivocidade contra a incorporação significante. In M. - C. Laznik (org.). O que a clínica do autismo pode ensinar aos psicanalistas. Salvador, BA: Ágalma, pp.96-114.         [ Links ]

Calligaris, C. (1989). Introdução a uma clínica diferencial das psicoses.Porto Alegre, RS: Artes Médicas.         [ Links ]

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Recebido em 09/99