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Estilos da Clinica

Print version ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.4 no.7 São Paulo  1999

 

DOSSIÊ

 

Breves apontamentos sobre o autismo

 

Brief notes about autism

 

 

Alain Vanier

Psicanalista, professor doutor na Universidade de Paris 7

 

 


RESUMO

Este artigo expõe uma leitura psicanalítica do autismo como um modo de proteção particular, que se constrói, distinguindo então este quadro de uma simples parada no desenvolvimento. Esta construção dá-se quando a criança obtura a fenda existente entre mãe e criança, constituindo-se como objeto que completa o fantasma do outro.

Linguagem; alienação; intervenção


ABSTRACT

This article shows a psychoanalytical reading of autism as a way of protection of the individual. This process builds up as opposed to a halt in development. It occurs when the child bridges the existing gap between mother and child and presents itself as the object that fulfills the ghost of the other.

Autism, language, alienations, intervention


 

 

O uso muito particular da teoria no tratamento de crianças autistas indica, em contrapartida, a maneira pela qual o autismo interroga um certo dogma psicanalítico, e faz as perguntas que deveriam ser feitas quanto à posição do analista no tratamento.

No prefácio ao livro de Aichhorn, Juventude abandonada, Freud, em 1925, sustenta, como fará nas Novas conferências, em 1933, que no caso da psicanálise com crianças, mas também de maneira geral, é preciso, para iniciar um tratamento, que existam "pressupostos bem definidos que podem ser resumidos sob a expressão 'situação analítica'; ela exige que certas estruturas psíquicas tomem forma [...] onde elas faltam [...] é preciso fazer outra coisa diferente da análise, alguma coisa que em seguida reencontre novamente a análise na sua intenção" (Freud, 1925).

A psicanálise, dizia Freud, é uma "pós-educação", ela intervém às avessas sobre a educação recebida. O que acontece, então, quando aquilo que constitui as premissas mesmas de toda educação falhou?

Em 7 de janeiro de 1929, Melanie Klein recebe o filho de um colega, que entrará para a história da psicanálise com o nome de Dick. Ele não tem 4 anos ainda. Nessa época, o termo autismo, no sentido de Kanner, ainda não existia, mas alguém como F. Tustin reconhecerá neste caso o primeiro tratamento analítico de uma criança autista. Melanie Klein descreve Dick como uma criança desprovida de afeto, indiferente à presença ou ausência de sua mãe, não tendo sequer o desejo de se fazer compreender, os olhos fixos, etc. Não vou detalhar este relato, conhecido por todos. Gostaria somente de lembrar um momento da primeira sessão tal como ele é relatado por Melanie Klein.

"Quando eu lhe mostrava os brinquedos que havia disposto, ele os olhava sem o menor interesse. Eu pegava um trem grande, que eu lançava ao lado de um trem menor e que designava sob o nome de 'trem papai' e 'trem Dick'. Ele pegou o trem que eu tinha chamado 'Dick', o fez andar até a janela e disse 'estação'. Eu lhe explicava que a 'estação é a mamãe; Dick entra na mamãe'. Ele deixou o trem, pôs-se rapidamente entre a porta interior e a porta exterior da sala, fechou-se dizendo 'preto' e saiu imediatamente correndo" (Klein, 1968).

Verbalizando assim o mito edipiano, Melanie Klein "lhe impõe o simbolismo com a maior brutalidade", comenta Lacan (1953-54). É um uso particular da teoria. Não se trata de uma interpretação, pois para isso seria necessário que já houvesse ali o que a intervenção de Melanie Klein tenta instaurar. Ela parte de seus pressupostos teóricos, de seus preconceitos, por que não? Propondo esse mito teórico, ela faz falar um elemento desse real uniforme no qual estava a criança, ela introduz o diferente na indiferença inicial de seu mundo.

E o efeito dessa intervenção é o de produzir um "primeiro apelo" (Lacan, 1953-54) nessa criança que, ainda que na linguagem, não apresentava desejo de se comunicar. Esta conseqüência deve ser articulada a uma outra no que concerne a estes objetos que se tornaram substituíveis e então destacáveis, num jogo de equivalência que testemunha que tudo não é mais, então, equivalente.

Se acontece alguma coisa a partir dessa intervenção, a questão que permanece é de saber por quê. Por que esta fala, e não outra qualquer? Para nos lembrar da modéstia necessária quanto à fé que podemos ter em nossas teorias e em nossas intervenções conceituais, lembremo-nos desta nota de Winnicott que dizia que se os neuróticos não podem passar sem análises e analistas, existiriam curas espontâneas de psicoses no decorrer de diversos fenômenos da vida ordinária, que ele enumera: "As amizades, os cuidados no decorrer de doenças físicas, a poesia, etc." (Winnicott, 1954). Tudo pode então funcionar, mas não qualquer coisa.

A que se liga a palavra que o analista profere? O que vem captar esse mito assim enunciado?

Eu recebo um menininho de 5 anos. Não é uma criança autista, embora seja mudo. Ele vem do Extremo Oriente, adotado por pais franceses com 3 meses de idade. Uma malformação necessita, muito cedo, de longa intervenção cirúrgica. Aos 2 anos, ele diz duas palavras: "papa" e "mama". Neste momento falece a avó paterna, que ocupava um lugar muito importante, verdadeiro suporte da família. Durante as férias que se sucedem, os pais notam uma grande regressão. Ele pára de falar. Ele seguirá tratamentos que trazem melhoras sensíveis, mas sempre sem a fala.

Serei voluntariamente sucinto quanto aos elementos clínicos. Mas vocês verão por que eu falo disso aqui. No momento da primeira sessão, ele parece um pouco ausente, mas, às vezes, enquanto os pais falam, ele se põe a atirar, muito vivamente, brinquedos e lápis. Ele acaba querendo sair, quando seus pais relatam a história de seu nascimento e as razões pelas quais ele foi abandonado e depois adotado.

Na sessão seguinte, ele deixa alguns traços sobre a folha branca colocada na sua frente, deixando correr a canetinha sem parecer prestar atenção nisso, depois rasga a folha e a joga fora, emitindo um som. Acredito reconhecer aí a língua do país de onde ele vem. Eu lhe digo isso e lhe conto sua história novamente. Ele está então diante da janela que terá um papel importante no seguimento do tratamento e diz alguma coisa como "ver mamãe". Eu lhe digo que o escutei dizer "tchau mamãe"1, que é o que ele gostaria de dizer à sua mãe de nascença quando ela o deixou. Ele tira seus sapatos e se senta no chão. Detenho-me aqui no relato deste início de tratamento, e gostaria somente de indicar que este menininho voltará a falar a partir desta sessão. Seu pai me dirá, algum tempo depois, que ele está nascendo uma segunda vez.

Muito recentemente, seu pai recebeu a fita de um filme em versão original proveniente do país de origem desse menino. Ele mostrou-lhe, e ficou muito surpreso de ver essa criança, que geralmente se interessa pouco pela televisão, ficar até o fim desse filme e pedir mais e mais. Essa criança partiu desse país com 3 meses de idade. A língua, então.

Uma teoria é uma abertura na língua. Mas isso com o tempo cessa pouco a pouco de surpreender, de espantar, seu efeito desgasta-se e alimenta então a resistência. No tratamento de crianças como as autistas, esta usura é singularmente menos sensível, talvez porque a teoria funcione diretamente como a ficção própria a articular com a estrutura (Mannoni, 1979).

Melanie Klein fala do lugar do Outro, força de um saber que pela sua dimensão de certeza e seu peso de verdade poderia muito bem aparentar um delírio. Mas, dirigindo-se a Dick, ela lhe supõe igualmente um saber que suporta sua teoria, a partir de alguns elementos que ela destaca: seu interesse por alguns brinquedos e pelas portas.

Para que suas intervenções possam operar, é preciso, apesar de tudo, que haja alguma coisa, talvez um lugar, qualquer coisa que faça com que isto possa ser escutado. É preciso supor alguma outra coisa, um Outro primordial, que não exista sem ter um lugar e com quem tenha algum engate, e, então, uma marca primeira, pois essas crianças sobreviveram e aceitaram, então, os cuidados iniciais que lhes deram suas mães. O que faz, aliás, que essas crianças, embora fora do laço social, não estejam fora da comunidade.

A presença deste Outro deduz-se do seguinte: o autismo construiu-se. Fortaleza vazia, encapsulado, não é uma simples parada no desenvolvimento, é modo de proteção particular, o que supõe alguma coisa da qual se tenha de se proteger.

Entre mãe e criança, não existem somente cuidados e alimentação, existe gozo, o que já notava Freud. Existe também a linguagem. Os primeiros tempos são marcados pelos movimentos de idas e vindas da mãe, sua ausência, sua presença ligada ao apaziguamento desta tensão que é a fome, que retorna. A esta forma que volta sempre ao mesmo lugar, vai se endereçar o apelo, qualificado como tal pelo Outro -este resto da demanda que surge na ausência, assim Dick chamando a babá, no final da primeira sessão.

Este apelo ao Outro faz surgir do Outro um significante - nomeação, demanda etc. -, e este significante primeiro vai constituir o Outro como faltante, ou seja, desejante. É aí que o sujeito se aliena, se funda e entra na linguagem. Ele terá então de passar pelas palavras do Outro para demandar, por exemplo. Quer dizer toda a importância da primeira palavra, da primeira palavra endereçada, a primeira que é de certa forma já segunda, e que fecha, no laço com o Outro, o circuito da fala.

Esta alienação reenvia a toda uma série de alienações que Lacan destacará: à imagem do espelho, ao desejo do outro, etc. Mas essa irrupção da linguagem, e sua função ao mesmo tempo alienante e separadora, provoca a queda de um primeiro objeto - objeto que o Outro terá o poder de dar ou de não dar. Este objeto, o seio, a criança teve a ilusão de criá-lo como um de seus objetos. E o corte passa precisamente entre o objeto e a mãe.

Entre mãe e criança, existe uma fenda. Existe ao menos essa falta originária ligada à origem sexuada do nascimento. Existe uma falta desde o início, uma adaptação imperfeita da qual pode testemunhar a perda inicial do envelope, do objeto placentário. A criança não ocupa todo o espaço. Díade, fusão, simbiose, estes termos podem nos fazer acreditar numa unidade que não é senão imaginária. Este terceiro termo inscrito no início como falta permitirá que circulem todos os objetos que intervirão na troca entre mãe e criança.

Pode acontecer de a criança obturar esta fenda2. No autismo, o objeto obtura totalmente, ele não é capturado em nenhum semblante: é o objeto que completa o fantasma do outro, e ao que o sujeito pode se identificar.

O que faz o analista nesses casos, se não for articular pela fala esta falta que faltou, limitar, inscrever esse gozo sem lugar que submerge essas crianças. Mas, para isso, é preciso supor uma primeira entrada na linguagem, "uma predisposição à linguagem", para poder chegar a esse lugar. Pois não se pode dizer que eles não falam, dizia Lacan sobre os autistas, mas somente que eles não nos escutam. Para olhar, para escutar, é preciso uma qualificação particular do lugar de onde olhar, de onde escutar, uma qualificação simbólica.

Pois os autistas levam a isso que põe em evidência a alteridade necessária e específica a toda fala, a saber que a questão com eles não é tanto a de escutá-los, mas de fazer com que nos ouçam. Fazer-se escutar abre a possibilidade de escutar: " Há seguramente alguma coisa a lhes dizer" (Lacan, 1975).

 

NOTAS

1 Nota do tradutor: na língua francesa ver (voir) e tchau (au revoir) guardam uma homofonia que não é preservada no português.

2 Esta nota, como muitas das que a precedem, vai no sentido do que Tustin avança no seu último artigo: F. Tustin, "Vues nouvelles sur 1'autisme psychogénétique", IJP, Vol. 72, part. 4,1991, pp.585-591, trad. D. Houzel. Saint-André de Cruzières: Audit, 1992.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Freud, S. (1925). Préface à August Aichhorn, Jeunesse à l'abandon (R. Lainé, trad.). In OCPF, XVII[GW, XIV]. Paris: PUF, 1992, p.162.         [ Links ]

Klein, M. (1968). L'importance de la formation du symbole dans le développement du Moi. In Essais de psychanalyse (M. Derrick, trad.). Paris: Payot.         [ Links ]

Lacan, J. (1953-54). Séminaire I - Les écrits techniques de Freud. Paris: Seuil, pp.81 e 100.         [ Links ]

-(1975). Conference à Genève sur le symptôme. In Le bloc notes de la psychanalyse, 5,1985, p.17        [ Links ]

Mannoni, M. (1979). La théorie commefiction. Paris: Seuil.         [ Links ]

Winnicott, D. W. (1954). Les aspects métapsychologiques et cliniques de la regression au sein de la situation analytique. In De la pédiatrie à la psychanalyse. (J. Kalmonovitch, trad.). Paris: Payot, p.257.         [ Links ]

 

 

Tradução: Renata Petri