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Estilos da Clinica

Print version ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.4 no.7 São Paulo  1999

 

DOSSIÊ

 

O autista diante da palavra: um caso supervisionado1, 2

 

The autistic child facing the word: a controled case

 

 

Alfredo Jerusalinsky

Psicanalista membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre e da Association Freudienne Internationale. Diretor do Centro Lydia Coriat de Porto Alegre e de Buenos Aires

 

 


RESUMO

Este texto apresenta um caso de uma criança atendida no Lugar de Vida e supervisionado por Alfredo Jerusalinsky. Aborda-se a relação da criança autista com a demanda do outro.


ABSTRACT

This paper presents a case of a child in treatment in Lugar de Vida and controled by Alfredo Jerusalinsky. The relation between the child and the other's demand is discussed.


 

 

Equipe: Queremos falar de João3, uma criança para quem o espaço do Educacional é muito difícil, é o tipo de enquadre que tem as regras mais definidas, as atividades pré-determinadas. E uma criança que muitas vezes penso que não deveria estar nesse grupo.

Equipe: E, desse jeito que a montagem está colocada, não tem opção.

Equipe:Mas será que isso só ocorre com ele? E com as outras crianças?

Equipe:É a criança que fica mais distante. Não sei se seria clinicamente indicado que ele faça parte desse grupo. É uma coisa para pensar, me ocorre isto sempre. É uma criança que sempre que a gente faz qualquer tipo de demanda, principalmente demandas em que a palavra está colocada, parece violento para ele, ele grita, ele se morde. É uma atividade em que ele parece não ter interesse, a gente fica chamando para a atividade, e a cena se repete; dá chute na parede, quebra vidro, se morde... enquanto em outros espaços em que o enquadre é mais frouxo, vamos dizer, ele aceita...

Jerusalinsky: Por favor, descreva-me mais essa atividade.

Equipe: É o que a gente chama de Educacional. Esse grupo tem um enquadre mais parecido com o escolar: com atividade dirigida, tem chamada...

Equipe: Tem uma demanda.

Equipe: Por exemplo, a gente, durante muito tempo, fez trabalhos em cima dos nomes das crianças, ou com letras móveis ou fazendo contorno, a intenção era montar o nome. Foi um tempo grande em que a gente trabalhou a escrita do nome. No final fazemos uma chamada, em que aparece o nome deles e em que eles são chamados a fazer uma assinatura, uma marca, de cada um. Ultimamente, a gente tem trabalhado muito com desenho, com materiais diferentes; hoje, por exemplo, a proposta era fazer desenho com durex coloridos. É sempre com uma atividade que a gente já traz meio determinada, não é uma atividade em que a criança abre o armário e escolhe o que ela quer fazer, é uma coisa que a gente pensa em função do que vem aparecendo no grupo; então, é dirigida, e diferente dos outros espaços que são um pouco mais livres.

Equipe: Parece que este enquadre fica mais invasivo para ele, não é? Ele reage...

Equipe: É porque neste grupo existem outras crianças que estão mais próximas da letra, então, o contraste fica maior.

Equipe: Acho que este é um outro ponto, as diferenças nos grupos.

Equipe: Eu não sei se a montagem amarra tanto. Imagino que a gente até pudesse introduzir o trabalho de um adulto saindo com determinada criança num certo momento. Mas o que você traz é mais sério, isso de oferecer enquadres duros para crianças que não querem saber disso. Acho que esse é o ponto.

Equipe: Por exemplo, no caso de um autista bem autista, nós achamos que ele tinha de sair do grupo e ir só para o atendimento individual, porque a gente viu que realmente o grupo só produzia efeitos ruins.

Equipe: Acho que, neste ponto, o João é uma criança difícil, porque tem momentos em que ele topa o trabalho, tem momentos em que parece violento, é mais difícil pensar.

Equipe: Não é sempre que ao ser interpelado ele responde dessa maneira.

Equipe: Estou lembrando, na sexta-feira nós discutimos isso também. A AMA diz que não se deve falar com os autistas, porque eles ficam muito perturbados. Na AMA não falam. Fico pensando que isso deve ser fruto da experiência com uma criança para quem isso era problema, e foi generalizado. Não que ele seja um autista, estamos dizendo que para ele é mesmo complicado...

Equipe: Isso é que eu acho um mistério, fico me debatendo, afinal, o que é que faz com que em alguns momentos, ao ser interpelado, isso provoque uma reação de arrebentamento, ele se morde, grita, joga cadeira no chão... Uma vez a mãe estava vindo com ele para cá, ele sempre pára antes de atravessar a rua, vinha vindo um ônibus, e ela disse: "Espera aí, espera o ônibus passar". E foi o suficiente para ele explodir. No trabalho individual, na semana passada, eu vinha fazendo bastante interferência com ele. Ele pegou a argila, começou a mexer, fazer marcas na argila, eu peguei um palitinho e escrevi João na argila dele, ele permitiu, compartilhou aquele pedaço de argila comigo, e eu pude escrever João, ele olhou, continuou. Daí fui tentar fazer alguma forma com ele. Isto podia ser extremamente invasivo para ele, e não, ele foi topando, topando, e fomos construindo de um jeito bem diretivo.

Mas em um momento ele estourou. Ele pôs o dedo na boca, e eu disse (mansamente): não põe o dedo sujo na boca. E então ele começou a bater cadeira, chutar, gritar, até a hora em que eu falei bom... podemos voltar a trabalhar? Ele parou na hora.

Jerusalinsky: Quer dizer que o problema não é a palavra. É a interdição.

Equipe: Talvez o problema não seja o enquadre do educacional, sejam as interdições que se fazem nessa hora.

Jerusalinsky: Digo porque a AMA diz que a palavra não deve ser usada. Nós podemos escutar isso que os pais [da AMA] dizem, ou fazermo-nos surdos diante disso, mas eu prefiro escutá-los e tentar entender: por que que eles dizem semelhante coisa? Eu não sei por que que dizem, mas vamos formular algumas hipóteses.

Equipe: Nós formulamos e fomos na seguinte direção: talvez não a interdição, mas a demanda seja vivida como uma demanda invasiva.

Jerusalinsky: A demanda do Outro.

Equpe: Nós chegamos aqui.

Jerusalinsky: É assim, seguramente é assim. Por que razão os pais atribuem à palavra essa reação perturbada, como se a palavra fosse ela mesma a causa dessa perturbação? Digo porque é interessante escutar isso, porque está exatamente no avesso de nossas convicções, da postura analítica. A clínica tal como a lemos tende a nos demonstrar que, quando a palavra é introduzida, no lugar de produzir uma precipitação do ato, ela o desvia, o desloca. Isto que os pais dizem é exatamente o avesso de nossa postura, por isso mesmo é que tal coisa tem grande interesse para nós, por estar no avesso.

Vamos supor que fosse verdade o que os pais dizem e que, cada vez que alguém fala com o autista, o autista fica enraivecido. Isso poderia ser porque o autista percebesse, por exemplo, que a palavra tem uma incidência no mundo, modifica atitudes das pessoas, o sofrimento, a posição das coisas, e ele,- vamos supor, padece de algum transtorno central, talvez, patognomônico do autismo, próprio do quadro autístico, que o impede de partilhar do código da linguagem. E, diante da presença deste elemento que entra em jogo, desta manifestação humana, ele se sabe perdido, sem condições de se apropriar disso e tentar anular essa manifestação.

Vamos supor que esse seja o motivo, não é totalmente insensato supor isso porque crianças com disfasias podem ter esse tipo de reação. Nos casos de disfasias graves congênitas, nós assistimos a uma reatividade diante da implementação da língua. Quando a criança já chega a uma idade de 5,6 anos, ou seja, bem saída da fase especular, reage quebrando o espelho, lugar em que se supõe que elas sejam sujeitos de uma linguagem e que, como não o podem ser, batem, quebram.

Se isso fosse assim, ainda teríamos o problema clínico que evidentemente os pais não se colocam, e que é o de como fazer permeáveis essas crianças à língua, porque sabemos que sem essa permeabilidade à língua, sua chance de participação no mundo é muito pequena e sua autonomia subjetiva vai ser quase zero. Portanto, essas soluções que diante disso os pais tendem a adotar são reforçadas pelas colocações comportamentalistas de resolver isso pela via de uma série de comportamentos automáticos, maquínicos, e que oferecem alguma aparência de adaptabilidade e adaptação, mais ou menos fixa. Nós sabemos que essa é uma solução que cancela qualquer chance do que denominamos cura, que é precisamente a encarnação de um sujeito por mínimo que seja.

É claro que podemos nos perguntar por que razão os pais se inclinam a tal escolha, acoplam-se a tal interpretação das coisas. A resposta mais imediata que aparece elimina qualquer possibilidade subjetiva sobre o devir deste sujeito em questão, e isso desembaraça totalmente os pais da meada da vida dos filhos, uma vida evidentemente complicada, cujo ato de se desembaraçar poupa muitas angústias e sofrimentos, embora condenem o filho ao ostracismo, uma espécie de prática de ermitão, ainda que rodeado de pessoas.

Se assim fosse, ou seja, essa hipótese de uma disfasia originária, que não é rara de acontecer no autismo, ou seja, nós encontramos crianças autistas com transtornos severos específicos de linguagem. Efetivamente há uma correlação alta entre autistização e surdez, o que demonstra que se trata de uma particular posição em relação à linguagem em que o sujeito fica excluído dela e que isto é constituinte do autismo. Podemos fazer essa afirmação em uma proporção significativa dos casos. O que não sabemos é se isso aparece primária ou secundariamente e sabemos que a clínica parece nos indicar que às vezes é primariamente, às vezes é secundariamente, o que nos leva a pensar que a constituição de uma posição autística está caracterizada por essa posição em relação à linguagem, independentemente de ser primária ou secundária.

Agora, que os pais cheguem à convicção de que é a palavra que perturba, poderia ser uma conseqüência de que raramente os pais exercem a linguagem endereçada ao filho, a não ser sob a forma de uma demanda. É raro o uso da linguagem, da fala endereçada aos filhos e que não configure uma demanda. Quando os pais falam com os filhos "comporte-se bem", "sente direito", "vamos comer", "é hora do banho", "fez a sua lição?", "bota a tiara", "qual é o vestido que você vai querer botar hoje?", "vamos jogar futebol?", "você vai brincar?", por mais que sejam perguntas, são demandas.

Equipe: Grande parte das falas dos pais são demandas.

Equipe: Não só dos pais.

Equipe: Haveria uma fala que não contivesse demanda?

Jerusalinsky: Isso em relação aos filhos?

Equipe: Não, de modo geral.

Jerusalinsky: Claro que há. Pode se tranqüilizar, que existem coisas, como, por exemplo, estas, que não constituem nenhuma demanda.

Equipe: Estas?

Jerusalinsky: Isto que estou dizendo agora.

Equipe: Não, você pede que seja escutado, pede reconhecimento, pede aval...

Equipe: Toda fala supõe algum nível de demanda.

Jerusalinsky: É verdade que toda fala pode ser tomada no campo da demanda.

No mínimo, que seja escutado. Por exemplo, quando você diz "chove", tudo bem, você pode tomar isto no campo da demanda, uma demanda de ser escutado. Agora, se você diz "chove", e o outro lhe responde "por que você está me dizendo isto?", aí efetivamente você está tomando a fala do outro no campo da demanda. É evidentemente um deslizamento neurótico.

Equipe: Talvez a mãe do autista não tenha intenção.

Jerusalinsky: Efetivamente.

Equipe: Seria o inverso disso de que você está falando.

Jerusalinsky: Efetivamente.

Equipe: Nós demandamos dos filhos, dos outros: "Me escute". E a mãe do autista, talvez seja o inverso, não demande nada.

Jerusalinsky: Sim. É pior do que isso. Segundo o que escrevi - e continuo convencido disso - num texto sobre o autismo que se chama "A infância do real"4, a mãe demanda nada do autista. Que é diferente de não demandar nada. A mãe demanda nada.

Equipe: Que fique fora.

Jerusalinsky: É.

Equipe: Que não me escute.

Jerusalinsky: Que aí onde ele está, fique nada.

Equipe: Nós fazemos o inverso com o João. Nós demandamos dele.

Equipe: Dá para pensar por aí, na explosão do João para ele se manter no nada quando se demanda alguma coisa para ele.

Jerusalinsky: É por aí. Mas vamos devagar. Quero chegar a isso através de um certo caminho. Às vezes, quando precipitamos as conclusões, nos poupamos de explorar uma série de transformações, que são necessárias para podermos operar clinicamente. Prefiro ir passo a passo, porque passo a passo encontramos os passos da desmontagem disso que está montado. Então, requer certa paciência, é mais trabalhoso, mas é mais frutífero.

Bom, dizia que justamente o que costuma acontecer com os pais em relação a suas crianças. Para responder um pouco à sua questão, quando eu digo a uma de minhas filhas "que bonita que tu estás", evidente que ela pode tomar isto como uma demanda de estar bonita, mas também pode tomar isto como reconhecimento. Não sei como vai ser quando elas forem adultas, de repente, vão dizer: "Meu pai não aceitava que eu não estivesse bonita". Isso vai ficar do lado de uma demanda, ou vão dizer: "Ah, meu pai era muito admirador nosso, porque nos dizia que estávamos bonitas, não faltava reconhecimento". Ou, vamos supor, se houvesse uma histeria clínica: "Meu pai nunca deixava de nos olhar com olhar concupiscente, ou seja, de manifestar o seu desejo". Então ali, haveria uma demanda, e além do mais um desejo, e o desejo erotizado, etc., etc. Ou, por exemplo, quando você diz uma frase pouco comprometida, vamos supor que você diga: "Sem velocidade, não tem gozo", uma frase atual! Não está dirigida a ninguém, é uma interpretação dos tempos aaiais. E, mais que uma demanda, pareceria ser uma queixa. Pelo menos de minha parte. Ou pelo menos uma crítica. Por que haveria de gozar de modo veloz? Por que tudo tem de ser tão veloz? Claro, toda queixa é uma demanda, e essa é de que seja mais lento. Mas veja ali: a queixa produz uma inversão da demanda, então não é uma demanda direta. Também não é uma demanda de nada, de tal forma que a histerização da demanda permite a inversão da posição do sujeito, que é própria de sua constituição. Por isso é que Lacan e Freud dizem que a constituição do sujeito passa pela histeria ou pela histerização, justamente porque se trata de desmentir o que o outro supõe: "Não, não é bem isso, meu filho, é que ... não sei o quê, a tua mãe, blá, blá, blá, blá". A gente pode dizer que a histérica sempre passava negando o que me pedia, e lembrando o que não devia lembrar, e esquecendo o que deveria lembrar. É pois a queixa que a gente tem contra todas as mulheres. Passam a vida toda se queixando, ou seja, demandando o inverso do que demandam de direito, queixando-se de que não entendemos que, na verdade, o que querem é o inverso, de que não é assim, etc, etc. É o folclore em relação à feminilidade, ou seja, ficam lembrando o que deveriam esquecer, esquecendo o que deveriam lembrar, o que faltou, esquecendo o que houve, e assim vai. A queixa feminina em relação aos homens é o contrário: os homens ficam fazendo sempre a mesma coisa, digamos que aborrecem. Ficam sempre batendo na mesma tecla, quer dizer, não são românticos, não inventam novelas, não seduzem, não armam cenas, não geram novidades, não chegam com surpresas. Chegam todos os dias à mesma hora do trabalho, tiram o sapato, colocam os chinelos, sentam para ver televisão, lêem o jornal e vão para a cama. E ainda por cima querem transar. Sempre a mesma coisa, é um saco, querem transar todos os dias, e geralmente à mesma hora e do mesmo jeito. E nem trocam de pijamas.

Em tudo podemos encontrar uma demanda, mas a demanda tem um viés, um deslize, uma posição que não é totalmente uniforme, permanente. Há momentos em que tomar como demanda certa enunciação, por exemplo, os "chove" ou- esta frase sobre a velocidade, é da ordem da neurose clínica. Se digo "não tem gozo sem velocidade", e o outro me responde "e o que quer que eu faça? Você sempre com estas queixas universais!", evidentemente, o outro me responde a partir de uma neurose clínica, é um symtôme, um pequeno sintoma.

Mas toda essa série de matizes em relação à demanda do Outro não está no autismo. Sempre a palavra do Outro aparece como demanda de nada, demanda de um nada aí. Esta é a posição primária em que o autista toma a palavra do Outro. A terapêutica faz com que estas palavras possam ir adquirindo certos matizes. Mas, inicialmente, no estado puro do autismo, esta palavra tem esta posição. Pode ser porque a palavra caia num mar disfásico, e então ela não pode cumprir a sua função de recorte. Pode ser porque este oceano disfásico tenha a ver com o modo em que a língua foi introduzida pelos pais, porque nada faz pontuação em relação a esse filho. É o que acontece em relação aos autismos secundários a uma má formação genética, o autismo próprio da síndrome de Down, ou a incidência alta de autismo da síndrome Francheschetti-Trichers-Collins (uma síndrome que se caracteriza pelo fato de que as crianças são extremamente feias, são monstros, porque lhes faltam pedaços do rosto. Dá para ver o osso, é uma caveira vivente. Terrível).

Equipe: Qual é a participação da criança nisso? Ela é um objeto, tem responsabilidade nisso? Ocupa o lugar do nada?

Jerusalinsky: Não tem responsabilidade nenhuma, porque não é constituída como sujeito. É o mais- próximo de zero de sujeito que há aí. Não dá para responsabilizar algo que não é o sujeito. É o mesmo que responsabilizar um tigre por comer coelhos. Seria um crime contra os coelhos?

Bom, neste quadro, uns 30% são surdos congênitos, por obstrução da via aérea. Porque nascem sem orelhas, tem buracos dos lados... Com a perfuração da orelha, abre-se a via aérea, e ao que se sabe eles têm uma audição normal, ou quase normal. Evidente que estes são casos raríssimos. Encontra-se 1 em 50.000, ou seja, é uma síndrome muito rara, mais rara que o autismo, cuja incidência é de 1 em 15.000.

Equipe: Quatro em 16.000, entre os americanos.

Jerusalinsky: De qualquer modo, é muito menor, mas a literatura médica não é muito atualizada nisso, porque a quantidade de casos é pequena, mas ocorre um índice altíssimo de psicose e deficiência mental para essas crianças. Atualmente o capítulo de genética sobre a síndrome de Francheschetti-Trichers-Collins está suspenso, eliminou-se qualquer tipo de consideração sobre deficiência mental e saúde mental nesse tipo de caso, porque os geneticistas estão completamente em dúvida. Há uns 300 casos de operados precocemente, que atualmente contam com audição normal, desenvolvimento normal, psique normal, inteligência normal. Eu pessoalmente atendo um caso, desde bebê, que chegou à puberdade sem deficiência, sem psicose, sem autismo, sem alteração significativa. E não é porque eu faça milagres, é porque se trata de pôr o sujeito nessa posição, e não se deixar arrastar pelas aparências.

A incidência de autismos nesses casos é muito alta. É o mesmo que aconteceu com a síndrome de

Down; há 30 anos a incidência de traços autísticos era enorme, hoje é banal. Fica evidente que não se trata de uma questão genética ligada ao autismo, mas de uma posição de reconhecimento no campo da língua de um sujeito que fala. Hoje os pais e os terapeutas estão muito mais dispostos a escutar nas expressões da criança uma fala, embora ela seja incompleta, ou defeituosa e com dificuldades. Reconhecem nisso uma representação de um sujeito, isso faz com que nestes casos a incidência de autismo seja muito menor.

Não temos dúvidas de que a função da palavra é importante em seu caráter terapêutico. Em termos clínicos, a história nos tem mostrado que se trata disto. Agora, se tropeçamos com um caso, um quadro clínico como é o autismo, em que qualquer demanda do Outro através da palavra é tomada como uma demanda de exclusão, temos um problema sério, pois o instrumento em que nós confiamos para revirar as coisas, e que temos para produzir uma cura, está particularmente inabilitado. Isto é verdade, no estado primário do autismo é assim. A manifestação da demanda do Outro causa ao autista uma perturbação, um desassossego, produz uma posição de negação ativa deste contato.

Nesse sentido, o que os pais da AMA dizem não é totalmente insensato. Eles são tomados por uma conveniência de eliminação de responsabilidade subjetiva sobre o que ocorre com seus filhos e acabam conspirando contra a cura dos seus filhos. E devem contribuir para que muitas crianças que poderiam sair do autismo acabem não saindo. Não sabemos quantas, mas certamente não são poucas.

Sabemos ainda que bem haveria algumas que não sairiam de maneira nenhuma. Mas certamente as crianças menores submetidas àqueles princípios terapêuticos são submetidas à tendência de cronificação do autismo, ou seja, à tendência de estender e firmar a sua posição, em lugar de revertê-la. Esta é a razão pela qual essa controvérsia dos pais da AMA se torna tão dramática e tão dura em relação a eles e em relação aos psicanalistas, pois, se os psicanalistas afirmarem alguma esperança de que seus filhos pequenos se curem, imediatamente se apresenta a eles que, se não se curarem, seria responsabilidade deles, dos pais. Este é o imaginário deles... eles seriam imaginariamente os causantes e responsáveis pela permanência dos filhos no autismo. Isto ninguém diz, mas o imaginário deles diz, porque eles já se sentem causantes, e antes de mais nada precisam se desembaraçar dessa culpabilidade.

O que temos como certo é que quando não se tenta não se sabe.

No caso deste rapaz, certamente ele já atravessou um processo terapêutico-clínico longo, o que faz com que suas manifestações autísticas não sejam tão primárias e tenham sofrido certa elaboração. Uma das coisas que notamos aqui é que ele é sensível à demanda do Outro, e que, em lugar de fazer como um autista faz em seus momentos mais típicos, ou seja, virar as costas a quem demanda alguma coisa, ele ataca.

Vejam só, vou fazer um rapidíssimo esquema, muito esboçado, de como ocorrem as coisas em relação à demanda e à agressivização durante o primeiro ano de vida.

Primeiro a criança manifesta um incômodo corporal, algo a perturba corporalmente. A mãe toma essa manifestação de mal-estar, de incômodo, como demanda, como demanda da criança. E, na verdade, a mãe espera que o seu filho lhe demande algo, ela demanda que o seu filho demande. Quando acontece de o filho não fazer nunca isso, mais tarde recolhemos o relato de que "não me pedia nunca nada, era tranqüilo demais, dormia muito, não chorava, não sabia quando tinha fome".

Quando o filho grita "buá", ela diz-. "Ah!, me demandou!" Ela já está esperando, vai interpretar como demanda qualquer coisa, o interessante é que a mãe tende a interpretar como demanda algo que se relaciona com o mal-estar corporal que o filho efetivamente manifesta, ou seja, reconhece que aí há dor de barriga, há fome, etc. Bom, quando a mãe toma como demanda, o filho aprende a demandar. Se uma criança pequena, de uns 4 ou 5 meses, gritar de noite, e a mãe vier, ela rapidamente aprenderá que, se gritar durante a noite, a mãe virá. E a mãe diz: "Ele aprendeu que eu respondo, eu caí na armadilha!" Há uma subjetividade forte aí:-"Ele foi um espertinho, um arteiro e astucioso, fez um plano criminoso para não me deixar dormir!"

Bom, mas ainda ocorre o seguinte: assim como o filho percebe que a mãe responde à sua demanda, ele percebe que a mãe também demanda. O bebê aprende a ler estes pequenos signos da demanda do Outro. Ele começa assegurando-se de que o outro responda à sua demanda, ao moldar as suas manifestações. E precisamente quando a criança se modela à imagem que o outro espera dela que ela entra na fase especular. É o momento em que entra em uma dimensão narcísica primária, ao sair do auto-erotismo e entrar nessa dimensão, nessa borda. É aí que ele está atento à demanda do Outro para se colocar precisamente na mira dessa demanda. É quando ela bate palminhas, sorri, enfim, faz gracinhas, faz as coisas que todas as crianças fazem para nos seduzir. A criança se faz olhar, e está sempre atenta para se colocar na mira do olhar do Outro.

Esse movimento força uma passagem: a criança que inicialmente estava numa posição de suposta demandante agora é colocada na posição de ter que responder à demanda do Outro para se assegurar de que a sua demanda seja respondida pelo Outro. Como fazer isto? Ela tem de ter uma representação permanente no corpo do Outro. Ou seja, ela tem de estar representada no Outro. Porque se ela ficar à mercê do aleatório da demanda do Outro, que garantias terá?

É aí que começa ase agressivizar a relação: a criança começa a morder a mãe, a arranhar, a se queixar de um modo angustioso e ativo, a exigir do Outro uma presença. É nesse período que a mãe diz: "Não posso nem ir à cozinha, que ela já começa a chorar! Não posso nem sair do quarto, não posso nem fazer xixi tranqüila". Bom, aqui se produz a agressivização primária.

Os autistas geralmente vivem isso tardiamente. Porém, quando um bebê de 9 meses morde é uma coisa, quando um guri de 9 anos morde o terapeuta, é outra. Está claro? A força, a lesão que causa. Ele está nesse momento de agressivização. Vocês sabem que a saída primária de um autista de seu isolamento absoluto é atravessada muitas vezes pelo beliscão, pela mordida... no terapeuta.

Equipe: Coincide com um momento de estabelecimento de um outro tipo de vínculo entre ele e a mãe...

Jerusalinsky: Esse rapaz, por algum motivo, continua recebendo a palavra como demanda de exclusão, quer dizer que, quando se acentua a demanda do Outro, ele precisa invertê-la. O único método que conhece para tal é cavar um buraco no corpo do Outro, ou fazer um buraco no espelho, quebrar as coisas, entende? Ele faz uma escavação onde está representado.

Quem quebrou isto? João. Quem o mordeu? João. Quem quebrou esta mesa? João.

Equipe: As crianças do grupo lêem isto muito bem.

Jerusalinsky: Então, a pergunta clínica é: se isso for verdade, representa uma hipótese de trabalho. O problema com os autistas é que não podemos ter interpretações certas, apenas hipóteses de trabalho, pois, como eles não nos respondem, não estão no campo da linguagem, ou a sua participação no campo da linguagem é muito pobre, é muito difícil antecipá-la em uma interpretação verbal. A antecipação corre por nossa conta, o risco é um tipo de antecipação aberta, diferente do que acontece com a antecipação comportamentalista, que é uma antecipação que conduz a um resultado preestabelecido. Nós não conduzimos a um resultado preestabelecido. Nós abrimos as chances com estas hipóteses de trabalho de que o sujeito tenha a possibilidade de se posicionar em relação ao Outro, seja qual for a posição que ele seja capaz de produzir. Para o comportamentalismo, não é "seja qual for". É qualquer uma. É uma e uma só.

Equipe: Então é possível pensar a diferença da seguinte maneira: nós, psicanalistas, demandamos, o pessoal da AMA demanda que ele seja "isto", É essa a diferença?

Jerusalinsky: É essa a diferença. Exatamente. A diferença é que nossa demanda não é transitiva, em termos de conjugação, e a da AMA é transitiva. "Nós lhe demandamos isto", eles dizem. Nós, de outro lado, montamos um transitivismo, ou seja, um exercício do transitivo por parte do sujeito. A AMA monta a instalação de um transitivo por parte do Outro. O sujeito não tem nada a ver com isso.

Os comportamentalistas que trabalham com lingüística dizem que também trabalham com um Outro, com o Outro social. E há um engano, não digo um engano mal-intencionado, mas há um equívoco, porque, certamente, não é do mesmo Outro que falamos, e, se nessa criança houver uma adaptação à ordem do social e esse trânsito tiver sido produzido pelo comportamentalista, essa adaptação à ordem do social é fixa, não tem subjetividade em jogo, ou seja, não há um sujeito que a suporte. O terapeuta é a garantia.

É como aquela piada do cachorro de Pavlov que contei: dois cachorros amigos de longa data se encontram. Um magro, esquelético, depauperado, o outro do lado de dentro de uma janela, gordo...

- Meu velho, como vai ? Quanto tempo!

E o gordo lhe diz: - Vejo que a vida tratou mal de você...

Ele responde: - Do lado de fora é o desemprego, a miséria, o neoliberalismo, enfim, tem miséria, a fome, não se encontra o que comer. Por outro lado, vejo que você se deu bem, como é que foi?

E o gordo responde: - Pois é, aqui dentro tem um cara que gosta de brincar com luzes e campainhas, se chama Pavlov, e eu descobri que cada vez que eu cuspo um pouco ele me dá de comer. Foi só o que eu fiz!!!

Trata-se, então, desta posição do grande Outro, que é diferente entre comportamentalistas e analistas, porque, por mais que eles digam "nós também trabalhamos com o Outro social, também queremos que a criança entre na circulação social como sujeito", isto é verdade, mas se trata de um sujeito da lingüística tal como falou Pavlov. Aqui, porém, trata-se de que a criança aprenda a cuspir para pôr em jogo a sua subjetividade. O que na piada se revela é que o cachorro é sujeito, contrariamente ao que Pavlov supunha, o que estamos dizendo é que o autista é sujeito, contrariamente ao que a psiquiatria americana supõe. Os comportamentalistas supõem o autista não-sujeito, ou um sujeito completamente suportado pela posição do terapeuta, e não se produz translado, não se produz passagem. Nós também começamos dando suporte subjetivo ao autista, nós, terapeutas, mas nossa operação clínica consiste em transferir isso para ele, transmitir isso para ele. Para o comportamentalista, isto não é necessário, absolutamente.

Então, o João está neste impasse dessa agressivização, e há que se perguntar por que tão tarde. Por que aconteceu tão tarde essa agressivização primária e por que ainda permanece? Eu diria que é por causa de a mãe "estar em AMA". Atrevo-me a dizer: em uma posição à qual ela o remete incessantemente, a esse não reconhecimento do lugar de sujeito.

Equipe: Agora é que está começando a mudar um pouquinho essa posição.

Equipe: Mas então há uma mudança.

Jerusalinsky: Evidentemente há.

Equipe: Acho que muitas mães estão nessa "posição AMA".

Equipe: Há uma identidade, ele tem uma imagem?

Jerusalinsky: Agora tem.

Equipe: Nós nos lembramos de mais dois casos em que as mães saíram dessa "posição AMA".

Jerusalinsky: Então, é porque é mais do que uma hipótese.

 

NOTAS

1 A Estilos da Clínica inaugura em suas páginas esta outra modalidade de transmissão e apresenta uma supervisão realizada em 8/11/99 por Alfredo Jerusalinsky com a equipe da Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida.

2 A transcrição das fitas da supervisão foi realizada por Marize Lucila Guglielmetti, e a edição do texto foi realizada por liana Katz Z. Fragelli.

3 O nome da criança foi alterado. O espaço do Educacional é caracterizado pela oferta de atividades de cunho escolar.

4 Jerusalinsky, A. (1992). Autisme: 1'enfance du réel. Un temps sans espace, un espace sans temps, un paradoxe sans discourse. In P. Alerini et al. La clinique de Vautisme Ligne. Paris: Point Hors.

 

 

Recebido em 11/99