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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.4 no.7 São Paulo  1999

 

ARTIGO

 

Psicanálise com crianças: a legitimidade de um campo1

 

Child psychoanalysis: the legitimacy of a field

 

 

Ana Maria Sigal Rosenberg

Psicanalista, professora do curso de Psicanálise do Sedes Sapientiae, coordenadora do curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma, do Sedes Sapientiae

 

 


RESUMO

Este artigo discute as questões relativas à inclusão dos pais na psicanálise com crianças, -tomando do pensamento de Laplanche o conceito de significante enigmático e a teoria da sedução generalizada. Sabemos que não só os pais simbólicos ou imaginários circulam pelo espaço da cuba analítica; também os pais reais aceleram as partículas deste recinto, obrigando-nos a trabalhar na fronteira entre a realidade e o fantasma. Desta perspectiva, pensamos que o processo da cura produz retranscrições e reordenamentos, facilitados às vezes pela presença dos pais.

Transferência múltipla; psicanálise com crianças; pais; sedução generalizada


ABSTRACT

Borrowing from J. Laplanche body of thought the concept of enigmatic significant and the genemi seduction theory, this article brings forth matters related to the inclusion of parents in children psychoanalysis. As we know, it is not only the symbolic or imaginary parents who circulates within the psychoanalytic setting, real parents also do so, compelling the analyst to work at the very boundaries between reality and phantasy. From this perspective, we believe the psychoanalysis process produces rearrangements and reditions, which may very well benefitfrom actual parents presence.

Multiple transfer, children psychoanalysis; parents; general seduction


 

 

O prazer do trabalho está na possibilidade de decifrar os enigmas. Quando temos a facilidade de realizá-lo junto a outros colegas que estão também mobilizados pelo desejo de saber de si e do inconsciente, produzem-se encontros, bons encontros que deixarão as marcas do ser afetados. Poderemos a partir daqui compartilhar os efeitos desses afetos.

É a partir desses encontros de afetos e idéias que somos capazes de confrontar a multiplicidade que nos permite estabelecer uniões e relações, assim como também encontrarmo-nos nas diferenças. É por esse privilégio que desejo agradecer ao Comitê Organizador destas jornadas o esforço realizado para que este encontro seja possível. Nós que participamos deste evento temos algo em comum: termos sido afetados pelo pensamento de J. Laplanche, termos sido atravessados pelas suas idéias que propiciaram um movimento produtor de trabalho em relação à obra freudiana, a sua própria produção e à produção singular de cada um de nós.

Apesar de estarmos de acordo quanto a ser a sexualidade infantil um dos paradigmas da psicanálise - constitutivo na fundação do inconsciente originado numa relação sexualizante com o semelhante, introduzido como estrangeiro num movimento de excitação traumática -, a possibilidade de analisar uma criança tem sido desde longa data uma questão polêmica.

Dois tipos de razões questionam essa prática e nos propõem problemas a serem trabalhados:

1) problemas de ordem metapsicológica inerentes à formação da própria subjetividade, assim como

2) decorrências dessa metapsicologia que afetam o espaço analítico e seu entorno na determinação do setting.

As primeiras referem-se a elementos próprios da constituição do aparelho psíquico ligadas à função do outro traumatizante, em sua relação com o recalque primário e secundário, aos tempos do Édipo e à peculiaridade com que a temporalidade se faz presente na formação do inconsciente, nos propondo uma tarefa singular: analisar um sujeito em constituição. Vemos como o conceito de resignificação e os dois tempos na constituição do trauma reatualizam a velha polêmica Anna Freud-Melanie Klein sobre qual é o tempo possível de uma análise. Seria possível uma análise antes do sepultamento do Édipo, antes da instauração do recalque secundário? Haveria formação de sintomas antes do recalque primário, com uma tópica ainda não definida? As análises dessa época seriam trabalhos preventivos que mudariam os destinos da repressão? Sem dúvida, essas questões devem ser dirimidas no campo metapsicológico.

É J. Laplanche (1989) quem nos oferece subsídios, por meio de seus novos fundamentos, para resolver certos problemas teóricos que criaram um impasse no entendimento da formação do sujeito psíquico, nesse movimento que vai da autoconservação à sexualidade. O autor nos fala de um inconsciente que não é inato nem pré-formado desde as origens. Distancia-se também da teoria que nos propõe um inconsciente que se constitui como produto de um efeito especular, em que não haveria diferenciação entre o inconsciente-desejo-discurso da mãe e o infans. A introdução do conceito de metábola aponta para um hiato entre o inconsciente da mãe e sua cria que nos permite repensar a fundação como produto do momento em que se constitui o recalque primário. Sua formulação relativa à mensagem enigmática permite-nos recuperar uma clínica que vinha esquecendo cada vez mais a sexualidade como um eixo fundamental, e que na sua articulação com a singularidade do Édipo e a castração dará conta das diferentes formações sintomáticas. É com esta metapsicologia que operaremos.

O segundo ponto questiona a legitimidade do campo da psicanálise de crianças devido às dificuldades de manter um espaço propício, com as condições necessárias que nos proporcionem garantias para que uma análise possa advir. Pensamos que caracterizar este campo é uma forma de legitimá-lo, porque nos confronta teoricamente com suas peculiaridades e nos oferece elementos para evitar os riscos que poderiam fazer fracassar nossa tarefa prática.

Nesse sentido, como bem sabemos, não só os pais simbólicos ou imaginários circulam pelo recinto da cuba analítica, também os pais reais aceleram as partículas desse recinto que nos obriga a trafegar por momentos na fronteira entre a realidade e o fantasma. Dificilmente é a criança quem demanda análise, freqüentemente o interesse dos adultos inclui um pedido para que possibilitemos mudanças na conduta em aspectos que a eles lhes pareçam indesejáveis, e que não necessariamente respondem ao desejo do filho. O adulto introduz suas próprias exigências com um tom de legitimidade. Isto poderia fazer que o trabalho começasse com uma hipoteca que comprometesse o campo inicial de uma análise. Como analistas nos vemos lançados ao conflito entre o desejo da criança e a demanda parental. A questão dos honorários vem a complicar mais o encontro, já que nos vemos praticamente diante de uma análise por encomenda ou com uma indicação que a limita no sentido de acabar com o sintoma. Tudo isso nos faz pensar que o pacto inicial poderia estar comprometido. No entanto, a teoria sempre avança em função das dificuldades que a clínica impõe. O trabalho com psicóticos, as doenças psicossomáticas, o autismo têm sido algumas das fontes para fazer avançar e repensar a clínica. Dizer não a essas dificuldades é tomar o fácil atalho de classificar essa prática como psicoterapêutica, o que seria voltar à questão do ouro puro.

O fato de depararmos com um campo complexo não implica que lhe neguemos cidadania.

As patologias infantis são uma evidência. Uma vez fundada a tópica psíquica, nos encontraremos com sintomas, antes dessa fundação poderemos falar de defeitos ou transtornos, produtos de esgarçamentos na constituição da subjetividade, como nos diz S. Bleichmar (1993, p.18). Sabemos dos riscos a que nos vemos submetidos ao tentar abordar estas patologias, mas podemos trabalhar de modo tal que nosso objetivo seja ajudar a criança a elaborar seu desejo individual e permitir-lhe uma maior autonomia. Entendo o alerta de Laplanche em sua Problemática V (1990, p.176), quando nos diz que "neste campo o termo psicanalítico deve ser posto entre aspas, porque a cuba analítica, cuba de amor e ódio, encontra-se ameaçada", mas resgato também que nos fala da possibilidade de superar com astúcia as exigências a que nos submetem essas instâncias terceiras para que uma análise seja possível.

Embora desejemos marcar o caráter singular do campo da clínica com crianças, é preciso diferenciar tal singularidade da idéia de uma especialização, e de seu inevitável correlato, ou seja, a necessidade de uma formação específica para atuar na área, idéia à qual nos opomos.

Três eixos principais, a nosso ver, formam as coordenadas que delimitariam a particularidade do campo:

1) a linguagem do jogo,

2) a abordagem de um aparelho psíquico em constituição, e

3) o caráter múltiplo da transferência.

A falta de tempo me obriga a fazer uma escolha. Optei, portanto, por comunicar a vocês as particularidades do caráter múltiplo da transferência, cujo estudo aportara elementos para trabalhar com essas instâncias terceiras, a que eu fazia referência, como suporte de transferência, o que não produz só efeitos indesejáveis, mas também aproveitáveis na condução da cura.

 

CAMPO TRANSFERENCIAI MÚLTIPLO

Nada melhor para iniciar o caminho em direção ao campo transferenciai múltiplo do que lembrar o pequeno Hans (Freud, 1909). Esse caso sem dúvida pode ser considerado o primeiro de inclusão de uma criança na prática analítica, com a mediação de um adulto, seu pai; aliás, foi a própria transferência do pai de Hans com o "professor" que inaugurou esse campo analítico.

Não é assim em todos os casos? Será possível iniciar o tratamento de uma criança se os pais não depositarem sua confiança - que define um lugar de suposto saber, o mesmo lugar em que o pai de Hans punha Freud como analista de seu filho? Qual é o pólo, na análise de crianças, que possibilita a inauguração do espaço analítico? Será possível atender uma criança se os pais não inaugurarem a transferência? Onde, e de que forma, esta transferência deve ser trabalhada?

Foi pelo pai que Hans dirigiu suas mensagens a Freud. A criança não só aconselhou o pai a tomar nota do que ia dizendo para contar ao professor, como também o tranqüilizou, dizendo que não deveria preocupar-se se o que contasse não fosse um fato da realidade, pois pensar não é fazer. Há um mútuo reforço da transferência de Hans ao pai, do pai a Hans, e ambos com Freud.

A mensagem de Hans foi endereçada simultaneamente ao pai e ao outro analista. Freud é também o supervisor, o suporte e a figura de sustentação na transferência do pai: Pai-terapeuta-ir-mão. Ambos consultam o "professor", que diz: "Eu sei". Ambos estão em transferência. A mãe de Hans não foi omitida. Mesmo sendo deixada de lado nesses encontros, cumpre um papel: foi paciente de Freud e aparece na queixa do pai como responsável pelo excessivo apego de Hans a ela própria.

Deixando a mãe fora do encontro, Freud - analista - provoca em parte o destino desse casal, vendo-se aprisionado nas redes de uma transferência da qual não consegue dar conta, perigo com o qual todos nós que trabalhamos com crianças nos defrontamos. No caso de Hans, existiam elementos prévios complicadores da situação: o interesse científico que mobiliza Freud e seu discípulo na tentativa de comprovar as teorias sobre a sexualidade infantil que o mestre vinha elaborando, o que acabou promovendo o voyeurismo do pai. A forte edipização à qual Hans é submetido não é alheia à formação do sintoma fóbico.

O caso do pequeno Hans revela a inextricável implicação da criança, analista e pais nesse tipo de relação. Essa intervenção clínica levantou múltiplas questões, tendo se transformado em um possível modelo para a análise de crianças.

Alguns analistas, entendendo que o sintoma da criança origina-se na conflitiva da sexualidade dos pais, propõem trabalhar só com eles e seu desejo, deixando de lado a singularidade desse aparelho que acabamos de descrever como um aparelho psíquico em constituição em que o outro implanta-se e funciona como estrangeiro, transfomando-se em autotraumático. Pressupor o inconsciente materno em continuidade com o inconsciente do infans não faz parte de nossa teorização.

Considero praticamente impossível a realização de um tratamento quando os pais não se implicam. Por mais intenso que seja, qualquer esforço estará fadado ao fracasso. Lembremos os pais de Richard, o famoso caso de M. Klein, que durante a guerra mudaram-se para uma cidadezinha perto de Londres para que o tratamento fosse possível. Ou ainda da Piggle de Winnicott, cujos pais viajavam quando a criança pedia um encontro com o analista.

Hoje em dia a situação é bem diferente. São os médicos e os professores que encaminham as crianças para o tratamento psicanalítico. São os convênios que pagam. São os motoristas que levam. São as escolas que, em lugar de rever seus planos de ensino, diagnosticam problemas de aprendizado. É a competitividade social que exige determinados modos de adaptação. Esta situação exige um cuidado ainda maior quando se reflete sobre a possibilidade de indicação de uma análise e sobre a necessidade de um trabalho que possibilite a instauração de setting. Muitas vezes, o que nos chega é uma demanda educativa que, a nosso entender, não deve ser rejeitada, e sim transformada, se necessário, numa demanda de análise que precederia o início do tratamento, mediante o trabalho prévio com os pais.

Segundo Laplanche (1990), o espaço analítico - campo seguro que propicia e contém a circulação libidinal - abre uma possibilidade de atualização dos elementos arcaicos, propiciando a instalação da transferência do mesmo modo que se estabeleceu a tópica psíquica. Em outros termos, no espaço analítico as mensagens enigmáticas põem-se novamente em circulação, possibilitando o trabalho com o inconsciente. Foi nesta teoria que encontramos subsídios para nossas pesquisas clínicas. Nada melhor que este espaço com colegas e amigos para poder discuti-las e pô-las à prova.

Já há anos os analistas começaram um trabalho com os pais como forma de introduzir esses restos transferenciais dos quais falávamos, para impedir a interrupção de um tratamento. Às vezes, quando não se responde à demanda dos adultos, aparece a ameaça ou se boicota o tratamento, interrompe-se o pagamento ou começam as faltas e os atrasos. A quem se interpreta? Com quem se trabalha nessa circunstância? Será que a criança deverá ser o suporte dessas intervenções, apesar de seu inconsciente não estar implicado diretamente como o produtor dessas atuações? Entendo que não. O analista, para responder a sua ética e não trair seu fazer que é propiciar ao paciente buscar a realização de seu desejo, precisa intervir em relação aos pais, sem submeter-se nem fazer acordos. Entendo que é interpretando elementos inconscientes dos próprios pais que será possível continuar o trabalho, não pelo sintoma que deslocam na criança, mas porque eles são a causa do sintoma que atuam na transferência. Hoje em dia é prática de quase todos os analistas, independente da linha teórica em que se sustentem, fazer certas intervenções em relaçãoaos pais como modo de trabalhar as resistências. No entanto, não é desse tipo de intervenção que trataremos.

Nos últimos dez anos viemos introduzindo mudanças na clínica com crianças que nos ajudaram a superar algumas das dificuldades que temos desenvolvido como especificidade do campo, e que levantam questões relativas a este encontro. Para dar conta delas foi preciso um mergulho fundo na teoria encontrando as razões metapsicólogicas que justificassem essa mudança na prática. Como toda mudança, essa também encontra resistências, já que se aparta das práticas mais conhecidas tanto por kleinianos quanto por lacanianos. Referem-se fundamentalmente a flexibilizar o recalque na condução da cura a partir de uma manobra que possibilita incluir os pais em momentos pontuais do tratamento da criança, em que a viscosidade prevalece sobre o fluxo. Confrontamo-nos com momentos em que a resistência acentua-se, e assim as associações se vêem impedidas, a repetição se exacerba, a possibilidade de elaboração fracassa e a angústia aumenta de modo tal, que no lugar de propulsar a busca, de propiciar novas ligações, novos agenciamentos, o processo paralisa-se. Situações em que nossos modos habituais de conduta não favorecem a continuação do trabalho. Momentos nos quais nem a interpretação nem a reconstrução operam como seria esperado. Pensamos que é nesses momentos que os pais poderiam funcionar como re-emissores in situ de enigmas dos quais eles próprios ficaram estrangeiros e que estas mensagens poderiam ter outros destinos que facilitariam a circulação e a perelatoração. Este foi um dos supostos teóricos com os quais nos orientamos. O encontro permite que a criança agencie novas vias de retradução, já que as mensagens a serem reenviadas não terão o mesmo efeito traumatizante e podem assim operar sobre os processos mnêmicos, possibilitando reordenamentos segundo nexos diferentes, produzindo novas retranscrições e abrindo novos caminhos de associação que antes estavam impedidos. Por efeito do après-coup facilita-se o caminho da perelaboração. Este convite aos pais é pontual e realiza-se nos momentos em que é preciso pôr a circular algo que está impedido de entrar na rede associativa. Sabemos que aspectos parciais das representações-coisa podem ser recapturados num novo tecido e re-transcritos ao modo do processo secundário na sua relação com a representação-palavra. Sabemos que a lembrança mesma não retorna, mas sim algum traço ligado à lembrança infantil que a evoca. Sabemos também que mesmo intraduzíveis algumas mensagens podem re-circular em busca de um estatuto menos traumático. Sabemos que, quando estas mensagens começam a circular, algo do outro transita na transferência, porque estas se fazem presentes como pertencentes a seu emissor. Sabemos também que o processo se realizaria do mesmo modo numa análise de adultos ou de crianças, já que esta função é intrínseca ao analista como disparador de enigmas. Então por que os pais?

Porque eles mesmos são objeto de transferência, como era o pai de Hans para ele, ambos em transferência com o analista. É este dizer em transferência com o analista que lhes oferece elementos para articular as simbolizações faltantes. É no estranho-familiar (Das Unheimlich) do discurso dos pais como suportes de transferência que o enigma, re-circulando, pode ter outros destinos. O familiar que lhe chega dos pais da realidade e o estranho que chega dos pais eles próprios na relação com o desconhecido de seu inconsciente, dos pais como sedutores-traumatizantes. "Algo que estava oculto tem vindo à luz"2, o contato com os pais nesta dupla função que provoca estranheza e familiaridade, que revela e oculta, atua como disparador de associações e propulsor de movimento.

Neste aparelho em constituição, em que as fronteiras e os lugares estão se constituindo, os pais aparecem como figuras fronteiriças entre a realidade e o fantasma e, ao incluílos, facilita-se um encontro que nada tem a ver com a interação, sendo mais próximo de uma circulação na qual as velhas mensagens enigmáticas viram novas, possibilitando mudanças que operam ambas as direções.

Se numa sessão uma criança propõe-se a sair para mostrar algo a sua mãe que está na sala de espera, pode-se sugerir que a mãe entre, já que possivelmente algo novo deve ser posto a circular e trabalhar no recinto da cuba. Os pais que convoco não são os pais do Eu, os pais da realidade. São esses pais "usinas", permanentes emissores de uma sexualidade que os implica em seu inconsciente; são os pais estrangeiros a seu saber que com sua fala permitem à criança encontrar pontos de ancoragem disparadores de associações. Fez-me muito sentido uma frase de Silvia Bleichmar (1996) quando nos diz "que interrogando sobre o portador da mensagem sabe-se que como resposta encontrar-se-ia um fantasma, e não a realidade do outro". Faço extensivo este conceito ao encontro com os pais.

Em conseqüência, sua presença possibilita que os traços recalcados nas primeiras operações de estabelecimento da tópica psíquica passem a circular de forma diferente, com novas articulações. Assim, efeitos diversos talvez possam se produzir, seja porque os pais modificaram sua relação com o próprio desejo, seja porque a criança dispõe de novos elementos para ligar os significantes que lhe chegam como enigmas a partir do campo do outro adulto (Rosenberg, 1994).

Uma palavra, um gesto, um tom de voz, um jogo com os pais, mostram-se todos como restos diurnos a partir dos quais a criança pode fazer novas construções. Na Interpretação dos sonhos, Freud (1900) nos diz: "A representação inconsciente como tal é incapaz de ingressar no pré-consciente, e só pode manifestar-se como efeito se entrar em contato com uma representação inofensiva (restos diurnos), que já pertence a este sistema, transferindo-lhe intensidade e deixando-se recobrir por ela" (p.54). Assim, os pais, com sua presença, na sua fala, oferecem-se como restos diurnos a serem utilizados. Sobre indícios dados por eles pode-se iniciar um verdadeiro caminho de regressão ao reprimido, e não só isto; novos arranjos podem ser feitos, produzindo elementos novos, o que nos permite pensar o processo de análise não só com função rememoradora, estritamente regressiva, mas também como produtora, permitindo ao sujeito criação de nova subjetividade.

O recalque secundário pressupõe uma tópica já constituída. Freud tenta encontrar as marcas primeiras, as pistas daquele momento da origem, mesmo sabendo que seus restos só apareceram na repressão secundária. O discurso parental já é produto da repressão secundária e facilita este caminho de regressão. Nas suas mensagens a criança pode achar múltiplas vias evocativas que lhe permitiram investir diversas representações que o conduzem ao recalque primário. No entanto, as raízes em que este se afunda no outro, permaneceram como restos intraduzíveis. Recupera no outro do encontro algo do outro traumatizante do adulto primeiro. Elementos do recalque secundário reverberam como ondas que tocam com suas vibrações elementos do recalque primário, produzindo um novo som. Assim, os significantes desarraigados do código da língua são re-evocados e podem ser transcritos ao processo secundário a partir do qual podem tornar-se conscientes. Sabemos que o caminho de saída dos representantes pulsionais está impedido, por eles estarem fixados ao inconsciente pela repressão primária, mas as vias de ingresso de novos elementos não está, e seu destino dependerá do entramado de base originalmente constituído. Se os conteúdos do recalque primário funcionam como ímã para os recalques posteriores, e investem na possibilidade de "dar caça" aos derivados que tentam escapar, como nos diz Freud em seu texto sobre o recalque (1915), os elementos do recalque secundário funcionam como anzóis dos elementos do recalque primário. Conseguem enganchá-los, pescá-los e arrastar aspectos parciais deles, pondo-os a circular com uma modalidade menos traumática, podendo conseguir vias de satisfação não necessariamente sintomáticas. Esses restos não traduzidos podem gerar novas combinações que lhes permitam vias de ligação. É nesta nova circulação que se produz uma nova versão da história apoiada na função tradutiva e autoteorizante do ser humano. Não é atrás da verdade objetiva que corremos numa análise; o que imporia, sim, é saber que seremos capazes de dispor de um saber mais abrangente e menos assujeitado aos aspectos não traduzidos das mensagens maternas primeiras, propiciando assim uma superação parcial dos recalcamentos.

É possível resgatar algo do arcaico na situação que a transferência oferece. A re-emissão de mensagens por parte dos pais reintroduz algo do objeto-fonte antes da repressão. A fala dos pais, em transferência na situação analítica, produz um efeito disparador e facilita a circulação da dimensão sexual. Nesta situação, o analista funciona como Freud em relação ao pai de Hans, como sustentáculo das mensagens que os pais emitem, oferecendo-se como garantia para que a criança possa flexibilizar o recalque, e tecer em função de um elemento rememorado toda uma rede de relações que o integrem ao sistema pré-consciente-consciente. A presença do psicanalista com quem os pais e a criança estão em transferência pode operar como efeito potencializador ou amortecedor dessas mensagens enigmáticas possibilitando um efeito particular no recalque dos pais, do filho ou do próprio analista, que a partir de então poderá dispor de novos materiais. Os pais ocupam para o filho um lugar de transferência na cuba analítica porque a eles próprios se lhes atribui um lugar de saber, eles são portadores do enigma que por sua vez transferem ao analista, em um movimento de "transferência da transferência", como nos diz Jean Laplanche (1990). No encontro com eles na sessão já há uma re-edição das relações primeiras.

Em suma, a situação analítica propicia especialmente um movimento de articulação e desarticulação de significações já estabelecidas, que se plasmaram no processo de subjetivação, e é por essa razão que a convocação dos pais parece-nos extremamente interessante. O efeito de dupla provocação. nos parece precioso. O inconsciente dos pais também se vê afetado. Partimos da idéia de que no pedido de análise os pais aceitaram implicar-se, estão em transferência, portanto, estão dispostos a serem interpretados, o que pode ser feito sem correr o risco de fazer interpretações selvagens. O limite e o alcance destas interpretações pode ser discutido em outro momento.

Esse encontro com o filho no espaço da sessão pode produzir efeitos analisantes que mobilizam algumas situações recalcadas nos emissores, remetendo-os ao próprio inconsciente. Os produtos emergentes poderão ser trabalhados em espaço separado com ambos ou com cada um dos pais. A questão do aparelho psíquico em formação e a profunda dependência vital à qual a criança está submetida nos defrontam com uma circunstância particular em que o tempo faz diferença. Uma intervenção adequada em momento certo produz mudanças e pode evitar danos maiores. Ao ser seu inconsciente provocado num encontro com o filho, esses pais podem pôr a circular em seu próprio psiquismo algo que, mesmo estando eles em análise, poderiam demorar anos em focalizar.

Gostaria de ressaltar, então, que esta proposta nada tem a ver com a idéia de trabalhar com os desejos dos outros originários como relação de extensão ao inconsciente do infans, nem como lugar de origem do sintoma na criança. Não é uma proposta de trabalhar com as resistências que no adulto podem aparecer em relação à análise da criança. Não é uma proposta intersubjetiva ou interacionista, tampouco uma proposta de terapia familiar. Refere-se ao trabalho possível com o inconsciente de cada um na sua singularidade, fundado e fundante na interioridade de um aparelho psíquico que tomou como próprio aquilo que lhe foi oferecido como alheio.

 

NOTAS

1 Trabalho apresentado no IV Colóquio Internacional Jean Laplanche, em Gramado (RS), em 1998.

2 Fuks, M. P. (1997). "Algo que estava oculto tem vindo à luz". In S. Alonso e A Leal (orgs.). Freud: Um ciclo de leituras. Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. São Paulo, SP: Escuta/Fapesp.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Rosenberg, A M. S. (1994). O lugar dos pais na psicanálise de crianças. São Paulo: Escuta.         [ Links ]

 

 

Recebido em 05/99