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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.4 no.7 São Paulo  1999

 

ARTIGO

 

Do desejo dos pais ao sujeito do desejo

 

From the desire of the parents to the subject of the desire

 

 

Daniela Waldman Teperman

Psicóloga, coordena o Núcleo de Intervenção Precoce do Lugar de Vida e é bolsista da Fapesp no mestrado em Psicologia do Instituto de Psicologia da USR

 

 


RESUMO

O bebê, ao nascer, situa-se no intervalo entre estes dois significantes: o desejo dos pais e o sujeito do desejo. Por um lado, está o desejo dos pais, que o precede e se atualiza no bebê real, de carne e osso, libidinizando-o, sustentando-o na cadeia significante. Por outro, situado no horizonte do bebê, mas vislumbrado pelos pais, está o sujeito do desejo. Mas como se dá a passagem do desejo dos pais ao sujeito do desejo? A partir da perspectiva psicanalítica, pretendemos avançar um pouco nesse terreno tão delicado que é a escuta do par mãe-bebê.

Bebês; psicanálise; pulsão; intervenção precoce


ABSTRACT

The just born baby is placed in between these two significants: the desire of the parents and the subject of the desire. From one side, there is the desire of the parents, which precedes the baby and is actualized in the real baby, bones and flesh, supporting him in the significant net. From the other side, placed in the horizon of the baby but seen by the parents, there is the subject of the desire. However, how is this passage- from the desire of the parents to the subject of the desiredone? From a psychoanalytical perspective, we intend to go a little further in this very delicate terrain that is the psychoanalytical listening of the pair mother-baby.

Babies; psychoanalysis; pulsion; early intervention


 

 

O bebê, ao nascer, situa-se no intervalo entre estes dois significantes: o desejo dos pais e o sujeito do desejo. Por um lado, está o desejo dos pais, que o precede e se atualiza no bebê real, de carne e osso, libidinizando-o, sustentando-o na cadeia significante. Por outro, situado no horizonte do bebê, mas vislumbrado pelos pais, está o sujeito do desejo, um vira-ser que antecipa sua existência como única e singular. Assim entremeiam-se bebê, pais e significantes, quando as coisas vão bem. Mas nem sempre é assim. Às vezes, o nascimento - com o que necessariamente traz de diferente do esperado - desorganiza o desejo dos pais, sustentado até então pelo simbólico e pelo imaginário, impondo-lhes um real insuportável, não libidinizável. A desorganização pode generalizar-se, desfazendo a rede construída para receber e sustentar o bebê e tornando impensável um futuro paraeste. O intervalo entre o desejo dos pais e o sujeito do desejo passa a ser uma barreira intransponível, estes significantes são esmagados, não há mais lugar para o sujeito.

Mas como se dá a passagem do desejo dos pais ao sujeito do desejo? Que espaço é esse, entre estes dois significantes, no qual o bebê situa-se ao nascer? Quais obstáculos podem se interpor? Como contorná-los? A partir da perspectiva psicanalítica, pretendemos avançar um pouco nesse terreno tão delicado - marcado pela intervenção num momento crucial como o da constituição do sujeito -, que é a escuta do par mãe-bebê, procurando apontar um caminho possível para reflexão.

 

DA INSUFICIÊNCIA À ANTECIPAÇÃO

O filhote humano é o mais inacabado dos animais, mesmo quando nascido a termo. Sua prematuridade é impressionante: precisa do Outro para sobreviver. Outro primordial que nos gritos do bebê interpreta fome, frio, desconforto, vontade de aconchego; que a partir destes gritos traduz necessidades tão imperativas. A mãe interpreta, traduz, atribui significação, supõe um sujeito naquela coisinha tão pequenina que é o bebê. Procura dar conta das necessidades de um bebê totalmente dependente do Outro. Mas quando a necessidade abre uma brecha para o desejo? Será que o bebê está imerso apenas no registro da necessidade neste período de dependência absoluta?

O primeiro grito do bebê é puro grito, resposta a uma estimulação interna que é incapaz de discriminar: ao mal-estar, o grito. A mãe aparece, socorre o bebê, dizendo-lhe: "Você deve estar com fome, a mamãe vai dar leite quentinho..." A partir desta experiência de satisfação - mítica -, o bebê, quando grita, responde à estimulação interna, mas antecipa o cuidado, a voz, o cheiro da mãe que virá atendê-lo, antecipando, por sua vez, para o bebê, um mundo de significações, matizes, sutilezas. "O bebê está imerso nesta báscula entre a insuficiência de seu corpo e a antecipação no Outro, que, a partir de seu desejo, lhe inventará um lugar próprio" (Peaguda, 1993, p.54).

Sobre a primeira experiência de satisfação, Elsa Coriat acrescenta (partindo da "Carta 52" de Freud): "Assim que este sistema (de marcas, signos perceptivos) começa a construir-se - e isso ocorre inevitavelmente desde a primeira experiência do bebê -, o escrito pelo Outro penetra na dotação de reflexos biologicamente herdados, passando a ordenar as condutas do bebê em função do vivido como prazer ou desprazer" (Coriat, 1997, p. 12). A partir da primeira experiência de satisfação, o bebê responde para além de seu aparelho biológico.

Ainda que totalmente dependente, o bebê não é, absolutamente, passivo. Responde às palavras e cuidados da mãe a partir de sua singularidade, suporta mais ou menos tempo de espera, fisga o desejo dos pais, "fazendo-se comer" por eles, inaugurando o circuito pulsional.

M. C. Laznik-Penot descreve os três tempos do circuito pulsional. No primeiro tempo o bebê busca o objeto oral (seio ou mamadeira). O segundo tempo é marcado pela capacidade auto-erótica do bebê (que chupa seu dedo ou a chupeta). Por último, o terceiro tempo é aquele no qual o bebê se assujeita a um outro -estendendo seu pé, por exemplo, para que a mãe o coma -, que se torna sujeito de sua pulsão. "Vemos aí que a passividade do bebê neste terceiro tempo do circuito pulsional é apenas aparente. É muito ativamente que ele vai se fazer comer por este outro sujeito, para o qual ele se faz, ele próprio, objeto" (Laznik-Penot, 1997, p.43).

O estabelecimento do circuito pulsional, examinado por Laznik-Penot no artigo acima citado, marca a passagem definitiva do bebê do registro da necessidade para o campo do desejo. Aqui, já não está em jogo a sobrevivência do organismo, mas a satisfação pulsional, que circula infinitamente, sempre realizando um novo percurso.

Mas, retomando, dependência não é passividade, R. Rodulfo frisa o movimento do bebê de retirada, escolha dos significantes disponíveis no mito familiar, ou arquivo, como este autor opta por referir-se à pré-história do sujeito:"... para ir em busca desses significantes indispensáveis, ... é condição necessária que ali haja Outro: corpo familiar, mito, arquivo; que haja algo ou alguém que ofereça significantes, que dê lugar" (Rodulfo, 1990, p.52).

 

QUANDO A DIFERENÇA OBSTACULIZA O DESEJO

Se o desejo dos pais começa antes mesmo do nascimento, pode encontrar neste um impedimento, uma barreira. O nascimento traz um bebê da realidade, com tal ou qual característica, mas que sempre marca um limite à fantasia dos pais - mesmo que se trate de uma característica que é vista positivamente por estes - e a necessidade de uma adaptação a esse bebê de carne e osso - em contrapartida àquele imaginado - que necessita de cuidados. Cuidados corporais básicos, como higiene e alimentação, cuidados atravessados pelo simbólico.

O desejo fantasiado da gestação precisa de uma adequação àquele que nasce e que tem características próprias. Características que serão significadas pelos pais, mas que introduzirão novos elementos em relação às fantasias produzidas na concepção/ gestação. Assim, ainda que postulemos a alienação como soberana, há uma brecha para as diferenças individuais, o bebê entra com algo seu. A construção do corpo do bebê não ocorre somente por parte dos pais. Mesmo que se trate de um jogo assimétrico, situado a partir da dependência absoluta ao Outro, é neste intervalo entre o esperado e o encontrado por parte dos pais que o bebê poderá apropriar-se do lugar que estes lhe outorgaram (Peaguda, 1993, p.55). Perguntamo-nos aqui: a alienação ao Outro não se daria de forma única para cada par mãe-bebê, a partir de um arranjo particular a cada par, a partir do desejo dos pais e das características específicas do bebê ao nascer?

Há sempre uma diferença entre o bebê esperado e o bebê que nasce. Diferença a princípio saudável, que propicia ao bebê aparecer como único. Nicole De Neuter-Stryckman apresenta uma formulação interessante para essa diferença: "A mãe real, o Outro-Real, desde o nascimento da criança perde esse Um-a-Mais do seu corpo, perda que produz uma reviravolta dialética: a mãe, de real, passa a ser imaginária e simbólica; a criança, de imaginária e simbólica, passa a ser real. (...) O Outro real, através dessa perda e a partir dessa perda inscreve todo falasser na ordem da significância" (De Neuter-Stryckman, 1998, pp.219-20). Podemos pensar nessa diferença, lacuna, hiato, como um mal-entendido. Ao transpor a idéia de mal-entendido inerente à fala tal como é definida por A. Jerusalinsky - "deslocamento do lugar original em que tal coisa foi dita" (1993, p.38) - à realidade do bebê que nasce, substituindo "tal coisa" por bebê e "dita" por fantasiada, podemos afirmar que o bebê nasce imerso em um mal-entendido. Mal-entendido que é saudável e, não só, fundamental, já que permite ao bebê e aos pais um encontro único: se o mal-entendido é universal, é também única a apropriação que cada um faz a partir dele.

Jacques-Alain Miller, em sua conferência intitulada "O mal-entendido", inclui o bebê, na medida em que é um ser falado, um falasser, no mal-entendido que ocone entre os seres falantes. Por meio de um caso clínico, esse autor analisa uma das facetas do mal-entendido. O autor compara o mal-entendido a um "tomar ao pé da letra" que ultrapassa a esfera consciente envolvida. Ou seja, o mal-entendido pode ter aspectos conscientes, mas necessariamente os ultrapassa, encontrando sua sustentação na dimensão inconsciente. Retomando esse "tomar ao pé da letra", podemos pensar que o mal-entendido inerente ao nascimento, com a diferença que está aí posta, pode paralisar o desejo dos pais, ao tomarem a diferença que o filho apresenta "ao pé da letra". Esta diferença passa a assumir um caráter incontornável, a simbolização é inviabilizada; o "pé da letra" passa a ser o real do corpo e ponto. Subentende-se que esse mecanismo encontra sustentação na esfera inconsciente, e o mal-entendido precisa ser então superado: "Só um tipo de conversa tem possibilidade de superar o mal-entendido: é a conversa analítica, evidentemente muito especial em seu dispositivo" (Miller, 1981). A intervenção no laço mãe-bebê, tratando-se de um dispositivo que lança mão da "conversa analítica" referida por

Miller, visa superar o mal-entendido quando este é "tomado ao pé da letra". Procura-se inserir no simbólico, inscrever no mito familiar, o bebê que vem sendo tomado apenas no real do seu corpo, auxiliando pais desorganizados por uma diferença inesperada a retomar o desejo ao qual o nascimento impôs um obstáculo.

Na maior parte das vezes, a mãe, de maneira espontânea e inconsciente, interage com o bebê que nasceu e realiza sua função de libidinização e incorporação simbólica. Esta adaptação freqüentemente é automática e imperceptível, mas, caso não seja efetuada nos primeiros momentos de vida do bebê, pode ocasionar desencontros com efeitos importantes na constituição do sujeito - até mesmo um quadro de autismo1.

Pensemos agora em algumas situações - podem ser inúmeras - nas quais o nascimento desorganiza os pais, obstaculizando o desejo, impedindo a mãe de realizar a função materna, de supor um sujeito naquele bebê que recebeu, mas não consegue esquecer, não é aquele que esperava, ou, como diz País (1995, p.22), mais que o não-esperado, recebeu um estranho.

Um exemplo desse tipo de processo ocorre quando, ao momento mágico do nascimento, segue-se o momento trágico da comunicação diagnostica (País, 1995)2. Um nome científico vem esmagar a possibilidade de um sujeito único, pois passa a ser um "síndrome de tal". O discurso da ciência vem soconer os pais, apresentando estatísticas, técnicas, prognósticos, mas esse socorro bem-intencionado pode ser nefasto, uma vez que substitui o saber inconsciente dos pais, ampliando o desencontro marcado pelo nascimento.

Há desencontros e desencontros. Se, por um lado, pode existir um comprometimento orgânico interpondo-se entre os pais e seu bebê; por outro, pode haver pequenos desencontros, sutis, que dificultam os primeiros tempos de vida do bebê. Pode-se tratar de um bebê que tem mais dificuldade de gerar uma mãe (Mathelin, 1997), um bebê pouco responsivo, que não consegue fisgar sua mãe em seu desejo. E é importante que saibamos que há bebês que necessitam de maior estimulação. Em desencontros como este uma intervenção pontual poderia restabelecer a função materna, um "convite ou talvez autorização a projetar-se sobre a criança, a 'antecipar', permite à mãe fabricar' seu bebê, ao mesmo tempo em que permite ao bebê 'fabricar sua mãe'" (Mathelin, 1997, p.136).

 

SUPOR UM SUJEITO - O DESPERTAR DE PAULO

Na literatura disponível sobre o atendimento ao par mãe-bebê, encontramos como direção do tratamento a restituição - ou ainda, a constituição - do sujeito do desejo (Ranieri & Foster, 1993). Encontramos também que caberia ao analista -em sua ética - supor um sujeito quando os pais não puderam fazê-lo. Se o circuito do desejo foi rompido, ou nem mesmo inaugurado, a entrada do analista visaria restituir, sustentar, oficializar a função materna, em um primeiro momento, possibilitando ao bebê a libidinização, a inserção na rede de linguagem e, em seguida, sustentando para a mãe que esse bebê é passível de ser desejado.

M. C. Kupfer e M. C. Laznik-Penot propõem a seguinte direção para a intervenção: "Ao analista, então, pode caber a mesma função reservada na lenda ao espelho: a de mediar o olhar, permitindo que a mãe veja seu filho através do reflexo de sua imagem no olhar do analista" (Kupfer, 1996, p.30). "...um olhar (o da analista) que lhe permitiu constituir-se como desejável, olhar ao qual sua mãe veio pouco a pouco a se identificar" (Laznik-Penot, 1997, p.54). A intervenção estaria permeada pelo objetivo de oferecer suporte que corroborasse ou devolvesse à mãe o saber inconsciente sobre seu bebê.

Paulo tem 1 ano e 8 meses e inicia um atendimento conjunto com sua mãe. Poderíamos confundi-lo com um bebê de poucos meses - pois não senta nem sustenta a cabeça -, não fosse o fato de ser um menino grande, comprido. Não há um diagnóstico fechado. As possibilidades de haver alguma alteração cromossômica ou síndrome genética foram afastadas. Há um histórico de convulsões - a partir dos 6 meses - e seguidas pneumonias. Paulo é encaminhado pela equipe de triagem do Lugar de Vida.

A primeira entrevista é realizada com Paulo, sua mãe e um profissional da equipe de triagem, aproximadamente cinco meses depois da realização da triagem. A partir da pergunta "Como está Paulo?", a mãe inicialmente dedica-se a falar sobre as intercorrências de ordem médica desse período. O profissional da equipe de triagem faz a pergunta novamente e obtemos uma nova resposta, que nos surpreende. C., a mãe de Paulo, passa a falar das mudanças que vêm ocorrendo com ele. O menino já não dorme o dia todo, não quer mais ficar sozinho no berço, "quer companhia" (sic), incomoda-se e rejeita a comida de que não gosta, a medicação com gosto desagradável. Embora vejamos um bebê amorfo no colo de sua mãe, onde parece não encontrar uma posição confortável, um bebê que não olha, ou seja, embora observemos quão comprometido parece ser o quadro deste pequeno diante de nós, acreditamos que abriu-se uma pequena brecha para o desejo neste par mãe-bebê.

Procuramos ressaltar, algumas linhas acima, a rapidez com a qual a mãe modificou seu discurso quando se deu conta de qual é a direção de nosso olhar, mais que isso, a partir desta mudança no discurso, aparece uma mudança neste par mãe-bebê que surpreende e aponta para um prognóstico favorável - levando em conta o comprometimento de Paulo, do qual desconhecemos o limite que representa para o sujeito - para esta dupla. Acreditamos que essa mãe, naquele primeiro contato de há cinco meses, na entrevista de triagem, encontrou um olhar diferente - uma escuta - que deu um empurrãozinho ao que certamente já estava lá, mas precisava de um outro, um Outro, que a auxiliasse neste movimento, movimento de supor e sustentar um sujeito ali, naquele bebê com o qual se desencontrara no seu nascimento ou mesmo antes deste.

A mudança no ciclo de sono-vigília parece ser o indicador essencial desta mudança. O que significa não dormir mais o dia todo? O que pode significar para este bebê ficar acordado? Também tomamos como um indicador de uma pequena, mas significativa mudança de posição em Paulo, o aparecimento do matiz, da diferença. Ele já não é mais indiferente ao que ocorre a sua volta, tem preferências, não quer ficar só, incomoda-se com o que não lhe agrada e encontra meios para explicitá-lo. Parece que esse bebê, que teria renunciado a esperar coisas deste mundo, encontrando no sono um lugar de refugio, encontrou algo que o fez mudar de idéia, renunciar à renúncia...

Nos bebês, os sintomas aparecem geralmente atrelados às grandes funções de base, como o sono e a alimentação. Rosine Debray (1988) dedica um capítulo de seu livro Bebês/mães em revolta aos distúrbios de sono, afirmando que estes freqüentemente aparecem sob a forma de insônias, primárias ou secundárias, ou seja, é a "falta" de sono o que leva os pais a procurar ajuda, é esta também que, muitas vezes, desestrutura toda a família. Mas o excesso de sono, como no caso de Paulo, não é também um sintoma? Pais procuram ajuda por este motivo? Debray faz uma breve referência à hipersonia, afirmando que esta geralmente apóia-se em organizações defensivas, mas freqüentemente passa despercebida.

A que espécie de demanda Paulo estaria respondendo com sua hipersonia?

Há uma sessão em que C. relata a primeira convulsão e a conseqüente internação de Paulo. Ele ficou hospitalizado durante um mês, teve pneumonia; seu estado de saúde era delicado. C. diz que permaneceu ao seu lado todo o tempo, "tinha medo de que ele não estivesse mais ali" (sic). Embora não utilize a palavra "morte", deixa transparecer que o sono do filho, a ausência de movimentos, faziam-na duvidar de que estivesse vivo. Ela ficava acordada, em vigília, esperando que o filho abrisse os olhos ou fizesse algum movimento. Parece que há aqui uma associação nítida entre sono e morte, Paulo sendo tomado pelo outro apenas no real do seu corpo, de cuja sobrevivência a mãe duvidava. Corpo que necessitava de cuidados, cuidados que não pressupunham a existência de alguém que o habitasse, alguém que quisesse, se incomodasse, desejasse.

Ainda na mesma sessão, C. relata que na véspera Paulo ficara acordado até 2 horas da manhã. Estaria antecipando o nosso encontro, lugar de vida, de estar acordado?

A propósito da mudança no ciclo de sono e vigília de Paulo, é fundamental a contribuição de Françoise Dolto: "No sono profundo reinam as pulsões de morte entendidas como a colocação, entre parênteses, do desejo. Quando eu me torno sonolento, eu ponho entre parênteses meu corpo: durante o sono, enquanto meu corpo faz o que ele quer, eu, de meu lado, não quero mais saber nada do desejo, nem de desejar através do corpo; eu repouso minha relação a mim" (Dolto & Nasio, 1991, p.21). A relação entre Paulo ficar mais tempo acordado e ser investido pelo Outro em seu desejo, tornando-se de sua parte também desejante, marca a grande reviravolta realizada por esta mãe e seu bebê.

É curioso observar que, mais adiante, indagada sobre os efeitos da intervenção do "doutor" na equipe de triagem, a mãe de Paulo estabelece diferenças entre os "doutores" que cuidam de seu filho. O neurologista que acompanha Paulo diz que, como não se sabe exatamente o que ele tem, não sabe o que se pode esperar dele. Já um outro médico estabelece que não há a menor esperança para Paulo. Quanto ao "douto?' que realizou a entrevista de triagem, "parece que não se interessa só pelas coisas 'médicas'" (sic). C. não só estabelece diferenças, mas opta claramente pelos "doutores" que autorizam-na a investir em seu filho, seja interessando-se para além da questão médica, seja deixando em aberto seu destino...

Olho para Paulo - que não me olha, não fixa o olhar -, e a primeira coisa que me ocorre é algo como um sentimento de solidariedade para com a mãe: é mesmo difícil supor/testemunhar um sujeito aqui. Observo algumas respostas em Paulo, mas, embora traduza na sessão como manifestações subjetivas, é como se desconfiasse delas, pergunto-me: não seriam automatismos, estereotipias? Nas sessões seguintes, quando chego, C. diz ao filho, com ar cúmplice: "A Daniela chegou". Paulo sorri. Parece que a transferência começa a estabelecer-se, e Paulo dispõe de alguns recursos para fisgar o Outro em seu desejo, para fisgar-me. Agora vejo aqui um bebê.

Embora estejamos no início deste tratamento e tendo em vista que não é nosso objetivo estender-nos em suas vicissitudes, gostaríamos de destacar dois pontos. Primeiro: uma intervenção pontual, algumas vezes, pode iniciar uma mudança de posição na mãe - desde que encontre eco nesta - e, conse- qüentemente, no bebê. Segundo, Paulo, apesar de apresentar um atraso significativo no desenvolvimento e, possivelmente, comprometimento neuronal, adquire recursos para fisgar o desejo do Outro a partir desse novo lugar conferido pela mãe. No caso, este Outro é a analista.

Para concluir, retomamos as palavras de A. País ao pensar no fazer do analista: "Dramatizar a tragédia é um trabalho que consiste em abrir as portas para a construção de um destino imprevisível" (1995, p.28). A mãe de Paulo vem selecionando e estabelecendo transferência com os profissionais que assumem esta posição - ética - de dramatizar a tragédia, de oferecer uma brecha para que esse par mãe-bebê possa encontrar-se a partir do mal-entendido que cruzou seus caminhos.

 

NOTAS

1 A esse respeito, ver Laznik-Penot (1997). "Poderíamos pensar numa prevenção da síndrome autística?" In Wanderley, D. de B. (org,). Palavras em torno do berço. Coleção de Calças Curtas. Salvador (BA): Ágalma.

2 País (1995), em seu artigo "De uma tragédia à construção de um destino", propõe como direção para o tratamento uma intervenção voltada a dramatizar a tragédia. A tragédia é tomada em sua particularidade de apresentar um final funesto, em que os personagens são marionetes do destino. O drama, ao contrário, tem seu final desconhecido, permitindo a seus personagens serem artífices de seu próprio destino.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Debray, R. (1988). Bebês/mães em revolta. Porto Alegre, RS: Artes Médicas.         [ Links ]

De Neuter-Stryckman (1998). A mãe, cor-po-morto do outro-real? In O sujeito, o real do corpo e o casal parental. Reedição dos volumes Psicanálise e psicossomática (1993) e Do pai e da mãe (1993) (revistos e ampliados). Salvador, BA: Ágalma.         [ Links ]

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Recebido em 09/99