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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.4 no.7 São Paulo  1999

 

FUNDAMENTOS

 

A transferência de Freud

 

Freud's transference

 

 

Elisabete Aparecida Monteiro

Mestranda em Educação na Faculdade de Educação da USP, bolsista da Fapesp

 

 


RESUMO

A psicanálise desenvolveu-se graças aos efeitos negativos da transferência (à resistência), o que nos permite dizer que a história do conceito de transferência é a própria história da psicanálise. A teoria psicanalítica, por sua vez, é fruto do "movimento" psíquico de Freud, portanto, de suas transferências. Assim, compreender o conceito de transferência significa uma incursão na vida afetiva de Freud, em suas relações com mestres, amigos e amigos-mestres.

Transferência; psicanálise; Freud; educação


ABSTRACT

The psychoanalysis has developed itself due to the negative effects of the transference (to the resistance), what means that the history of the concept of transference is the history of the psychoanalysis itself. The psychoanalytical theory, otherwise, is the result of Freud's psychic "movement", therefore, of its transferences. Thus, understanding the concept of transference means an incursion into Freud's affective life, into his relationships with masters, friends and master-friends.

Transference; psychoanalysis; Freud; education


 

 

O texto ora apresentado é parte de um outro mais amplo, que se propõe a pesquisar o desenvolvimento do conceito de transferência em dois contextos: o freudiano e o lacaniano. Por sua vez, esse texto maior é um capítulo de uma dissertação de mestrado que será apresentada à Faculdade de Educação da USP, cujo tema, "A transferência e a ação educativa", traz uma reflexão sobre a assim chamada relação professor-aluno à luz da psicanálise, mais precisamente, do conceito de transferência.

Decidimos pesquisar o desenvolvimento do conceito de transferência, acreditando ser imprescindível que se compreenda tal conceito antes de, a partir dele, refletir sobre a ação educativa, evitando, dessa forma, seu uso inadequado, isto é, que se pretenda convertê-lo em algo diretamente aplicável à prática do educador.

No percurso deste trabalho foi-se constatando que a história do conceito de transferência confunde-se com a história da psicanálise, e esta, com a história de Freud. Foram justamente as dificuldades impostas ao trabalho clínico (a transferência e a contratransferência sob forma de resistência) que trouxeram elementos para o desenvolvimento da teoria psicanalítica, uma vez que a clínica era o "laboratório" de Freud.

Portanto, procurando abordar a "transferência psicanalítica" desde o embrião, iniciamos uma investigação e uma reflexão sobre a transferência experimentada por quem a conceituou: a transferência de Freud.

Uma pesquisa minuciosa que pretenda pôr em evidência os conteúdos transferenciais das relações de Freud tem como fonte abundante as muitas cartas que este endereçava aos amigos (e à noiva, na época em que sua vida profissional se iniciava), cujo conteúdo, por vezes, abrange suas relações com terceiros, ora constituídas de muita afeição, ora de grande rancor, assim como as relações com Breuer e Jung, entre outros.

Sabemos que tais personagens foram tão importantes no desenvolvimento da teoria quanto foram na vida afetiva de Freud, alguns mais eminentes num ou noutro período. Por isso, é possível dizer que a psicanálise, o movimento do pensamento freudiano, é fruto da dinâmica psíquica de Freud, dos afetos presentes nas suas relações com mestres, discípulos, pacientes, amigos, familiares, opositores, dissidentes, etc. Enfim, a história da psicanálise, como Freud mesmo disse, confunde-se com sua história: "Dois temas ocupam essas páginas: a história de minha vida e a história da psicanálise. Elas se acham intimamente entrelaçadas. Esse 'Estudo autobiográfico' mostra como a psicanálise veio a ser todo o conteúdo da minha vida (...)" (1935, p.75).

Longe de pretendermos esgotar uma análise de suas relações, faremos uma breve incursão no que poderíamos chamar de uma amostra das "relações significativas" na vida de Freud. E, tendo em vista o grande número de personagens que fizeram parte do cenário da psicanálise, elegeremos como representantes desse conjunto Charcot, Breuer e Fliess, que participaram (até certo ponto, respectivamente) da gestação (a partir de 1885), do nascimento (aproximadamente em 1893) até 1901, pouco após a publicação de A interpretação de sonhos (1900), considerada a obra do grande impulso teórico, portanto, dos primeiros grandes passos da psicanálise.

Antes de nos aventurarmos nessa pesquisa sobre a transferência nas relações de Freud, existem alguns elementos importantes em sua história que devem ser lembrados: Freud era o filho mais velho do segundo casamento de seu pai. Sua família depositava sobre ele uma grande expectativa em relação a sua vida profissional, gerando nele uma responsabilidade em corresponder a ela e, conseqüentemente, o desejo de conhecer e compreender as coisas. Assim, desde o início de sua escolarização foi um aluno exemplar, sempre debruçado sobre os livros.

Para abordarmos as questões relativas à vida acadêmica de Freud utilizaremos as informações fornecidas por ele próprio. Freud escreve no texto intitulado "Um estudo autobiográfico": "Quando eu era criança de 4 anos (I860), fui a Viena e ali recebi toda minha educação. No 'Gymnasium' [escola secundária] fui o primeiro de minha turma durante sete anos (...)" (1924a, p. 15-6). Freud habita o mesmo endereço até 1938, um ano antes de sua morte, quando se muda para Londres, por força da perseguição nazista.

Freud nos conta que nunca pôde identificar em si mesmo qualquer predileção pela caneira de médico. Por outro lado, havia uma preocupação com questões humanas que o atraía para outros campos de interesse: o direito (as atividades sociais), por influência de um amigo mais velho que se tornou político conhecido; e a filosofia, segundo conta em uma de suas cartas a Fliess (Carta de 8 de dezembro de 1895. In Masson [org.], 1986, p. 155). Foi a leitura de um ensaio sobre a natureza, atribuído a Goethe (cujo verdadeiro autor, descoberto posteriormente, é G. C. Tobler, escritor suíço que o produziu em 1780), que o levou à medicina em 1873, formando-se, tardiamente, em 1881.

Na universidade, experimentou a decepção com o preconceito contra sua origem judaica, um dos aspectos que o fizeram considerar-se na oposição, alheio à "maioria compacta"; além disso, havia as dificuldades que atribuiu às peculiaridades e limitações de seu dom, negando-lhe o sucesso em muitos campos da ciência. Tais limitações justificam o caráter difuso de seus estudos nos primeiros anos de universidade. E sua condição financeira precária foi o motivo que levou seu professor de fisiologia, Ernest Brücke (1819-92), a indicar-lhe a área da neurologia. Dedicou-se às pesquisas no laboratório de fisiologia de 1876 a 1882, nele estabeleceu contato com "homens que pude respeitar e tomar como modelos" (Freud, 1924b, p.17). Mestres significativos que precederam uma série de outros mestres. A partir daí, formou-se uma inclinação para concentrar seus trabalhos num "problema" que orientou toda sua vida profissional: do funcionamento do sistema nervoso ao funcionamento do psiquismo humano.

Cabe lembrar que no percurso da história de Freud existem inúmeras minúcias que não são menos importantes do que as abordadas neste trabalho. Esta rápida exposição da biografia freudiana nos serve apenas para situarmos o período em que a psicanálise começa a ser gestada. É a partir daí que "entram em cena" os, anteriormente chamados, representantes das primeiras relações "mais significativas": Charcot, Breuer e Fliess.

 

CHARCOT, "O GRANDE HOMEM"

Em 1885, Freud recebe da Universidade de Viena uma bolsa de estudos e parte para Paris com a promessa de encontrar materiais novos para sua pesquisa em neuropatologia, pois considerava que já havia recebido as principais contribuições que as universidades alemã e austríaca poderiam lhe oferecer. Além disso, existia um médico renomado, Jean-Martin Charcot (1825-93), que desenvolvia métodos novos no trabalho clínico (o uso da hipnose e a pesquisa sobre a histeria), que eram rejeitados pelos médicos alemães. Foi sobretudo porque "a distância brilhava o grande nome de Charcot" (Freud, 1924b, p.19) que Freud se dirigiu ao Hospice de la Salpêtrière.

Se é possível dizer que Ernest Brücke deu um "empurrão" na direção das pesquisas de Freud, diríamos que Charcot representa o "tiro de largada" para o nascimento da psicanálise. Foi nesse período de permanência em Paris que o interesse de Freud transferiu-se da neuropatologia para a psicopatologia. Isto se deve, claramente, à forte influência que a figura de Charcot exerceu sobre ele. Para ilustrarmos isso, não encontramos registro melhor do que as palavras de Freud em uma carta endereçada à sua noiva logo depois de ter chegado a Paris, em 24 de novembro de 1885: "Acho que estou mudando muito. Vou dizer-lhe detalhadamente o que me está afetando. Charcot, que é um dos maiores médicos e um homem cujo senso comum tem um toque de gênio, está simplesmente desarraigando minhas metas e opiniões. Por vezes, saio de suas aulas como se estivesse saindo da Notre Dame, com uma nova idéia de perfeição. Mas ele me exaure; quando me afasto, não sinto mais nenhuma vontade de trabalhar em minhas próprias bobagens; há três dias inteiros não faço trabalho algum, e não tenho nenhum sentimento de culpa. Meu cérebro está saciado, como se eu tivesse passado uma noite no teatro. Se a semente frutificará algum dia, não sei; o que sei é que ninguém jamais me afetou dessa maneira...''1.

Por várias vezes Freud referiu-se a Charcot como "o grande ho mem" e pôde encontrar neste inúmeras qualidades: força física, vigor mental, a natureza de um artista, vivacidade, jovialidade, a perfeição formal no falar, paciência, amor pelo trabalho, sinceridade... (1886, pp.39-49). Algo, talvez, tenha decididamente contribuído para uma identificação com esse mestre: sua obstinação pela compreensão dos casos o levava a observar incansavelmente o mesmo fenômeno, a admitir a dificuldade de interpretá-lo, a repetir seus esforços para uma visão correta do significado de um sintoma. Para isso, permitia-se extrapolar os pressupostos da medicina teórica, o que causava um estranhamento por parte dos estudantes. Encontravam-se, portanto, Charcot e Freud em posições semelhantes: a oposição, por serem, dois "espíritos" regidos pelo desejo de saber sobre as coisas. Uma expressão de Charcot deixou marcas indeléveis no pensamento freudiano: quando interpelado pela observação de um aluno sobre a incoerência entre o que estava sendo dito e uma determinada teoria, disse "La teorie, c'est bon, mais ça n'empêche pas d'exister" ["Teoria é bom, mas não impede que as coisas existam"].

A interpretação sobre a influência exercida por Charcot na vida de Freud não é originalmente nossa, mas do próprio Freud: "Das diversas lições a mim prodigalizadas no passado (1885-6) pelo grande Charcot, na Salpêtrière, duas deixaram profunda impressão em mim: que jamais devemos nos fatigar de considerar os mesmos fenômenos repetidas vezes (ou de nos submeter a esses efeitos), e que não devemos nos importar quando depararmos com a contradição de todos os lados, de vez que tenhamos trabalhado com sinceridade" (1924a, p.323).

 

BREUER, UMA MÁGOA FREUDIANA

Quando ainda desenvolvia suas pesquisas no laboratório de Brücke, Freud tem seu primeiro contato com um dos médicos de família mais respeitados pela sociedade médica da época e que possuía, assim como ele, um grande interesse científico: Joseph Breuer (1842-1925). Este conta-lhe sobre o tratamento peculiar que vinha dispensando no caso de uma paciente com sintomas histéricos, a saber, a hipnose seguida de indução do relato, pela paciente, sobre aquilo que lhe oprimia a mente. Este método de tratamento ficou conhecido posteriormente por método catártico, e diferenciava-se do método que Freud utilizou durante um curto período (hipnose seguida de sugestão do abandono do sintoma), pelo fato de não influenciar o paciente, mas "recuperar" nele mesmo a resposta sobre o problema. Os sintomas do paciente desapareciam quando ele encontrava por si mesmo a origem. Tal caso, cuja paciente recebeu o pseudônimo de Anna O., passou a ser foco do interesse de Freud, especialmente, quando de seu retorno do estágio de Paris no ano de 1886 (o caso já havia sido encenado em junho de 1882), ficando este admirado com o cuidado e a paciência com que Breuer aplicava seu método.

Breuer desempenhou um importante papel no início da vida profissional de Freud. Não apenas pelo estímulo proporcionado por sua influência, mas também financeiramente representou um grande provedor enquanto Freud passava por dificuldades. Breuer possuía grande clientela, e Freud apenas iniciava sua carreira. O resultado de tamanha aproximação foi a produção de uma obra em conjunto "Estudos sobre a histeria", publicada, aproximadamente em 1895 (a data exata não foi indicada), além do fato de que suas famílias passaram a manter estreitas relações.

Toda a admiração que marcou o início da amizade entre Breuer e Freud foi dando lugar a divergências na abordagem da teoria, até atingir a relação profissional e pessoal. A primeira divergência foi relativa ao mecanismo psíquico presente na histeria: "Ele dava preferência a uma teoria que, se poderia dizer, ainda era até certo ponto fisiológica; tentava explicar a divisão mental nos pacientes histéricos pela ausência de comunicação entre vários estados mentais (...), e construiu então a teoria dos 'estados hipnóides' (...) Eu via a questão de forma menos científica; parecia discernir por toda parte tendências e motivos análogos aos da vida cotidiana, e encarava a própria divisão psíquica como efeito de um processo de repulsão que naquela época denominei 'defesa', e depois 'repressão'" (Freud, 1914, p.21).

É mais comum acreditar que havia uma resistência de Breuer em admitir a etiologia sexual das neuroses, apesar de haver no texto dos "Estudos sobre a histeria" indícios de uma posição crédula diante de tal pressuposto: "Foi-nos portanto impossível fazer uso de algumas das nossas observações mais instrutivas e convincentes (...). Assim, ocorre que só conseguimos apresentar provas muito incompletas em favor de nosso ponto de vista de que a sexualidade parece desempenhar um papel fundamental na patogênese da histeria (...) Foram precisamente as observaçôs de natureza marcadamente sexual que nos vimos obrigados a não publicar" (Breuer & Freud, 1893-95, p.33). Mesmo assim, a reação da sociedade médica da época, tanto em Viena quanto na Alemanha, diante da publicação dos "Estudos...", não foi favorável. Pelo contrário, a obra foi alvo de pesadas críticas, o que provavelmente desencorajou Breuer, que não se dispôs a arriscar seu prestígio. Freud também afirmava a recusa do colega: "Breuer fez o que pôde, por mais algum tempo, para lançar na balança o grande peso de sua influência pessoal a meu favor, mas nada conseguiu, sendo fácil constatar que também ele se esquivou de reconhecer a etiologia sexual das neuroses" (1893-95, p.32).

No entanto, Freud nos diz que o motivo real da separação entre eles não foi de ordem teórica, mas uma questão muito mais profunda que apenas pôde ser compreendida posteriormente. E tal questão nos interessa sobremaneira. Quando questionado por Freud sobre a etiologia dos sintomas de Anna O., Breuer nega qualquer relação com o tema da sexualidade, apesar do simbolismo presente no caso (as cobras, o enrijecimento, a paralisia do braço, as dores semelhantes à de um parto quando Breuer partia em viagem com sua esposa). "No tratamento desse caso, Breuer usou, para com a paciente, de um rapport sugestivo muito intenso, que nos poderá servir como um perfeito protótipo do que chamamos hoje de 'transferência'" (Freud, 1914, p.22). Ao deparar com a motivação sexual da transferência, Breuer, naquele momento incapaz de reconhecer a natureza universal do fenômeno, interrompeu o caso e encaminhou sua paciente a um colega2. Podemos concordar com Freud quando afirma que na transferência existente entre médico e paciente encontra-se o cerne do repúdio do colega pela etiologia sexual das neuroses.

Em 1910, nas conferências proferidas na Universidade de Clark, Freud chega a atribuir o mérito de fundador da psicanálise a Breuer (1909, p.13), e sempre considerou o método catártico como precursor imediato da psicanálise. Também é muito comum encontrar em seus escritos expressões de gratidão, admiração e de desgosto pelo desentendimento subseqüente, entre elas, a afirmação de que no trabalho realizado em conjunto, somente ele mesmo foi favorecido diante da experiência e inteligência do colega e amigo: "Adquirimos o hábito de partilhar todos os nossos interesses científicos. Nessa relação só eu naturalmente tive a ganhar. O desenvolvimento da psicanálise, depois, veio custar-me sua amizade. Não me foi fácil pagar tal preço, mas não pude fugir a isso" (Freud, 1924b, p.26).

 

FLIESS: UMA ESTRANHA ADMIRAÇÃO

A relação com Wilhelm Fliess (1858-1928), médico especialista em nariz e garganta que residia em Berlim, iniciou ainda enquanto Freud trabalhava com Breuer, em 1887 (permaneceu com esse trabalho até 1902). Até mesmo, foi para Fliess que Freud contou sobre seus principais sentimentos por Breuer, sobretudo sua perplexidade, sua irritação diante das atitudes ambíguas do colega: "Simplesmente não consigo mais me entender com Breuer; o que tive de suportar nos últimos meses em termos de maus tratos e fraco discernimento, que é, apesar disso, engenhoso, finalmente me insensibilizou internamente para essa perda" (Carta de 6 de fevereiro de 1896. In Masson [org.], 1986, p. 171). Essa relação com Fliess rendeu muitas cartas que manifestam "nas entrelinhas" a questão da transferência. Afirmamos isto devido à afetividade que marcava essa relação, facilmente percebida nas expressões carinhosas que Freud dirigia a Fliess (não sabemos das expressões de Fliess, pois suas cartas não foram encontradas), além disso existia uma "estranha" idealização que Freud fazia do amigo e que discutiremos a seguir. Esses elementos levaram muitos leitores a considerar esse como o período em que se deu o início da análise de Freud, e que ele mesmo tratou, durante um curto período, como sua auto-análise: "A propósito, venho atravessando uma espécie de experiência neurótica, estados curiosos que são incompreensíveis para a consciência, pensamentos crepusculares e dúvidas veladas, com um pálido raio de luz aqui e ali" (Carta de 22 de junho de 1897. In Masson [org.], 1986, p.255).

Outro fato salientado pela leitura de muitos psicanalistas é que a comunicação entre os amigos deu-se no momento da produção do texto A interpretação dos sonhos (1900), um grande marco na obra freudiana. Portanto, um período de intensa produção teórica, não por acaso, um período também de afetos intensos: grande hostilidade por Breuer e ampla admiração por Fliess.

É possível observar, com a leitura das cartas, as tentativas de Fliess de justificar as teorias de Freud por origens fisiológicas, o que o levou a desenvolver investigações que hoje consideraríamos absurdas. Uma delas, sobre duas supostas substâncias que agiriam nas pessoas em geral, em intervalos diferentes, uma masculina (a cada 23 dias, de caráter aprazível), outra feminina (a cada 28 dias, de caráter desprazível). A predominância da substância masculina constituiria o indivíduo perverso; a predominância da substância feminina constituiria o indivíduo neurótico; e o equilíbrio entre as duas substâncias resultaria num indivíduo normal (Carta de 6 de dezembro de 1896. In Masson [org.], 1986, p.213). Além dessa, formulou uma teoria sobre a bissexualidade dos seres humanos em geral, e uma outra que afirmava ter o nariz a mesma estrutura dos órgãos genitais.

Freud aceitava as formulações de Fliess com tamanha (e não menos absurda) credibilidade, que se esforçava para contribuir com esses "delírios", procurando traçar paralelos entre seus trabalhos e admitindo nele mesmo os "períodos especiais" das substâncias descobertas por Fliess (Carta de 9 de julho de 1896. In Masson [org.], 1986, pp. 193-4); ao mesmo tempo, supervalorizava a inteligência do amigo: "Com respeito a suas revelações na fisiologia sexual, tudo o que posso fazer é manter a postos a mais ávida atenção e adiniração crítica. Meus conhecimentos são limitados demais para que eu dê alguma contribuição" (Carta de 8 de dezembro de 1895. In Masson [org.], 1986, p. 156). "Ainda não pude fazer nenhuma contribuição para a questão dos períodos e datas. É provável que você também não esperasse grande coisa" (Carta de 26 de abril de 1896. In Masson [org.], 1986, p. 184).

A confiança depositada em Fliess vai mais longe na produção de Freud, levando-o até a questionar suas referências psicológicas: "Com respeito à teoria do recalcamento, esbarrei em dúvidas que poderiam ser dissipadas por algumas palavras suas, em particular sobre a menstruação masculina e feminina num mesmo indivíduo. Angústia, fatores químicos, e assim por diante - quem sabe, com sua ajuda, descobrirei a fundamentação sólida que me permita parar de dar explicações psicológicas e começar a descobrir uma base fisiológica!" (Carta de 30 de junho de 1896. In Masson [org.], 1986, p. 194). Mais ainda, Freud achava-se devedor nessa amizade: "Quantas coisas lhe devo: consolo, compreensão, estímulo em minha solidão, o sentido de minha vida, que adquiri por seu intermédio, e, por fim, até mesmo a saúde, que ninguém mais poderia ter-me restituído!" (Carta de 1º de janeiro de 1896. In Masson [org.], 1986, p. 159).

As explicações possíveis para essa relação plena de sentimentos generosos podem ser extraídas do fato de que, como se sabe, Fliess era um pouco mais novo que Freud e mais avançado na profissão, o que permitiu a formação de uma imagem idealizada. Diante disso, experimentou os efeitos da transferência, sem poder, ainda, compreendê-la: "Ainda não sei o que está acontecendo comigo. Algo proveniente das mais recôndidas profundezas de minha própria neurose insurgiu-se contra qualquer progresso na compreensão das neuroses, e, de algum modo, você foi envolvido nisso. Isso porque minha paralisia redacional me parece destinada a inibir nossa comunicação. Não tenho nenhuma garantia disso, apenas sentimentos de natureza altamente obscura. Não terá nada desse tipo acontecido com você?" (Carta de 7 de julho de 1897. In Masson [org.], 1986, p.256).

 

IDEALIZAÇÃO, SUPERAÇÃO E ROMPIMENTO

Nosso interesse em retomar algumas passagens sobre a relação de Freud com esses personagens é mostrar a existência de alguns processos que se repetem, ou melhor, que, de uma forma ou de outra, estão presentes em cada uma das relações, mesmo guardadas suas singularidades. Estamos falando de um "movimento" que pode ser assim sintetizado: uma grande admiração inicial (idealização), grandes expectativas, superação e abandono. Isto nos permite um primeiro ingresso na compreensão do conceito de transferência.

Lembremos a "missão" delegada a Freud por sua família: tornar-se um grande homem. Podemos dizer que essas figuras notáveis (Charcot, Breuer e Fliess) serviam como telas em que Freud projetava seu futuro: "Os homens com quem rompeu (Fliess, Jung [e Breuer]) foram aqueles de quem, de início, esperava muito. Um elemento 'irracional', que mais tarde a elucidação da noção de transferência tornaria mais claro, estava em ação aí, e com rara violência" (Mannoni, 1994, p.58).

Podemos compreender que, em se tratando de profissionais de destaque nas áreas em que atuavam, Freud atribuía-lhes um saber superior, punha-os na posição de mestres, enquanto permanecia na posição de dependência.

Mas o futuro almejado por Freud significava a autoria de um novo conhecimento (vale lembrar seu interesse pelas questões sociais). Na verdade, se assim podemos dizer, Freud esperava ser reconhecido por uma grande contribuição científica. Para isso, era necessário tornar-se "seu próprio mestre", ou seja, superar os demais. E, como superar não significa abandonar radicalmente o que foi transmitido, são as palavras mesmas de Freud que vão nos situar em relação ao papel desempenhado por alguns de seus mestres: "Enquanto escrevia minha 'História do movimento psicanalítico', em 1914, vinham-me à mente algumas observações que me tinham sido feitas por Breuer, Charcot e Chrobak3, as quais poderiam ter me conduzido mais cedo a essa descoberta [a excitação de natureza sexual em ação nos fenômenos da neurose]. Mas na ocasião em que as ouvi não compreendi o que essas autoridades queriam dizer; na realidade haviam-me dito mais do que elas próprias sabiam ou estavam preparadas para defender" (1924b, p.30).

Isso que Freud nos diz sobre o desconhecimento dos mestres (e, até certo ponto, o seu próprio) daquilo que estavam transmitindo desencadeia uma série de discussões sobre "um saber que não se sabe" subjacente aos mecanismos psíquicos inconscientes. Este saber, ou desejo de saber (ou, ainda, o desejo de não saber), ao qual nos dedicamos noutro capítulo desse trabalho, é o dispositivo que atraía Freud para junto de seus mestres e, posteriormente, o repelia. Isso nos permite compreender os "motivos" presentes na ação educativa, que é nosso objetivo central.

O papel de discípulo que Freud soube desempenhar diante das figuras influentes com as quais deparou relaciona-se com a figura paterna que tinha internalizado. A diferença imaginária que desencadeava a idealização desses personagens refletia a diferença entre ele próprio como criatura e seu pai, primeiro mestre, como criador. Foi, portanto, a superação da diferença que marcava seu lugar (de quem "não sabe e deseja saber") em oposição ao lugar de alguém que sabe (supostamente seu pai tinha o saber sobre ele) que operou o movimento de tornar-se seu próprio mestre.

Enfim, Freud cumpre sua missão passando de aprendiz para mestre (apesar de acreditarmos nunca ter abandonado um ou outro mestre em definitivo, pois os "diálogos" permaneceram dentro dele), por outro lado, suas inquietações levaram-no a conservar-se na posição de eterno aluno: "(...) provavelmente qualquer escola lhe teria sido de grande utilidade, pois Freud já tinha dentro de si aquilo que escola alguma pode ensinar: o desejo de saber" (Kupfer, 1997, p.22).

 

NOTAS

1 Trecho encontrado na "Nota do editor" que antecede o obituário que Freud escreveu poucos dias após a morte de Charcot. Freud, S. (1983). "Charcot", in Primeiras publicações psicanalítica (1893-1899), Obras psicológicas Completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro, RJ: Imago, 1980, Vol. III, pp. 19-20 (grifo nosso).

2 Bertha Pappenheim, verdadeiro nome de Anna O., 21 anos, inteligente, de personalidade e físico atraentes, amiga antiga de Martha (esposa de Freud), foi internada numa instituição em estado muito conturbado, período em que Breuer confessa a Freud que gostaria que sua ex-paciente morresse para que se livrasse dos seus sofrimentos. Aos 30 anos tornou-se a primeira assistente social na Alemanha, uma das pioneiras em todo o mundo. Jones, E. (1970). Vida e obra de Sigmund Freud, Vol. I, Rio de Janeiro, RJ: Zahar Editores, pp.237-8.

3 Breuer explicava para Freud, certa vez, sobre a origem de um caso de "doença nervosa": "Estas coisas são sempre 'secrets d'alcove' ('leito conjugal')". Charcot comenta, de forma reservada a Brouardel (nomeado professor de Medicina Legal em Paris em 1879), sobre uma mulher com doença grave, cujo marido era impotente: "Mas nesses casos é sempre a coisa genital, sempre, sempre!" E Chrobak, ginecologista renomado, prescreve ironicamente "penis normalis, doses repetidas..." a uma padente que encaminhou a Freud, e que sorria de acessos de ansiedade só acalmados quando sabia onde se encontrava seu médico (seu marido era impotente). Freud S. (1914). A história do movimento psicanalítico, Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro, RJ: Imago, 1980, Vol. XIV, p.30.

 

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Recebido em 03/99