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Estilos da Clinica

Print version ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.5 no.8 São Paulo  2000

 

DOSSIÊ

 

Os flamantes bebês e a velha psicanálise

 

Brilliant babies and old psychoanalysis

 

 

Elsa Coriat

Psicanalista, membro da equipe de direção do Centro Dra. Lydia Coriat de Buenos Aires

 

 


RESUMO

Na clínica de bebês, as novidades das ciências neurológicas enfrentam a estabilidade das premissas da psicanálise (que já têm um século), e aí se chega a esta conclusão: o avanço das neurociências é básico na detecção e diagnóstico da falha no orgânico, mas - exceto nos casos em que falta uma substância no organismo, passível de ser fornecida - contribui pouco em relação a como deve ser a criação de um bebê para que esse corpinho que padece de algum problema orgânico possa vir a ser um sujeito humano responsável por seus atos.

Bebês; crianças pequenas; neurociências; clínica de bebês


ABSTRACT

Recent changes and discoveries in neurosciences are compared with the conceptual stability of psychoanalysis (whose premises are now a century old) relating to the treatment of babies. The advances in neurosciences are very important regarding diagnosis of organic diseases and may help find drugs for pharmacological treatment, but they offer little in relation as to how the baby should be brought up so that his body with organic deficits may become a human subject responsible for his acts.

Babies; small children; neuroscience; baby clinic


 

 

Os bebês - quase poderíamos dizer que por definição - são a coisa mais nova deste mundo. Em cada oportunidade, são o flamante objeto de uma criação original, sempre nova. Não importa para isto que nas entranhas de suas células aloje-se uma herança genética que implica milhões de anos de evolução; o que importa é o que começa, o novo que terá a possibilidade de realizar-se sobre a antiga herança.

O flamante brilho do novo pode tornar-se opaco quando aparece algum problema, assim, convém levarmos em conta que o brilho não depende da macieza da pele do bebê, nem da quantidade e qualidade de cromossomos que suas células contêm, nem da correta construção de seu sistema nervoso, mas dos olhos que o miram, carregados (ou não) de libido e esperanças de futuro.

Para esses flamantes corpinhos - que são depositários de nossa cultura de hoje e que serão seus continuadores no amanhã, para além de nós -, convém entregar o melhor, a última coisa produzida até hoje, o que ainda nos surpreende por sua novidade, em consonância com os tempos em que esses corpinhos nasceram e em que desdobrarão suas vidas, tempos que somente coincidem com os nossos em um pequeno trecho.

Diante dessas considerações, vale a pena perguntar-nos: a psicanálise - que já completou um século - tem algo a ver com aqueles que nascem nos tempos atuais? Contraste-se tudo que há de brilhante nos recentes e importantíssimos descobrimentos no campo das neurociências com as poucas modificações das premissas básicas da psicanálise, formuladas por Freud em tempos que já passaram. Elas continuam vigentes?

Hoje em dia, cardiopatias que naqueles tempos eram fatais têm um prognóstico favorável, com pouca margem de dúvida, graças aos avanços da cirurgia e de seus elementos técnicos. A fenilcetonúria e outras enfermidades metabólicas puderam modificar seu destino de idiotia com a simples administração da droga adequada. São relativamente poucos os casos de epilepsia nos quais as convulsões continuam destruindo neurônios, a farmacologia aplacou a maioria deles. As neuro-imagens revelam alterações cada vez mais diminutas, e os neurocirurgiões começam a implementar operações praticamente em nível celular. A revelação completa do genoma humano - cuja culminação está prevista para breve - e outros avanços correlativos fazem-nos pensar que deixou de ser um delírio acreditar na possibilidade de compensar satisfatoriamente até mesmo as enfermidades genéticas.

Do lado da psicanálise, o único instrumental legítimo continua sendo a palavra. A cura de um problema neurótico (se é que existe) continua sendo tão longa e complicada como antes, e sem garantias. Além disso, se a palavra pode ter efeito sobre um adulto neurótico, não ocorre o mesmo com os bebês, que até que deixem de ser bebês e comecem a ser crianças pequenas pouco entendem - no nível da significação - do que lhes dizemos.

Existem pessoas que trabalham com bebês e que, seguindo alguns conceitos de Françoise Dolto, insistem na importância de se dizer ao bebê "toda a verdade"; relatam até mesmo diferentes situações clínicas nas quais, depois que o terapeuta explicita ao bebê a problemática ou o segredo familiar que não lhe havia sido verbalizado, desaparecem os sintomas que o pequeno tinha apresentado previamente (sintomas como, por exemplo, não querer pegar o peito ou não parar de chorar).

Pessoalmente, supor que a causa da cura é o que foi dito ao bebê me parece um delírio, e, no entanto, não ponho em dúvida que o bebê possa ter melhorado a posteriori de semelhante intervenção. Por quê? Como pode ser? Quem sem dúvida escutou o que ali foi dito foram os pais, a mãe pelo menos, e, ainda que ante a verbalização do terapeuta não tenham ficado sabendo de nada novo - como o terapeuta poderia saber, se os pais não lhe tinham contado antes? -, o fato de contá-lo, de tê-lo associado em seu discurso quando foram consultar por seu bebê, sem ter pensado necessariamente que poderia ter algo a ver com o que a criança apresentava, a possibilidade de pôr em palavras diante de um outro, isso sim provocou efeito neles e modificou a relação com seu bebê, permitindo-lhes dirigir-se a esse de outra forma.

As palavras fizeram efeito no bebê não em forma direta, mas por meio do efeito que provocaram em seus pais. De acordo com Stella Páez, uma companheira de trabalho no Centro Dra. Lydia Coriat, não se trata de deitar o bebê em um divã pequenininho e começar a interpretá-lo em uma sessão individual uma vez que, como diz Haydée Coriat, outra companheira de trabalho, "um bebê não é sem seus pais".

Mas, se nesses casos os sintomas do bebê puderam remitir simplesmente com palavras, foi porque existiam palavras que representavam problema para os pais e complicavam a relação com seu bebê, e não porque havia um problema prévio do lado do bebê. Podemos supor o mesmo para as dificuldades que os pequenos apresentam devido a um problema orgânico, seja este genético, congênito ou traumático? Isso porque, enquanto terapeutas que participamos na clínica de bebês, esses são aqueles pelos quais mais nos procuram. É sumamente difícil que alguém solicite tratamento de estimulação precoce para um bebê que não apresente pelo menos algum problema de índole orgânica (ou o que como tal se suponha).

Desde já, adiantemos que não faz parte das premissas da psicanálise supor que os efeitos da palavra não tenham limites, supor que a palavra seja capaz de transformar tudo. A palavra se detém ante o limite do real, e, para os psicanalistas, um exemplo privilegiado de real é a morte, imposta pelas características orgânico-biológicas de nossa existência. A palavra não pode fazer desaparecer os efeitos reais de um cromossomo a mais ou a menos, ou de uma lesão cerebral.

Antes de continuar, gostaria de comentar uma frase que nos últimos anos escutei repetidas vezes, trazida pelos pais de crianças diagnosticadas como autistas, que me procuraram ou procuraram outros profissionais. Esses pais contavam que, previamente a procurar-nos, tinham buscado o diagnóstico de outros profissionais. Na consulta neurológica, tinham-lhes dito: "Seu filho é autista. O autismo é orgânico, conseqüentemente, a psicologia (ou a psicanálise) não pode fazer nada".

Houve uma vez em particular na qual essa frase pareceu-me ainda mais grave. Uma psicanalista de uma cidade do interior consultou-me a respeito de um menininho de 3 ou 4 anos, tratado por ela havia pouco tempo, que apresentava condutas muito particulares: não brincava, podia verificar-se que entendia boa parte da linguagem, mas não lhe interessava falar, ficava sentado, estático e imóvel por mais de meia hora se lhe permitissem, etc., etc.

O menino era acompanhado por um pediatra ao qual não tinha ocorrido solicitar uma consulta neurológica. Eu, psicanalista, a partir do material escutado, suspeitei que havia alguma questão orgânica de base; propus então, à psicanalista que me consultava, que recomendasse aos pais solicitar ao pediatra indicação para realizar uma consulta neurológica. Assim fizeram, e, após sucessivos encaminhamentos, os pais concluíram seu percurso consultando uma das equipes hospitalares que neste momento são das mais reconhecidas no campo do autismo. Lá lhes confirmaram o diagnóstico de autismo que já tinham; não localizaram nada especificamente neurológico mas não esgotaram os estudos possíveis para encontrar algo, dando por certo que não encontrariam nada -, e disseram-lhes a conhecida frase: "O autismo é orgânico. A psicologia não pode fazer nada aqui". Acrescentaram: "Abandonem o tratamento psicológico que estão fazendo. A única coisa que os psicólogos fazem é culpabilizar os pais". Por sorte do menininho em questão, os pais decidiram não abandonar o tratamento, porque já tinham começado a operar-se os primeiros sinais de uma mínima mudança, que foi aumentando meses depois.

Tratando-se este de um curso dedicado a bebês, não me interessa comentar esse caso em especial, já que não se trata de um bebê, e sim de um menino - com seus 3 ou 4 anos já é muito grande para ser considerado um paciente de estimulação precoce! -, mas o que me interessa trazer é a premissa implicada na formulação dessa equipe - "A psicologia nada pode fazer com os problemas orgânicos", premissa que é facilmente extensível a todos os problemas orgânicos -, e em especial aos que apresentam os bebês.

A pergunta que então corresponderia fazer seria: as crianças e bebês que apresentam problemas orgânicos não padecem também de problemas da ordem do psíquico? O que a clínica nos mostra - e digo a clínica, não a teoria - é que, ao contrário, é sumamente difícil encontrar um bebê ou uma criança pequena, com problemas orgânicos, que não apresente por sua vez problemas ocasionados de ordem psíquica.

A situação especial dos bebês é que nesse tempo constroem-se os cimentos do que a posteriori passará a ser seu aparelho psíquico, e esta construção não depende só da bagagem biológica com a qual o bebê vem provido para sua maturação.

O conceito de desenvolvimento pertence muito mais ao campo da neuropediatria que ao da psicanálise, e nos é imprescindível utilizá-lo se queremos justamente trabalhar na clínica dos problemas do desenvolvimento infantil. O que é então o desenvolvimento?

Enquanto a maturação leva em conta de que maneira transcorre o desdobramento do biologicamente herdado, o desenvolvimento, ao contrário, é um conceito mais amplo, que inclui os efeitos do ocorrido a posteriori, o adquirido, os efeitos da interação do organismo com o meio.

Por onde passa a interação de um bebê com seu meio? Tenhamos em conta não só que um bebê é absolutamente incapaz de sobreviver por sua conta, que necessita de outro que o sustente. Tenhamos em conta também que, quando nasce um bebê, começa em seguida sua tarefa de descobrir que há um mundo, que este mundo está cheio de objetos, que tem um corpo, que tem uma mãe, e que tanto ele como sua mãe são só pequenos objetos - separados, ainda por cima - neste vasto mundo. Quando tiver concluído os passos fundamentais desse processo de descobrimento, já estará em condições de começar a balbuciar as primeiras palavras, de iniciar os primeiros jogos simbólicos e de começar a suspeitar que tem um pai, que de alguma maneira lhe proíbe ter sua mãe toda para si. Só que então já terá deixado de ser puramente um bebê, para começar a ser uma criança.

Mas o fundamental aqui é que o meio com o qual o bebê interage está mediado por outro, que tanto os objetos como o mundo que tem a possibilidade de descobrir são-lhe apresentados por outro, por aquela pessoa que, em termos de Winnicott, exerce função materna.

Talvez um dos descobrimentos mais relevantes dos últimos anos, no campo das neurociências, tenha sido o da plasticidade cerebral. Suponho que sabem do que se trata. Plasticidade cerebral quer dizer que, no momento do nascimento, não foram definidos ainda quais serão os caminhos preferenciais para as múltiplas conexões neuronais possíveis. Isto vai se definindo em função das primeiras experiências do bebê - refiro-me às primeiras semanas, aos primeiros meses. Caminho que se utiliza se fortalece, caminho que não se utiliza com o tempo perde a possibilidade de estabelecer-se. Em condições normais, isso não se converte em um problema, mas em um benefício, já que se todos ficassem abertos... nenhum poderia oferecer uma condução eficaz!

Experiências realizadas em macacos demonstram que diferentes grupos neuronais são ativados quando se trata de uma atividade voluntária ou da ativação de um reflexo condicionado. Melhor dito, quando se condiciona o macaco para estender seu braço diante de determinado estímulo, é ativado um certo grupo de neurônios responsáveis pela motricidade desse braço; mas quando o macaco estende o braço por sua conta, ou seja, não em forma condicionada, mas para pegar algo que lhe interessa, não só se ativa esse mesmo grupo de neurônios, mas também um outro grupo, que por sua vez se ativa em cada oportunidade em que o macaco produz uma atividade intencional. Tomei conhecimento deste exemplo graças ao dr. Owen Foster, neuropediatra da equipe, que "batizou" esse grupo neuronal, responsável pela atividade intencional e descrito pelo dr. Mountcastle, como "neurônios desejantes".

O que quero destacar com estes últimos comentários é que qualquer aprendizagem que ocorra via condicionamento talvez possa instalar-se, mas possivelmente à custa de silenciar os centros de comando intencional da própria atividade. E, em se tratando de um bebê ou de uma criança pequena - e isto o demonstra a clínica -, as aprendizagens condicionadas anulam ou dificultam tanto a construção de um eu - o descobrimento de si mesmo - como o surgimento do próprio desejo.

Os bebês têm uma relação muito especial com a aprendizagem. Aprendem o que lhes possibilita sua experiência na vida cotidiana, mas quase tudo o que se pretenda ensinar-lhes de acordo com um plano - fora de sua vida comum e corrente de bebê e desconhecendo sua situação enquanto tal - dificulta a apropriação da experiência, transformando-se em um condicionamento a mais ou em uma atividade que não convoca a um sujeito. Portanto, trata-se, em todo caso, de propiciar as condições que possibilitem ao bebê as sucessivas experiências no descobrimento do mundo e de si mesmo, sabendo que, em condições normais, é o saber da mãe, organizado e dirigido desde seu desejo em relação ao filho, o que possibilita a isso ocorrer.

E, em condições especiais, o que ocorre? Em condições especiais, ocorre o mesmo. Não há futuro para uma criança se o desejo da mãe não é o que organiza as ações de sua criação. O desejo de uma mãe pode sofrer um forte choque quando se encontra com dificuldades do lado de seu filho, no entanto está lá, e quanto mais recente tenha sido o choque, mais possibilidades tem de voltar a emergir, voltando a depositar sobre esse objeto filho as luminosas cargas de libido que lhe estavam destinadas.

Claro que essa possibilidade se vê definitivamente desmoronada se o que se diz à mãe, de forma explícita ou não, é que há outros que vão lhe ensinar o que ela deve ensinar ao bebê para começar a trabalhar desde pequeninho e ganhar tempo.

A velha psicanálise, articulação teórica organizada a partir do descobrimento do desejo inconsciente, pode oferecer à clínica de bebês - já ofereceu e continua oferecendo - uma infinidade de elementos extraídos de sua experiência e de sua conceitualização, para possibilitar que continue aparecendo a flamante chispa dos novos desejos, até mesmo a partir das cinzas de uma desilusão.

O avanço das neurociências é fundamental na hora do diagnóstico, na hora da detecção da falha no orgânico, mas - com exceção dos casos em que se localiza alguma droga faltante no organismo e passível de ser administrada - pouco contribui em relação a como deve ser realizada a criação de um bebê para que esse corpinho que padece de algum problema orgânico possa chegar a converter-se em um sujeito humano responsável por seus atos.

Por outro lado, naturalmente, a clínica de bebês implica um campo mais amplo que aquele proporcionado potencialmente a ela pela psicanálise. Ainda supondo que se tratasse apenas de palavras -e na verdade se trata de muito mais -, ainda nesse caso, teríamos de saber o que dizer para que as palavras caíssem em seu justo lugar. É necessário saber ler no bebê, e no discurso e nas ações dos pais, o que está acontecendo em cada caso. Para isso, torna-se necessário por sua vez recorrer ao saber acumulado por outras disciplinas, toda a longa lista de disciplinas que, a partir de um recorte ou outro, ocupam-se de estudar os bebês.

Mas o saber da velha psicanálise torna-se imprescindível para que possamos pensar como e em que direção conduzir a cura, qual é o efeito de nossas intervenções e o que estamos fazendo com esse lugar privilegiado que os pais nos outorgam. Ocupar responsavelmente o lugar de especialista em estimulação precoce requer uma formação mais elaborada do que muitos supõem. Sem essa formação e sem a reflexão suficiente sobre o próprio lugar e a própria tarefa, corre-se o risco de converter-se em marionete de uma série de receitas de moda, algumas muito atuais, é certo, mas ante as quais as próximas gerações, se é que chegarão a conhecê-las, ficarão horrorizadas. Nem sempre o mais atual nem o mais consensual é o que tem mais futuro.

 

 

Recebido em 05/2000.

 

 

NOTA

Tradução: Daniela Teperman
1 Trabalho apresentado no curso Clínica com Bebês: uma Abordagem Interdisciplinar, realizado em 14, 15 e 16 de abril de 2000, promovido pela Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida, pelo Laboratório de Pesquisas Psicanalíticas e Educacionais sobre a Infância (Lepsi) e pelo Instituto de Psicologia da USP.