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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.5 no.8 São Paulo  2000

 

DOSSIÊ

 

Um bebê amorfo no colo de sua mãe1

 

An amorphous baby in his mother's lap

 

 

Daniela W. Teperman

Psicanalista, coordenadora do Núcleo de Intervenção Precoce (NIP) do Lugar de Vida e bolsista Fapesp no mestrado em Psicologia do IPUSP

 

 


RESUMO

Este texto apresenta o tratamento de uma mãe e seu bebê realizado no Núcleo de Intervenção Precoce do Lugar de Vida. É seguido pelos comentários de profissionais que compõem equipes interdisciplinares dos centros Dra. Lydia Coriat de Buenos Aires e Porto Alegre. Discutem-se os significantes que marcam este par mãe-bebê e a questão diagnostica.

Psicanálise; intervenção precoce; diagnóstico


ABSTRACT

This puper presents the treatment of a mother and her baby at the Lugar de Vida Early Intervention Unit. There follows the comments from the professionals of the interdisciplinary teams of Centro Dra. Lydia Coriat in Buenos Aires and Porto Alegre. The discussion goes through the significants which mark this mother-baby couple and the diagnosis.

Psychoanalysis; early intervention; diagnosis


 

 

Surpreendi-me quando, ao tentar registrar algo sobre a primeira entrevista com Denis e sua mãe, a imagem que surgiu foi: "um bebê amorfo no colo de sua mãe". Lendo o que uma outra analista pôde dizer sobre um bebê em atendimento, "... um monte nos joelhos de sua mãe" (Van Dieren, 1994), pensei que talvez houvesse algo nesses bebês, para além da surpresa da analista, que justificasse imagens tão desoladoras.

Parece que esses bebês impressionam pelo real que corporificam. A direção do tratamento, tal como é concebida no Centro Dra. Lydia Coriat, seria a restituição do sujeito do desejo (Ranieri & Foster, 1993), ou seja, caberia ao analista - em sua ética - supor um sujeito quando os pais não puderam fazê-lo. Daí a primeira questão: supor um sujeito? Sim, é claro. É disso que se trata. Mas como não recuar, deixando-nos sucumbir nesse "sem forma/esparramado" que nos invade?

Quando tratamos as crianças que recebemos na montagem da Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida, estas muitas vezes apresentam "algo" (estereotipias, ecolalias) a partir do que partimos em busca de extensão significante. Diante de um bebê "esparramado", por onde começar? De onde partir?

No decorrer do tratamento a que me dedicarei neste trabalho, pude constatar como a suposição de sujeito nesses bebês que se apresentam como puro real toma a forma de antecipação, e o analista assume o lugar de Outro Primordial sustentando - para a mãe e para o bebê - um vir-a-ser do que só pode vir a ser a partir dessa aposta.

Denis e sua mãe vêm sendo atendidos no Núcleo de Intervenção Precoce do Lugar de Vida (NIP) há quase um ano (quando chegou tinha 1 ano e 5 meses). Ao iniciar o atendimento, Denis apresentava hipersonia (dormia praticamente o dia todo), hipotonia (ficava "largado" no colo da mãe), ausência de qualquer tipo de reação (à dor, a remédios com gosto desagradável, à posição na qual era colocado, etc), não sustentava a cabeça, não sentava, não conseguia segurar objetos. Denis não olhava e apresentava nistagma.

A mãe relata vários episódios graves de convulsão (a primeira aos 6 meses) e seguidas internações decorrentes de pneumonias. Não há dados conclusivos acerca do diagnóstico de Denis. Sabemos apenas que o exame de cariótipo não acusou nenhuma anomalia cromossômica. E aqui deparamos com o primeiro limite deste -e também de muitos outros - atendimentos: a dificuldade de reunir as informações dos diversos médicos que se ocupam da criança. A possibilidade de um trabalho interdisciplinar é ainda uma meta a ser atingida.

Embora tenhamos proposto à mãe que procurasse novamente os médicos que atendem ou atenderam Denis, reunindo as conclusões de cada especialista visando circunscrever o limite que o corpo oferece à constituição desse sujeito, isso ainda não foi possível.

No início do atendimento, Denis parecia encaixar-se perfeitamente no quadro definido por Laznik-Penot (1994) como "hospitalismo em casa". Ele era tomado pela mãe apenas no real do seu corpo, de cuja sobrevivência ela muitas vezes chegou a duvidar (devido às fortes crises convulsivas e às freqüentes internações). A mãe saía para trabalhar pela manhã deixando-o no berço e quando voltava encontrava o filho no mesmo lugar. A avó ou a tia cuidava do menino.

É importante ressaltar que quando Denis nasceu a mãe encontrava-se deprimida, tinha se separado do marido havia poucos meses e tinha outro filho de 1 ano para cuidar. Parece que a mãe estava bastante perturbada e delegava à sogra o cuidado dos filhos.

Após algumas sessões, a mãe vai percebendo que os cuidados que dedicava ao filho limitavam-se a um corpo doente e, após a - entrevista de triagem, começou a poder ver um menino naquele corpo. Diz então que antes disso ele ficava "abandonado": "Parecia que não tinha um bebê em casa". Relata um episódio em que o tio ficou cuidando de Denis e saiu, esquecendo-se de que o bebê estava em casa. Parece que o significante "abandono" marca o lugar que era reservado a esse bebê em seu primeiro ano de vida.

Podemos perceber como a entrevista de triagem (realizada pela equipe do Lugar de Vida) constitui um momento privilegiado para essa mãe e seu bebê, e a partir desse momento surgem as primeiras mudanças. Denis passa a ficar mais tempo acordado, no "sem forma" começa a haver diferenciação: já não é mais indiferente ao que ocorre à sua volta, tem preferências, não quer ficar só, "reclama" da comida que não gosta ou do gosto amargo do remédio.

Levantamos a hipótese de que essas primeiras mudanças no quadro de Denis sejam decorrentes de um novo lugar reservado ao bebê. Há uma passagem do abandono ao investimento, passagem do não esperar nada desse bebê para a pergunta: "O que podemos esperar de Denis?" Quando a mãe começa a ser escutada e quando um outro olhar - de suposição de um sujeito - passa a incidir sobre esse bebê, ele começa a responder, e os efeitos vão na direção da construção de um sujeito. Esta hipótese vem sendo confirmada no decorrer do tratamento, no qual assistimos ao surgimento dos primeiros rudimentos de um sujeito e à construção da função materna.

 

DO ABANDONO AO INVESTIMENTO

Denis passa as primeiras sessões dormindo. O primeiro período do tratamento é marcado pela escuta da mãe, na presença do bebê. Aos poucos, ele começa a permanecer acordado durante as sessões. Em determinado momento, apostando nos efeitos que a posição sentado - mesmo que sustentado pela cadeirinha - poderia propiciar-lhe, introduzo o bebê-conforto. A mãe duvida da possibilidade de o filho permanecer sentado na cadeira, é preciso insistir um pouco.

Apresento a seguir um recorte de anotações de uma sessão: "Na cadeirinha, brinco com as pernas de Denis, e ele reage, fazendo trejeitos nos quais transparece um sorriso, e volta a ficar parado; tenho a sensação de que espera uma nova investida minha. Mexo em suas pernas novamente, e o jogo se perde, não se confirma".

Sobre a introdução da cadeirinha, lembro-me de Esteban Levin (1997), que diz que ao aceder à posição sentado o bebê libera as mãos, e isso lhe permite atirar objetos e contemplá-los cair com todo o cuidado e curiosidade (p.98). Acrescenta que a possibilidade de sentar-se realiza-se via demanda do Outro e obriga a criança a pôr em jogo certas destrezas (postural-motoras), como, por exemplo, passar do decúbito dorsal ao decúbito ventral (p.98). Podemos observar em Denis alguns dos desdobramentos formulados pelo autor (com as mãos livres, surge a preensão; deitado, começa movimentar-se, passando da posição "de barriga para cima" para "de barriga para baixo", e vice-versa; começa a jogar objetos, há um prenuncio de fort-da).

Após introduzir a posição sentado, começo a oferecer chocalhos a Denis. Transcrevo a seguir algumas anotações deste período:

"Ele sorri, contrai o corpinho. Parece que esse corpo, mole, fragmentado, começa a tomar forma. Tenta segurar o chocalho, sua mão não o retém. A mãe pega o chocalho e brinca espontaneamente com o filho. Ele sorri. Ela massageia suas mãos, e ele parece sentir cócegas. Denis dirige a cabeça ao chocalho, a cabeça cai e ele a levanta (antes tínhamos que levantar sua cabeça)".

"Observo que quando deixo o chocalho no seu colo, próximo a sua mão, quando esta toca o chocalho, Denis tenta pegá-lo, mas não tem preensão suficiente para fazê-lo."

"Ofereço o chocalho, passando por seu corpo e nomeando, ele vai movimentando a parte tocada-nomeada. Deixo o chocalho ao alcance de suas mãos. Pela primeira vez e durante um momento, Denis consegue segurar o chocalho, e deixa cair, ou 'joga-o longe' - conforme interpreta sua mãe. Denis parece esperar que mexamos com ele. Permanece quieto, de olhos bem abertos - embora ainda não olhe, o nistagmo diminuiu consideravelmente -, e responde prontamente." Em outra sessão, consegue levar o chocalho à boca.

Aos poucos, Denis começa a ocupar mais espaço durante as sessões. Eu e sua mãe voltamo-nos para ele, que responde, sorri. Vou instituindo uma rotina no atendimento de Denis. Faço isso partindo da idéia proposta por Rodulfo (1990), na qual a rotina é uma das formas de se fabricar superfície, borda. Assim, no início da sessão sua mãe senta-o na cadeirinha, agora mais inclinada, e eu tiro seus sapatos e meias, mexo nos seus pés e combino que voltarei a colocá-los no final da sessão, acrescentando: "Você tem que deixar eu colocar seus sapatos, senão sua mãe não deixa mais eu tirá-los". Deixo à disposição alguns chocalhos. No final, reservo algum tempo para Denis ficar no colchão, e brincamos - eu e a mãe - com ele deitado no colchão. O que mais chama a atenção é que não só ele não permanece mais na posição em que o deixamos, - como acaba se arrastando e girando tantas vezes, que é difícil mantê-lo sobre o colchão. Quando seguramos em suas mãos, ele imediatamente se apoia procurando sentar-se, o que tem feito a cada sessão com mais firmeza e rapidez.

A mãe de Denis, por sua vez, é "tocada" pelos movimentos do filho. Começa a "supor": "Acho que ele me vê". Começa ela mesma a brincar com ele, fazer jogos com sons, imitando o filho. Certo dia, ao chegar, encontro Denis sentado/apoiado ao lado de sua mãe na sala de espera. A imagem provoca em mim surpresa e alegria. Noutro dia, ele vem à sessão de calça jeans e camisa. Não usa mais roupas de bebê. O investimento familiar é visível.

Nessa época, a mãe conta que Denis finge que está com tosse quando não quer mais comer, e que leva bronca quando faz isso. Ou, noutra sessão, diz que ele anda "malcriado", pois coloca as mãos no prato de comida e espalha comida no rosto. Procurando não desmerecer o significante "malcriado", procuro incluir a dimensão de experiência (construção da superfície, construção das bordas) dessa "malcriação", assim como também tem essa função chupar dos dedos e levar coisas à boca.

Desses exemplos podemos extrair a nova posição dessa mãe: passa a falar com o filho, passa a supor uma significação em seus atos, passa a interpretar. Posição que corrobora as três observações clínicas que, segundo Jerusalinsky (1993), definem a função materna.

Na esteira do investimento da mãe de Denis, as avós, as tias e a madrinha passam também a outorgar-lhe um novo lugar. Presenteiam o menino, brincam e passeiam com ele, disputam-no. Todas querem contar à mãe as novas conquistas do menino.

São mulheres definidas pela mãe como "guerreiras", que, abandonadas pelos maridos, criaram seus filhos sozinhas. Da fala da mãe podemos depreender que acredita que esses homens não fizeram falta, assim como acredita que o pai de Denis (que se separou da mãe e casou-se com outra mulher antes mesmo de seu nascimento) não lhe faz falta para criar os filhos. Nesse momento do atendimento estamos às voltas com a função materna... mas, na escuta da mãe, começamos também a tratar da "falta que um pai faz".

Um pequeno registro desse momento do atendimento: "Comento que há muitas mulheres na vida de Denis. A mãe diz que se sente enciumada, pois todas querem ser a mãe dele. Nesse momento começa a falar com o filho com voz doce: 'Quem é o filhinho da mamãe...' E me mostra como ele fica quieto escutando, como ele a reconhece".

Em outra sessão, a mãe conta que na noite anterior ela ainda não tinha voltado do trabalho quando Denis foi dormir. A avó diz que ele ficou chamando "mamama" e ficou acordado esperando por ela. Ao chegar, a mãe falou um pouco com ele, desejou uma boa noite e foi jantar; quando voltou, ele já dormia. Falando deste episódio, ela diz: "Ele estava esperando por mim". E depois: "Eu sou a mãe".

 

MUDANÇAS EXPERIMENTADAS POR DENIS DURANTE O ATENDIMENTO

Denis ganhou peso, ganhou massa e tônus muscular, firma melhor a cabeça. Chama a atenção um crescimento - desordenado - dos dentes (no início tinha apenas quatro dentes). Há esforço por parte dele em sentar-se (quando seguramos suas mãos, apóia-se nestas e esforça-se para sentar). O nistagmo diminuiu significativamente. O olhar aparece em alguns momentos. Surge o sorriso. Denis agora consegue segurar objetos. Surge a vocalização, e pequenas palavras: "mama", "nã", "gogó", etc. Nesse período, não teve convulsões.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Denis parece mais atento, parece esforçar-se para fixar a visão. Há alguns momentos em que o flagro me olhando. Quando isso ocorre, ele rapidamente desvia o olhar. Comento isso com sua mãe, que diz ter também a impressão de que isso ocorre. Por que Denis ainda não consegue sustentar o olhar?

Um último episódio de jogo: "Denis deixa cair o chocalho. Rindo, lhe digo: 'Ah, você jogou o chocalho, vou pegar...'" Um pouco depois, ele volta a jogar o chocalho no chão, e sua mãe diz: "Não". E ele repete: "Nã!" Surpreendo-me com essa fala! Será que podemos falar, a partir desse jogo, de um prenuncio do fort-da?

De acordo com Levin (1997), sim, essa cena se constitui como precursora do fort-da, pois a criança atira o objeto "para longe", mas não pode fazer "aqui", ela ainda precisa do Outro que lhe alcance o objeto, ou seja, que lhe permita montar novamente a cena e o cenário (p.100).

Mas, se o fort-da é o jogo em que se brinca a presença e a ausência, que sentido pode ter essa interdição da mãe? Se a presença substituiu, neste caso, o abandono inicial, a possibilidade da "ausência" parece ainda insuportável. Em que medida isso oferece entraves para a constituição desse sujeito?

Para terminar, uma cena na qual a possibilidade de antecipação dessa mãe fica evidenciada:

Denis faz um pequeno gesto com a mão, a mãe reconhece nesse gesto um chamado e diz: "Você está chamando a mamãe?", aproximando-se dele. Ele sorri. Ou, nas palavras de Levin (1990): "Um movimento se transforma em gesto enquanto haja um Outro que capte neste movimento uma significação" (p.108). Nesta clínica, me parece, é disto que se trata!

 

COMENTÁRIOS DA MESA

Alfredo Jerusalinsky: O que primeiro aparece são alguns signos que são indicadores de que algo não está bem, de que alguma coisa não está funcionando direito. São signos que primeiro emergem fenomenologicamente, que quase sempre são funcionais, ou seja, signos que se referem à falta de uma espécie de maturação genética que se espera encontrar a certas alturas, em certos momentos cronológicos. Sabemos que esses momentos cronológicos são muito variáveis, mas que a variabilidade depende do entorno, ou seja, do modo em que a criança é conduzida, orientada, tomada. Esse relógio genético pode estar funcionando mal, pode haver uma interação genética, e então o relógio genético pode estar atrasado ou funcionar mais devagar. Pode ser que haja obstáculos da ordem maturacional, ou seja, da ordem do sistema nervoso central que atrasam o aparecimento de um padrão esperado, mas também pode ser que os engates psíquicos entre a criança e o Outro, a criança como sujeito, não estejam operando.

Ontem, numa tentativa de ordenamento dos campos de leitura, dedicamo-nos justamente a diferenciar essas três ordens de leitura, ou seja, uma que se refere aos cuidados, outra que tem a ver com os cuidados primários, e outra que tem a ver com as funções e o neurofuncional, e aqui também podemos incorporar o relógio - genético, uma outra ordem de leitura que tem a ver com os aspectos psíquicos subjetivos e com a relação com o Outro. Portanto, a priori, não podemos julgar, pela natureza mesma do signo, qual é a etiologia dessa dificuldade ou até que ponto isso constitui uma patologia propriamente articulada. Como dizíamos ontem, diante do signo não é fundamental definir se ele é normal ou patológico, mas sim entender em que campo de leitura ele nos oferece a possibilidade de um certo deciframento - e quando digo deciframento quero dizer que nos ofereça a possibilidade de averiguar as chaves operatórias do ponto de vista clínico. É importante que esse signo possibilite o deciframento a respeito de qual é a pertinência de tal ou qual intervenção clínica. Há toda uma tendência em tomar o signo como significativo em si mesmo, como autor de seu próprio sentido, como se fosse possível que o signo determinasse qual é sua significação patológica e qual é a intervenção clínica a que corresponderia. Nesse caso - e agradecemos muito o modo da apresentação, porque realmente revela como o pertinente é não responder sobre a patologia - o caráter patológico não se reduz ao signo, bem como a resposta acerca da maneira de intervir clinicamente. Nesse sentido, temos que fazer uma indagação e um deciframento, e ir em busca, nesta indagação, de qual é o terreno mais apropriado para a intervenção.

Não vou repetir o que vocês já escutaram. Vou simplesmente enumerar alguns pontos importantes sobre este bebê:

- não segura a cabeça,

- não senta - isto com 1 ano e 5 meses,

- tem convulsões a partir dos 6 meses, que resultam em internações freqüentes.

E vou sublinhar dois signiflcantes que me parecem, pela sua repetição, reveladores. Um é o abandono. No relato aparece a idéia de "abandonado dentro de casa", e também de "mulheres abandonadas"; interessante porque trata-se de mulheres lutadoras que foram abandonadas pelos maridos. A pergunta seria: foram abandonadas pelos maridos por serem lutadoras, ou tornaram-se lutadoras depois de serem abandonadas? (risos). Isto é cômico, mas é uma pergunta pertinente, sobretudo porque a mãe diz que não sentiram ou não parecem ter sentido a falta dos pais na criação de seus filhos.

O segundo significante é o corpo, que aparece repetido no relato e numa posição polissêmica, ou seja, com diferentes significações, mas cuja repetição pode nos dizer alguma coisa. Aparece a repetição, por exemplo, quando a terapeuta refere que os cuidados recebidos por Denis eram exclusivamente corporais e que havia uma valorização do corpo, da patologia. O corpo parecia ser o único ponto de atenção. Aparece a mudança de posição corporal na construção de uma superfície, ou seja, quando aparecem os buracos e as bordas do corpo. E aparece também, no fim do relato, uma preocupação com a dentição e com o ganho de peso na qual o corpo volta a surgir. Ao longo do caso, a questão postural parece ser uma preocupação, assim - como as convulsões, ou seja, o corpo emerge de diversas maneiras e de um modo quase incessante.

Marila Terzaghi: Pensando nestes dois significantes, abandono e corpo, gostaria de situar algumas questões que, por esse caminho, fazem diferença pela abordagem. Parece que aqui houve um necessário abandono do corpo, um deixar fora tudo isso, apesar da preocupação pelo postural, até o ponto em que essa última convulsão2 fica fora, não é? Me parece interessante comentar o ponto necessário de articulação com a leitura médica, para que a convulsão não fique fora de Denis de alguma maneira.

Nós, nesse ponto de articulação de leituras, tratamos de pensar o diagnóstico em estimulação precoce articulando três perspectivas de elaboração de hipóteses diagnosticas, e o diagnóstico médico nos aparece como necessário dentro dessas perspectivas. É necessário para sustentar a clínica da estimulação precoce, para fazer esse movimento de exclusão do peso dessas questões que insistem muitas vezes com os bebês, interferem e deslocam-nos de posição, porque o nó se vê muitas vezes lançado na preocupação com a convulsão que aparece na sessão, por exemplo, e a possibilidade de situar isso em algum lugar tem efeitos de outra ordem, até mesmo para que se sustente a clínica. Situar alguma questão levando em conta o diagnóstico médico é um ponto de partida. Os outros níveis de elaboração de hipóteses diagnosticas que propomos em uma primeira entrevista de estimulação precoce são: o diagnóstico dos pais, - ou seja, os efeitos do diagnóstico médico, o registro da diferença e suas implicações; e o diagnóstico específico da estimulação precoce, que a nosso entender deve articular questões maturacionais, que se revelam nas questões instrumentais, dado que pensamos a estimulação precoce como uma disciplina instrumental.

Estas são pontuações que ressaltam algumas mínimas questões a partir da diferença de recorte no olhar e a partir dessa perspectiva interdisciplinar.

Elsa Coriat: Quando escutava Alfredo comentar sobre o lugar que atribuía às mudanças de posição do bebê, lembrei-me de um significante que Daniela havia exposto antes, no começo de tudo, que se tratava de "um bebê com um corpo amorfo", e volto a isso porque me pareceu importante, no começo desse atendimento, escutar a mãe com o bebê dormindo. Esse primeiro tempo - que coincide com o primeiro momento do tratamento - se rompe e começa a se fazer necessária a introdução de uma "cadeirinha". Me parece que a introdução da "cadeirinha" foi o que possibilitou ao bebê separar-se da mãe, quer dizer, nesse momento, essa cadeirinha é o que faz falta para introduzir a proibição do Complexo de Édipo. A partir disso, penso que o bebê se apresentava amorfo porque não estava separado do corpo da mãe, o que se torna evidente diante da resistência da mãe em sentá-lo na cadeirinha.

Algo de que eu gostei é, como podemos ver neste relato, levando em conta o que foi acrescentado por Alfredo, que tudo está interligado, mas como uma série de atos, de situações, de cenas mínimas muito, muito sensíveis, mas que têm a dimensão de toda a tragédia humana, incluindo o Complexo de Édipo.

Claudia Rosso Trevisan: Gostaria de comentar - compartilho os comentários da mesa - que para nós também faz parte do tratamento em estimulação precoce o que a Marila já falou sobre a questão diagnostica, que não aparece muito clara no relato, mas, ao mesmo tempo que não define a necessidade de um tratamento, pode às vezes definir uma conduta de atendimento.

Alfredo Jerusalinsky: Queria sublinhar a questão do abandono. Esta questão, neste caso, não nos remete imediatamente ao campo da depressão, mas ao campo do desamparo; o que não é exatamente a mesma coisa. A depressão - digo esquematicamente, não vamos aqui falar longamente sobre a depressão - consiste na identificação com o objeto perdido. O desamparo, por outro lado, implica a angústia que desperta como conseqüência da ameaça de retornar ao ventre materno, ou seja, de ficar indiferenciado da mãe, de perder qualquer possibilidade de se manifestar de um modo autônomo ou subjetivo, de perder qualquer forma de subjetivação. E essa criança, na sua posição de corpo amorfo inicial - o que foi muito bem - registrado por Daniela e agora sublinhado por Elsa -, é evidentemente engolfada, tomada, capturada numa posição tão primária e tão ausente de qualquer suposição de sujeito, que seu corpo parece muito mais o de um feto, passivo e amorfo, situado, delimitado somente na sua condição corporal e puramente corporal real, e isso a põe diante de uma ameaça de desamparo.

Curiosamente não é uma criança descuidada, mas nos dá toda a sensação de estar desamparada, porque o que está desamparado é o sujeito, e não o corpo. O corpo está cuidadinho, e justamente um dos fios condutores, uma das possibilidades da direção da cura nesse caso - e Elsa destacou muito bem um momento importante desse direcionamento -, é ir conduzindo esse corpo a uma posição que permita aí supor um sujeito, ou seja, ir arrancando-o dessa posição amorfa e incluída, engolfada no ventre materno, dessa posição de desamparo a uma posição em que ele, o Denis, ou seja, esse sujeito marcado no discurso com o seu nome, comece a se valer de seu corpo e a instrumentalizá-lo para dizer alguma coisa, por mais elementar que seja. Então este é um dos caminhos.

Mas aí vocês me perguntam: e as convulsões? E as dificuldades posturais? Mas é claro que temos de nos ocupar disso urgentemente, isso está fora de questão. Mas o problema é em que caminho, em que trilha temos de nos ocupar disso, em que direção? Pois não basta dar a medicação e parar a convulsão ou controlá-la. Não basta simplesmente ir moldando posturalmente o corpo da criança, mas sim transformá-la em agente e sujeito desse processo. Deve haver certos momentos-chave que têm a ver com supor um sujeito nessa criança - o que foi assinalado também por Daniela - relacionados a momentos de separação, momentos de ausência-presença, ou seja, de descontinuidade e nos quais justamente se domestique esse corpo. E agora vou falar do termo domesticar, que é um termo bastante interessante, não no sentido de domesticar como se domestica um animalzinho caseiro, de estimação, mas sim pôr na ordem do humano, como Lacan usa o termo domestique, ou seja, introduzi-lo no campo da linguagem. Se esse corpo não é introduzido na ordem da linguagem, qualquer outra operação clínica será uma operação mecânica que vai cair num vazio corporal, um corpo vazio de sujeito. E, então, nós também controlaremos a convulsão, o que impedirá que os danos cerebrais continuem acontecendo. Isso não é pouca coisa, mas não haverá um posicionamento de cura aqui. Por isso, corpo e abandono aqui são significantes-chave.

Daniela Teperman: Antes de mais nada, é muito importante o comentário de Marila - sublinhado por Claudia -, porque eu gostaria que ficasse claro que não há, de forma alguma, uma desvalorização dessas informações, referentes ao diagnóstico médico. Mas a realidade - é que não temos, ainda - e eu gostaria de frisar o ainda, porque este trabalho está começando -, a condição necessária para obtê-las, levando em conta o serviço de saúde de que dispomos e a condição socioeconômica dessa família... Essa essa mãe consultou um neurologista, que medicou o bebê, mas não voltou a consultá-lo durante esse tempo todo de atendimento. Seria importante que um neurologista realizasse uma avaliação médica levando em conta os efeitos do tratamento e que pudesse rever a medicação a partir destes, por exemplo. Isso foi proposto à mãe, mas ainda não foi possível.

Marila Terzaghi: O trabalho que fazemos, a interdisciplina, não é sustentado somente por contar com a equipe ou os integrantes ideais, mas por uma posição em relação à clínica na qual aparece essa possibilidade de endereçar perguntas a outras disciplinas. Preocupamo-nos em marcar essa diferença precisamente para que se possa sustentar o trabalho que você está sustentando, para poder deixar fora tudo isso que foi o único ponto de análise até agora na problemática de Denis, não é?

Daniela Teperman: No tratamento de Denis, acredito que um outro profissional, além de um neurologista, que poderia oferecer contribuições importantes, em função de toda essa questão do corpo, seria um fisioterapeuta. Não sei como vocês pensariam isso.

E vou contar brevemente o momento em que essa mãe e seu bebê estão, momento no qual Denis tem a primeira convulsão depois de um ano e no qual o significante abandono aparece novamente. A mãe engravida de um homem com o qual não tem uma relação estável e que parece que não assumirá o bebê, ou seja, mais um homem que não será pai de seu filho, mais um bebê sem pai. Trata-se de um período muito delicado do atendimento, pois a mãe rejeita a gravidez, e Denis acaba ficando em segundo plano em função "disso" -como ela diz - que tem dentro da barriga. É um momento no qual buscamos construir um lugar de bebê para esse "isso". O bebê nasceu recentemente, prematuro, a convulsão de Denis é também recente, e a mãe diz sentir-se abandonada - pela família, pelo pai do bebê - nesse momento. Então, o significante abandono retorna...

Alfredo Jerusalinsky: Na medida em que não há representação paterna no fantasma dessa mãe, ou seja, o fantasma dessa mãe é um fantasma de pai ausente, a ameaça de engolfar cada filho novamente na posição uterina é incessante, então, a ameaça de desamparo é constante. A dificuldade que a gente pode supor nesses filhos de mães que não sentiram necessidade de pais é que, mal dão um passo fora de casa, sentem-se completamente desamparados. Pensemos na ficção infantil elementar: como é que essas crianças reagirão quando ameaçadas por outras, o que é inevitável na vida social, porque é o exercício da agressividade constitutiva? O que vão di- zer no momento em que deveriam dizer: "Olha, meu pai é grandão, é fortão e vai te dar um soco!", ou "Meu pai é policial", embora não sejam verdades. O que eles vão dizer? "A minha mãe tem uma teta grande assim e vai deixar cair na tua cabeça?!" (risos).

Não há equivalência simbólica. A relação com o falo entre homem e mulher é diferente, e se essa diferença está denegada causa problemas.

Marila Terzaghi: Eu não compreendi muito bem a questão que você apresentou com relação à fisioterapia, seria como uma interdisciplina? Não entendi...

Daniela Teperman: A idéia é que, nesse caso, um profissional que teria muito a contribuir a partir de sua especificidade seria um fisioterapeuta, que poderia ver Denis e depois trabalhar junto comigo nesse tratamento. Assim, numa perspectiva de interconsulta, incluí-lo em nosso trabalho.

Marila Terzaghi: Ah, sim... Porque esse é um campo de ativa discussão. A questão dos bebês com comprometimentos motores, o que aparece para você como a urgência da fisioterapia, modificando certo eixo na leitura da clínica desse bebê. Pelo que a intervenção clínica tem nos mostrado, não nos parece que nos tempos do bebê haja necessidade de uma intervenção de outra modalidade que não seja a estimulação precoce. E, referente a esse começo de outro posicionamento que inicia seu registro nesse menino, bem, aí eu começaria outras perguntas, mas sobre a questão da construção postural não há por que pensar em outra maneira do que na questão dos efeitos que o tratamento tenha tido nas convulsões, nos nistagmos.

Claudia Trevisan: Porque me parece que é justamente isso, que a direção que você tem dado ao acompanhamento desse bebê é o que tem construído postura nele. O fato de que um fisioterapeuta saiba como as posturas se produzem não quer dizer, em absoluto, que saiba como isso acontece nos bebês.

Daniela Teperman: Eu vou fazer um último comentário em função da fala do Jerusalinsky sobre a ausência de representação paterna e como todos os bebês de uma mãe nessa posição ficariam engolfados nessa mesma situação. É interessante porque a mãe de Denis teve um filho antes desse, na época em que era casada, e o pai é um lutador de capoeira, ou seja, é um pai que pode muito bem sustentar esse lugar. E esse primeiro filho tem uma referência ao pai, conviveu com ele e não apresenta problemas do desenvolvimento. Então eu acho que é interessante pontuar como em períodos diferentes na vida de uma mãe esta pode também dar lugares diferentes a seus filhos.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Recebido em 05/2000.

 

 

NOTAS

1 Caso clínico apresentado no Evento Clínica com Bebês: uma Abordagem Interdisciplinar (realizado nos dias 14, 15 e 16 de abril de 2000, promovido pelo Lugar de Vida/LEPSI e pelo IPUSP) seguido por comentários dos seguintes membros do centros Dra. Lydia Coriat de Buenos Aires e de Porto Alegre: Alfredo Jerusalinsky (psicanalista), Claudia Rosso Trevisan (fisioterapeuta, especialista em estimulação precoce), Elsa Coriat (psicanalista) e Marila Terzaghi (neuropediatra).
2 Marila Terzaghi refere-se a uma convulsão recente de Denis, relatada pela terapeuta durante a apresentação, tendo ocorrido após a preparação deste material -portanto não consta da parte escrita - e que se inscreve em um outro momento familiar, bastante delicado e instável, marcado por uma nova gravidez da mãe.