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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.5 no.8 São Paulo  2000

 

DOSSIÊ

 

Do neonato ao bebê: a estimulação precoce vai à UTI neonatal

 

From a newborn to a baby: the early stimulation goes to the UCI

 

 

Julieta Jerusalinsky

Psicóloga, especialista em estimulação precoce pela Fundación para el Estudio de los Problemas de Ia Infância (FEPI), Buenos Aires, Argentina. Membro da APPOA e Percurso Psicanalítico de Brasília

 

 


RESUMO

Que um neonato internado em UTI se torne um bebê é uma passagem simbólica a construir. Tal passagem é objeto de nossa intervenção em estimulação precoce. O neonato internado em UTI encontra-se em uma situação de risco, não só desde o orgânico como também em seu desenvolvimento e constituição como sujeito. Neste artigo abordamos a especificidade da intervenção em estimulação precoce na UTI e suas peculiaridades.

Bebês; neonatologia; estimulação precoce; intervenção precoce; psicanálise


ABSTRACT

A symbolic passage is necessary to a newborn submitted to intensive care become a baby. This passage is the object of our intervention in early stimulation. The newborn patient in Intensive Care Unit (ICU) is in a risk situation, not only organic risk, but also related to his development and subject constitution. In this article we approach the early stimulation in ICU and its peculiarities.

Babies; neonatology; early stimulation; early intervention; psychoanalysis


 

 

Encontramos na instituição hospitalar um âmbito privilegiado para a intervenção com bebês, pois, em nossa atual cultura, é ali que eles nascem. Em tal instituição destacamos a importância de intervir não só no atendimento em consultórios ambulatoriais de estimulação precoce, em que podemos receber aqueles bebês ou crianças pequenas com sintomas clínicos relativamente configurados, como também em outros serviços hospitalares dedicados à infância - casos da Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) neonatal e pediátrica e do ambulatório de pediatria -, junto aos quais é possível realizar um trabalho preventivo por meio da detecção e intervenção precoce diante de traços que apontam riscos no desenvolvimento e constituição de um bebê como sujeito.

A intervenção de estimulação precoce em neonatos internados apresenta certas peculiaridades que a distinguem da intervenção com bebês realizada em consultórios (ambulatoriais hospitalares ou de clínica particular). Romper o marco usual da nossa intervenção obriga-nos a tecer novas articulações que fundamentem nossa praxis em sala de neonatologia. Propomos trazer aqui algumas destas articulações construídas com base na experiência compartilhada pela intervenção em UTI neonatal do Hospital Santojanni1.

Em primeiro lugar, na intervenção com bebês e seus pais na sala de neonatologia, não partimos da formulação de um "pedido parental". Diferentemente do que ocorre nos consultórios, ninguém vem nos procurar: como clínicos em estimulação precoce, nós estamos ali, integrando o corpo de profissionais encarregados de realizar o acompanhamento do neonato e de sua família durante a internação.

Em segundo lugar, a intervenção apresenta o caráter de urgência: intervimos não diante de um quadro já estabelecido, como geralmente ocorre nos consultórios, mas em função de uma situação aguda que acomete o neonato e sua família. O nascimento prematuro, as complicações no parto ou o diagnóstico de uma patologia no nascimento se apresentam como um real que irrompe no tecido simbólico que até então estabelecia as representações que permitem a uma família a sustentação simbólica da chegada de um recém-nascido.

Uma terceira diferença a considerar é que, no marco da UTI neo-natal, a intervenção que realizamos é limitada e recortada pelo tempo da internação, não estando guiada em seu tempo de duração -diferentemente do que ocorre no trabalho em consultórios - unicamente pelos diferentes momentos lógicos de constituição de um bebê e da elaboração parental, mas também pelo término do período de risco de vida do neonato.

 

COMO INTERVIR COM UMA TEMPORALIDADE RECORTADA EXTERNAMENTE?

No contexto da UTI radicaliza-se a concepção clínica de que cada sessão é única, não só porque de fato em alguns casos não chega a ocorrer mais do que uma intervenção, dada a rápida passagem pelo serviço, como também porque os neonatos internados na UTI apresentam permanentes oscilações em seu estado clínico: em questão de poucas horas os prognósticos e conseqüentes reações parentais podem ser absolutamente diversos dos encontrados na última intervenção.

Nossa intervenção aponta para o resgate, dentro desse "tempo de internação", do "tempo subjetivo" de elaboração do pai e da mãe2 quanto à inscrição do recém-nascido no discurso parental, que permanentemente cai e fica silenciada em função da iminência do risco de vida, dos diferentes procedimentos e comunicados médicos que se impõem no marco da internação em UTI.

Lacan situa a existência de três tempos lógicos: o tempo de ver, o tempo de compreender e o tempo de concluir. Diante da urgência encontramos a permanência no tempo de ver, sem que se arme a passagem lógica ao tempo de compreender. "Não sei como isto foi ocorrer", "não entendo o que está acontecendo", "o médico me disse o problema que ele tem, mas não consigo entender" são falas freqüentes nesse contexto. É justamente para articular esta passagem que apontamos na intervenção.

 

COMO INTERVIR NA URGÊNCIA?

Na urgência neonatal, aqueles que supostamente estariam a cargo de sustentar as funções materna e paterna de um bebê encontram-se absolutamente impossibilitados de "associar" e "historiar" esse bebê. Em lugar do "associe livremente", que marca as coordenadas de uma intervenção psicanalítica, ou o "contem-me o que os preocupa em seu bebê e o traz até aqui", que marca a recepção dos pais na clínica de estimulação precoce, na urgência encontramos a falta de palavra, ou falas aparentemente desconexas que ficam entrecortadas pelo evento que toma de surpresa os pais do recém-nascido e lhes impossibilita situar-se e situar o bebê.

Intervimos na direção de que a tela simbólica, que até então armava o casulo de recepção do bebê e que sofre essa dilaceração, possa retomar seus nexos, para que o evento da internação, a gravidade do quadro ou a patologia do recém-nascido, em vez de silenciar o discurso parental, possam começar a ser bordejados simbolicamente.

Desde a clínica em estimulação precoce sabemos que o trabalho de ressignificação de uma patologia ou evento traumático é permanente. Permanentemente se tenta bordejar um real que, como aponta Lacan, não cessa de não se inscrever.

Na intervenção em sala de neonatologia visamos a realização de uma primeira construção que permita subjetivamente aos pais uma mudança de posição ao deslocar-se do silêncio e começar a pôr em movimento uma fala que os implica com o bebê. Isto porque, ainda que na sala de UTI seja possível salvar organicamente a vida de um recém-nascido, é somente desde o discurso parental que esta vida pode chegar a ter alguma significação simbólica.

 

O QUE TOMAMOS COMO PONTO DE PARTIDA PARA A INTERVENÇÃO?

Aqui é preciso diferenciar o "pedido de tratamento" de "uma demanda": os pais cujo filho está internado na UTI, pela situação mesma de urgência, encontram-se psiquicamente impossibilitados de formular um pedido de tratamento. Eles estão em situação de sofrimento psíquico e produzem atuações com este sofrimento, com desmaios, ausências prolongadas na visitação ao recém-nascido, permanência constante ao lado da incubadora em situação de ausência psíquica ou ataques ao pessoal do serviço, entre outras manifestações.

Em nosso trabalho de intervenção em UTI neonatal, escutamos essas atuações dos pais do recém-nascido internado como uma demanda radical a partir da qual propomos a intervenção. Tomamos esse sofrimento psíquico que não consegue ser posto em palavras como uma demanda e realizamos a oferta de escutá-lo, dando lugar - a que se construam suas próprias articulações sobre o evento, a que formulem suas dúvidas, suas preocupações, a que rearmem a imagem do seu bebê e possam constituir estratégias de encontro com ele em meio aos obstáculos que se fazem presentes pela internação e pelo risco de vida do recém-nascido.

Ainda que a sala de UTI apresente um marco que impõe suas diferenças em relação ao do trabalho realizado em consultórios, ambas as intervenções apontam para uma mesma direção: para a constituição do nosso "pequeno paciente" como um sujeito do desejo capaz de vir a se apropriar de suas aquisições instrumentais e para a sustentação das funções materna e paterna que vêm a possibilitar tal constituição3.

Ocorre que na UTI neonatal intervimos desde um contexto no qual tanto a suposição de um sujeito no bebê quanto a sustentação das funções materna e paterna são permanentemente postas em xeque.

Como bem sabemos, o apoio orgânico à vida dos recém-nascidos internados em UTI exige uma intervenção médica maciça. Tal intervenção, que é absolutamente fundamental para a vida dos recém-nascidos ali internados, não deixa de ter certos efeitos problemáticos que os médicos e o pessoal de enfermagem procuram detectar e minimizar.

A mãe e o pai do recém-nascido não só se vêem confrontados com a situação de urgência do parto ou internação e as fantasias que começam a configurar-se em torno das dificuldades do bebê, como também, posteriormente, em função da necessidade de internação, ficam deslocados do exercício dos primeiros cuidados dirigidos ao neonato. Esta situação freqüentemente causa fraturas na função materna e dificuldades na sustentação da função paterna, funções estas que, quando não são ressignificadas durante o tempo da internação, podem chegar a instalar graves obstáculos na relação com o recém-nascido, que permanecem mesmo após a alta e que vêm a incidir em sua constituição como sujeito e em seu desenvolvimento.

A prolongada internação e a exposição a diversos procedimentos médicos também têm efeitos diretos sobre o recém-nascido, apagando ou desfigurando certos aspectos constitucionais que servem como base para as suas primeiras aquisições instrumentais e como engrenagens capazes de pôr em movimento o exercício da função materna.

 

A SUSTENTAÇÃO DA FUNÇÃO MATERNA E DA FUNÇÃO PATERNA EM SALA DE NEONATOLOGIA

Se quando tudo corre bem a passagem de um bebê e sua mãe pelo hospital se restringe a uns poucos dias, ao se tratar de um neonato que exige cuidados intensivos, por um período prolongado (geralmente de uma a doze semanas), o entorno do bebê será a UTI neonatal. Em tal circunstância, diversos profissionais estão a cargo do recém-nascido, pois seu estado de gravidade e os frágeis momentos de estabilidade do seu quadro orgânico exigem vários olhares atentos às suas diferentes funções vitais. Há, deste modo, uma multiplicação das pessoas implicadas em seus cuidados - no mínimo, médico de cabeceira, médicos de plantão, diferentes enfermeiras que se revezam nas mudanças de turnos e profissionais que realizam intervenções específicas, como radiografias ou manobras fisioterapêuticas.

Encontramos aqui a diferença existente entre os cuidados espontâneos que uma mãe dedica ao seu bebê a partir de sua "preocupação materna primária" e os cuidados relativos a um neonato em sala de UTI.

Uma mãe também está atenta às funções vitais do bebê, mas em seus cuidados vai tecendo a articulação entre cada uma das manifestações espontâneas deste e a significação simbólica que ela lhe atribui. Assim, relaciona os estados de tensão corporal com o - desprazer, o relaxamento tônico-corporal com a satisfação, e, sobretudo, toma as manifestações do bebê como demandas a ela dirigidas. É por isso que o mero choro reflexo do recém-nascido adquire para uma mãe situada desde sua "preocupação materna primária" o estatuto de um chamado. Nesta leitura, que transcende o puro cuidado do orgânico, ela põe em ato o texto simbólico que dá significação à vida do bebê.

É a partir de tal tecido simbólico que se estabelece para o recém-nascido a possibilidade de vir a reconhecer-se. O estabelecimento da identificação simbólica opera como um primeiro traço -o Traço Unário - que permite a um recém-nascido poder situar-se, assim como poder vir a situar os outros e os diversos eventos de sua vida em uma série. Justamente a instituição hospitalar e sobretudo as prolongadas internações em UTI caracterizam-se pelos seus efeitos desorganizadores do Traço Unário.

Por um lado, porque o neonato fica submetido à fragmentação dos cuidados realizados por diversos profissionais e, desde as diferentes mãos que o tocam, olhos que o olham, vozes que falam (na maioria das vezes, nem sequer dirigidas a ele), não se faz possível que arme um ponto de referência para situar-se simbolicamente e vir a operar seu reconhecimento.

Por outro lado, porque os próprios pais, ao procurar reconstituir as referências quanto ao seu filho durante a internação, encontram-se diante de uma verdadeira "colcha de retalhos" de pareceres, procedimentos, altas e baixas, sofrendo eles mesmos efeitos de desorganização quanto à série simbólica inconsciente na qual viria a se inscrever o seu filho.

Os efeitos desorganizadores não acometem apenas a mãe, também se manifestam na função paterna em relação aos atos de inscrição social e nomeação da criança, tais como o comunicado do nascimento à família, ou o registro em cartório para emissão da certidão de nascimento.

Quanto ao exercício da função materna no puerpério, Winnicott (1987, p.106) afirma: "A mãe, que talvez esteja fisicamente esgotada, e talvez incontinente, e que depende da atenção especializada do médico e da enfermeira em muitos e diversos aspectos, ao mesmo tempo é a única pessoa que pode apresentar adequadamente o mundo ao bebê de um modo que tenha sentido para este. Sabe como fazê-lo, não por tê-lo aprendido nem por sua inteligência, mas simplesmente porque é a mãe".

Ocorre que a função materna, justamente porque se exerce desde um saber inconsciente, só pode operar sob certas condições, condições estas freqüentemente afetadas na situação de internação do recém-nascido com risco de vida.

Se, por um lado, um neonato de risco necessita de uma série de cuidados médicos que não podem ser efetuados pela mãe e que ela desconhece (o que por si só já pode deslocá-la da posição de poder pôr em exercício seu saber inconsciente em relação ao bebê), a isto se soma o fato de que, quando se trata de um recém-nascido prematuro ou com patologias orgânicas, a mãe se encontra com um bebê cuja produção difere da conduta espontânea esperada em bebês sem patologia e nascidos a termo. Diante de tal diferença de produção, é freqüente uma mãe não conseguir armar leituras em relação ao bebê.

As duas condições citadas, geralmente superpostas na situação de internação, causam efeitos de fratura no exercício da função materna, dado que a mãe fica deslocada da posição de "saber fazer ali" com o seu bebê.

A intervenção que realizamos na sustentação da função materna não se restringe à passagem do "tempo de ver" para o "tempo de compreender" que permita elaborar uma versão parental quanto à internação do bebê, mas, acima de tudo, dirige-se a que a mãe possa começar a armar leituras quanto à produção de seu filho, pondo em ato esse saber nos cuidados dirigidos a ele.

Freqüentemente, as mães procuram dominar as informações fornecidas pelos aparelhos que mantêm a vida dos seus bebês, assim como a linguagem técnica que circula em sala de UTI. Trata-se de um esforço que ocorre na suposição de que o domínio desse "dialeto" lhes permitirá reencontrar-se com seus bebês e recuperar o lugar de saber sobre estes, assim como a responsabilidade por seus cuidados.

A tentativa de vir a recuperar por essa via o "lugar de mãe" do qual se sentem deslocadas evidentemente desemboca em um fracasso, pois os termos técnicos constituem um dialeto anônimo, igual para todos os neonatos internados, no qual se pode falar de órgãos e funções orgânicas, mas tal dialeto não diz nada sobre o bebê para uma mãe, nem dá à mãe as coordenadas da função materna desde as quais possa dirigir-se ao seu bebê. Essa é uma fala que terá de ser reconstruída desde outro âmbito e para a qual o conhecimento técnico não serve de prótese.

Quando as mães passam a sentir-se mais autorizadas, freqüentemente buscam aproximar-se de seus filhos a partir de esquemas pensados para bebês nascidos a termo. Ocorre que muitos desses esquemas resultam ineficazes com bebês prematuros ou acometidos de graves patologias. Apresenta-se então um ponto bastante delicado no armado da função materna, pois se, diante de tal dificuldade, os profissionais implicados realizam uma intervenção excessivamente diretiva, que mais uma vez se antecipa, dizendo à mãe como proceder, a mãe até pode interagir com seu bebê, mas continuará deslocada do exercício de sua função.

Por isso a intervenção que realizamos desde a clínica de estimulação precoce visa sustentar o armado de uma leitura da mãe quanto à produção do seu bebê que lhe permita realizar de um modo peculiar o exercício de sua função. É somente a partir desse exercício que ela poderá reconhecer as características que a prematuridade impõe e oferecer, nesse contexto, situações de prazer e contenção ao seu bebê.

A especificidade de nossa intervenção com bebês não se reduz a escutar os pais e a intervir nas representações do bebê que comparecem desde suas falas. Tampouco se trata de realizar uma espécie de "estimulação anônima" do bebê. Trata-se de uma intervenção na qual sustentamos em cena a realização de uma nova oferta parental reposicionada a partir da releitura da produção do bebê, ou seja, intervimos em relação a como este discurso se põe em ato com o bebê e lemos no bebê os efeitos disso.

Trazemos aqui um breve recorte clínico: uma mãe aproxima-se de seu bebê prematuro, abre a incubadora e o toca de modo intermitente, com breves palmadinhas nas costas. O bebê começa a realizar bruscas contrações e distensões musculares e a apresentar expressão facial crispada. A partir de nossa intervenção na cena e oferta de escuta, a mãe fala de sua leitura: "Ele não gosta que eu o toque". Marcamos que efetivamente ele não reagiu bem, mas que talvez do que não goste é de ser tocado desse modo, e que poderíamos encontrar outros modos nos quais goste de ser tocado. A mãe continua a dizer que o tocou assim por temor de que um carinho de maior contato pudesse machucar a pele frágil do bebê. A partir da intervenção, a mãe arma uma possibilidade de sustentação do bebê com um toque constante em suas costas. Com a nova oferta, o bebê se reorganiza e relaxa, e a mãe passa a ler sua sustentação como eficaz.

Vemos como o marco hospitalar interpõe diversas quebras e obstáculos no armado dos circuitos pulsionais que, quando tudo corre bem, uma mãe sustenta em seu bebê.

Por exemplo, a sustentação da lactância revela-se bastante problemática no contexto da internação de recém-nascidos em UTI: por um lado, porque a produção de leite está ligada a condições emocionais da mãe e freqüentemente se interrompe, dada a situação de angústia e ansiedade; por outro lado, porque, quando um bebê está impedido de ser amamentado por motivos médicos, geralmente o leite passa a ser extraído com aparelhos. Esta situação fica ainda mais agravada quando as mães nem sequer podem participar do momento em que esse leite chega ao bebê (e é ministrado por sonda). As mães revelam sentir "dor" e "incômodo com a fria temperatura do aparelho", algumas passam a "ter nojo do leite" acumulado no frasco de extração, acham sua "cor estranha", "como se estivesse estragado". "Cada vez que sento neste aparelho me sinto como uma vaca leiteira", afirma uma mãe. Tais falas denunciam os efeitos de quebra da sustentação simbólica da circulação desse objeto (peito/leite) entre uma mãe e seu bebê, que deixa de ser investido como objeto de dom ofertado ou negado pela mãe quando passa a ser regulado exclusivamente pelo anonimato institucional da extração de tantos mililitros da mãe e ministração de tantos mililitros ao neonato. Nada pode ser mais distante da cena prazerosa da amamentação.

Ainda que, em parte, a interposição na usual relação entre um bebê e sua mãe e seus efeitos na circulação dos circuitos pulsionais resulte inevitável no marco da UTI, as intervenções realizadas desde o serviço hospitalar podem chegar a favorecer a constituição de tais circuitos ou obstaculizá-los muito além do inevitável.

 

O RECÉM-NASCIDO INTERNADO EM UTI E A CONSTITUIÇÃO DOS CIRCUITOS PULSIONAIS

O neonato internado em UTI caracteriza-se por estar em uma situação de risco:

- Há um risco orgânico, pois, ainda que todo o desenvolvimento científico e tecnológico tenha permitido diminuir a mortalidade de neonatos que antes eram inviáveis, hoje em dia encontramos altos índices de morbidade resultantes das prolongadas internações.

Ao tratar-se de neonatos prematuros, a imaturidade na regulação da respiração e a própria imaturidade orgânica do pulmão dificultam a respiração e as trocas gasosas, sendo necessária a utilização de respirador e ministração de diferentes drogas. Mas, como o metabolismo implica delicadas reações em cadeia, a partir de tais intervenções torna-se difícil o controle da pressão arterial. A isso soma-se o risco oferecido pelos delicados vasos de irrigação cerebral de um prematuro. Em tal contexto, a possibilidade de ocorrência de lesões cerebrais por anoxias ou derrames é considerável.

Encontramos também problemas na regulação térmica, presença de vômito, distensões abdominais, perda de peso, além, é claro, de problemas aos quais todos os neonatos prematuros ou não ficam expostos na intervenção hospitalar, como infiltrações e necroses por injeções, formação de escaras na pele ou graves problemas posturais.

Durante toda a etapa inicial de intervenção médica com um neonato de risco procura-se chegar à estabilização do quadro clínico. Uma vez que esta é atingida, a grande preocupação passa a ser evitar possíveis quadros infecciosos e, se os pacientes em questão são prematuros de poucas semanas, possibilitar o "aumento da curva de peso" ou "engorde", que armará seu passaporte para a alta.

- Mas não é só no orgânico que se apresentam os riscos aos quais está exposto um neonato internado em UTI: os efeitos fantasmáticos no parental e as primeiras experiências de vida do bebê ocorridas na sala de internação também podem constituir riscos para o seu desenvolvimento e constituição como sujeito.

Podemos encontrar em bebês próximos à alta que foram internados por prolongados períodos o apagamento de certos aspectos constitucionais, tais como o reflexo de sucção. Sabemos que a sucção enquanto reflexa está condenada ao desaparecimento para todos os bebês, e se permanece é porque, desde o pulsional, passa a ser inscrita como uma fonte de prazer e, desde o cognitivo, se estabelece como uma experiência adquirida4. Mas se, a partir das primeiras experiências de vida, a boca não se instaura para um bebê como um lugar privilegiado na relação com o Outro Primordial5, encontraremos o apagamento da sucção prazerosa, o que, mesmo após a alta, vem instaurar dificuldades para que um bebê possa tomar as ofertas maternas realizadas nesse sentido.

Também é freqüente após prolongados períodos de internação o estabelecimento no bebê de um olhar vazio que não marca a preferência pelo rosto humano6, assim como uma acuidade auditiva pela qual se sobressalta por ruídos ambientais, mas que não reage de modo peculiar ao escutar a voz das pessoas implicadas em seus cuidados. Encontramos aí os primeiros traços de quadros que, se não são detidos a tempo, podem evoluir para uma evitação ativa do olhar e depois para uma auto-estimulação (primeiro é freqüente o chupar reiterativo da língua e somente mais tarde aparecem balanceios mais característicos de estados autísticos). Estas primeiras manifestações já apontam para um circuito pulsional no bebê que não articulou seu prazer ao circuito de demanda e desejo do Outro Primordial. Ao mesmo tempo encontramos que tais manifestações tendem a apresentar uma rápida e boa evolução a partir da intervenção específica junto ao bebê e à sua família.

Um bebê internado em UTI neonatal está submetido a uma superestimulação sensorial: excesso de luz, barulho ambiental acima do tolerável, constantes intervenções intrusivas para exames e medicação. Neste marco, uma vez mais levanta-se a interrogação pelo modo em que situamos o estímulo na clínica de estimulação precoce.

Diferentes trabalhos de pesquisa relativos ao entorno dos bebês em UTI apontam a importância de diminuir as "quantidades de estímulo", evitando o efeito de bombardeio sensorial e obtendo uma melhor e mais rápida evolução do bebê.

Por outro lado, trabalhos de interação mãe-bebê afirmam que "quanto mais" uma mãe estiver próxima do bebê, permitindo que ele possa sentir seu cheiro e escutar sua voz, melhor será sua evolução.

Ocorre que, para além do "aspecto quantitativo" do estímulo, devemos levar em conta o "aspecto qualitativo", que não se restringe apenas a uma quantidade estabelecida como benéfica por um signo de mais ou de menos (na ordem do "quanto mais mãe, melhor", ou "quanto mais estímulos sensorials, pior") que univocamente determina se é boa ou é má para o bebê a interação.

Quando situamos a importância do "aspecto qualitativo" dos estímulos no trabalho em estimulação precoce com bebês internados em UTI, apontamos a importância de intervir na constituição de ritmos, de ciclos de alternância presença-ausência como organizadores fundamentais para a atividade e primeiras inscrições que um bebê recebe.

O corpo de um bebê funciona como um "receptáculo temporal" às inscrições do fantasma materno, e é em função dessa captura - que se organiza sua postura e seu olhar. Assim, a organização do circuito pulsional do bebê não ocorre por maciços bombardeios de estímulos sensorials e tampouco pela presença permanente da mãe, mas justamente pela alternância presença-ausência com que a mãe responde à suposta demanda do bebê e pelo modo com que passa a demandar-lhe que este tome (não de qualquer modo) suas ofertas, inscrevendo os ritmos de seu funcionamento corporal (hora de dormir, hora de mamar etc). É somente a partir de ritmos de alternância situados por Outro em uma série simbólica que o corpo do bebê se organiza pela inscrição de um mapa erógeno peculiar de acordo com a letra do desejo materno.

"O corpo é aqui um receptáculo temporal, na medida em que, ao ser, em si mesmo, o campo destes ritmos próprios, torna-se capaz de recebê-los do exterior. Somente haverá competências na medida em que existir uma estrutura supondo a temporalidade ritmada das funções e de seu funcionamento" (Bergès, 1988).

Em sala de neonatologia não só há estímulos sensorials excessivos, como também, se não se sustenta o exercício da função materna, corre-se o risco de que não haja ninguém em posição de organizá-los em uma série, ligando-os a um circuito de desejo e demanda. Tornam-se estímulos desagregadores do Traço Unário porque são anônimos, porque não armam série erógena a partir do desejo materno.

Como podemos ver, a deserogenização à qual os corpos dos recém-nascidos estão submetidos durante a internação não diz respeito apenas ao que se faz aparente pelo apagamento das diferenças entre um neonato e outro, pelo fato de estarem nus e ligados a diferentes cabos que entram e saem de suas cavidades corporais, sem nenhum traço que os diferencie. Se pouco a pouco um bebê, antes nu em sua incubadora, começa a portar insígnias familiares (fotos, objetos, roupas coloridas) que fazem dele um bebê único, na medida em que a família possa ir ressituando-o como filho para além dos efeitos da internação, nossa intervenção não se restringe a operar com a ressignificação parental em relação ao bebê. Também nos dirigimos à organização e encadeamento (tanto quanto se faz possível no âmbito da UTI) dos estímulos que um bebê recebe, para que os diferentes aspectos constitucionais com os quais chega ao mundo, em lugar de ficarem absolutamente desfigurados, sirvam de base para o armado de suas primeiras aquisições e como engrenagens capazes de movimentar o exercício da função materna.

O que fica em jogo desde a internação até a alta da UTI é a inscrição de um neonato - desse mero "vivente" - como um bebê, com um nome que o unarize, com um desejo que marque seu - corpo e lhe outorgue suas primeiras experiências de prazer de um modo não anônimo. Trata-se de inscrições que não dependem da "sensibilidade" do médico, pois só desde os significantes parentais um neonato pode tornar-se o bebê de uma família.

É por isso que intervimos na UTI. Para que, enquanto ocorre a dura e fundamental tarefa de sustentação orgânica do recém-nascido por parte dos médicos e enfermeiras, não descuidemos daquilo que é capaz de dar sentido à vida desse bebê: a organização das primeiras experiências pelas quais está sendo marcado e também a ressignificação dos efeitos desagregadores que a situação de internação desencadeia na rede de representações parentais que armavam a recepção simbólica de um bebê e que estabelecem o marco para seu desenvolvimento e constituição como sujeito.

Em lugar de simplesmente esperar a chegada desses bebês aos consultórios ambulatoriais ou de clínica particular com possíveis sintomas já instalados em seu desenvolvimento, como clínicos em estimulação precoce nos dirigimos aos serviços junto aos quais pode ser realizada a detecção precoce e a intervenção quando se apresentam situações de risco, tais como a internação em UTI. Somente desse modo nossa prática clínica não ficará restrita à tarefa de procurar remediar o que já se apresenta inexoravelmente inscrito na constituição de uma criança.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Bergès, J. (1988). O corpo e o olhar do outro. Escritos da Criança, 2.         [ Links ]

Lacan, J. (1945). El tiempo lógico y el aserto de certidumbre anticipada. In Escritos 1.Buenos Aires: Siglo Veintiuno, p.187.         [ Links ]

Piaget, J. (1959). El nacimiento de la inteligencia en el niño. Espanha: Aguilar, 1972, pp.37, 38.         [ Links ]

Raimbault (-). El psicoanálisis y las fronteras de la medicina. Buenos Aires: Ariel.         [ Links ]

Spitz, R. (1965). El primer año de vida dei niño. Buenos Aires: Fondo de Cultura Econômica.         [ Links ]

Winnicott, D. (1931/56). Escritos de pediatría y psicoanálisis. Espanha: Laia.         [ Links ]

_____. (1971). Realidad y juego. Buenos Aires: Gedisa.         [ Links ]

_____. (1987). Los bebés y sus madres. Barcelona: Paidós, 2ª ed.         [ Links ]

 

 

Recebido em 05/2000.

 

 

1 Hospital público de Buenos Aires, Argentina, no qual trabalhei na função de clínica em estimulação precoce, em equipe com as psicólogas Maria Trindad Aranda e Mónica Pasaron.
2 Aqui "pai" e "mãe" são compreendidos como aqueles que sustentam a função paterna e a função materna em relação a um bebê e que não correspondem necessariamente aos seus progenitores biológicos. Em diferentes casos, e bastante freqüentemente ao se tratar de mães solteiras ou adolescentes, são, por exemplo, amigos próximos, avós ou parentes que podem vir a dar conta de tais funções.
3 Isso porque, como já deve ter ficado evidente a esta altura, na intervenção em estimulação precoce, além de se fazerem necessários conhecimentos específicos (relativos à maturação neuropsicomotora, às bases da inscrição de uma criança na linguagem e à sua constituição como sujeito cognocitivo), tomamos a psicanálise como a referência que atravessa nossa prática clínica.
4 Conforme o descreve Jean Piaget.
5 Define aquilo que, mesmo sendo externo ao bebê, ocupa um lugar central para que este venha a constituir-se como sujeito e que para um bebê fica encarnado nos pais.
6 Como Spitz (1965) aponta que é de se esperar em lactentes com mais de 1 mês de vida.