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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.5 no.8 São Paulo  2000

 

ARTIGO

 

Édipo de quarentena1. Escolarização da infância: a humanidade x (o ódio de) Édipo

 

Œdipus in quarantine

 

 

Marcia Simões Corrêa Neder Bacha

Doutora em Psicologia Clínica pela PUC-SP, professora do Mestrado em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), onde coordena a linha de pesquisa Psicanálise e Cultura, e autora de Psicanálise e educação. Laços refeitos, além de vários artigos publicados em revistas especializadas

 

 


ABSTRACT

Quem o adulto combate na guerra que trava com o infantil, tal como vemos nas teorias e práticas educacionais? A criança evoca um fantasma originário tão ameaçador quanto paradisíaco, e é nesse contexto inconsciente que a autora analisa sua escolarização, que seria uma espécie de quarentena para isolar o mal que ela portaria. Mas a relação mestre/ discípulo acorda o fantasma, que os vem assombrar, perturbando a ação educacional.

Criança; feminino; escola; educação; psicanálise; Édipo; professor


ABSTRACT

Against whom does the adult person fight concerning childhood matters as we see them in educational theories and practices? Children evoke an originary phantom just as menacing as it is paradisical. And it is under this unconscious context that the author analyses her schooling as if it were a sort of quarantine to isolate the evil she carries within. The master/disciple relationship, however, awakens the phantom who haunts them, thus disturbing educational action.

Child; feminine; school; education; psychoanalysis; O Edipus; teacher


 

 

INFÂNCIA, PARAÍSO PERDIDO?

"Emília ficou muito admirada de saber que Dona Benta já havia sido criança. - Mas então a senhora também já foi criança, das pequeninas? - perguntou. - Está claro, Emília. Que pergunta! - E tia Nastácia também?... Que interessante! Está aí uma coisa que nunca me passou pela cabeça. E ficou pensativa, imaginando como seriam as duas velhas quando criancinhas."
Monteiro Lobato,
"O caçula", Histórias de Tia Nastácia

Imagine o leitor a surpresa da Emilia se um dia viesse a saber que a criança continua a viver no adulto! Essa descoberta, segundo Freud (1925), teria tornado a criança mais importante do que os neuróticos para a pesquisa psicanalítica.

Talvez sobreviver fosse uma expressão mais adequada para descrever uma convivência que está longe de ser tranqüila. "Nossa amnésia infantil prova que nos tornamos estranhos à nossa infância", observou ele em 1913. Um educador, para sê-lo, deve transpor esse abismo e reconciliar-se com a infância, recomenda.

O adulto está em guerra com a criança, e nessa encruzilhada traça-se o destino da educação. "Reconciliar" é pôr fim ao conflito, estabelecer a paz. Em que condições e em que termos tal reconciliação seria possível? Já que, com muita freqüência, "o adulto odeia essa criança que traz dentro de si, procura massacrá-la com exigências estapafúrdias, e no fundo a teme, porque sabe que ela continua a desejar o que sempre desejou" (Mezan, 1998, p.58-9)?

A criança é vítima de um recalcamento universal, escreve Nicolas Abraham (1995b). "Recalca-se a Criança como se respira. Mal começamos, graças a Freud, a despertar para essa idéia. Aí reside o verdadeiro mal-estar da civilização" (p.304).

Desde já convém lembrar a distinção entre a criança da psicanálise e a criança da cronologia. Aquela é "a criança sempre viva com seus impulsos" que habita o "paraíso perdido de nossa infância pré-histórica" (Interpretação dos sonhos). "Civilização extinta", mas nem tanto, já que permanece no adulto, dando origem à "sensação esquisita" analisada pelo autor de "Algumas reflexões sobre a psicologia do escolar" (Freud, 1914): sua prontidão para obedecer à ordem recebida do antigo professor, como se o tempo não tivesse passado, e a criança não tivesse se tornado um velho.

A categoria criança em psicanálise, diz Silvia Bleichmar (1993), deveria ser precisada a partir de uma definição do originário. Originário ou infantil que Joel Birman (1997) define como um "tempo primordial marcado pela presença absoluta do trauma e da ameaça flagrante de morte" (p.32). Inicialmente identificado com o registro da sexualidade (desejo, processo primário, princípio do prazer, pulsão sexual), o infantil seria depois assimilado ao sinistro, ao desamparo do sujeito diante da força da pulsão.

A criança do educador não passa incólume pela ambigüidade do adulto em relação a essa que ele traz dentro de si, que ele odeia e teme porque "continua a desejar o que sempre desejou". Projetada, essa ambigüidade é determinante das concepções ou imagens que ele esboça da infância e com as quais pretende que ela se identifique em seu processo de formação. Um processo marcado pelo adultocentrismo, segundo Nicolas Abraham, para quem o adulto excluiria a criança, fazendo dela uma imagem de si, um projeto.

"De fato, vivemos sobre uma racionalização milenar, que se tornou um preconceito irremovível: a criança é um adulto em semente", que deve seguir as etapas prescritas por sua maturação para chegar ao mesmo tipo de seres que somos. "Essa antiga utopia da repetição beata, seja como fato pretendido, seja como fim espelhado, habita, não obstante algumas aparentes exceções, todas as ideologias religiosas, filosóficas, científicas ou políticas. Bastará, para se convencer disso, observar o destino que se dá à Criança: em todos os campos citados reina o adultocentrismo, a normatização pelo que já existe" (Abraham, 1995b, p.304).

Exumar essa criança recalcada "por todas as civilizações" é, para Nicolas Abraham, "a única revolução humana autêntica" (p.305).

Odiada, massacrada, temida e recalcada: que inimigo é esse que se apresenta como uma criança diante do adulto-educador? Talvez possamos descobri-lo nos restos mortais da criança ocidental.

 

OS FILHOS DE EVA

"Ai de ti, torrente dos hábitos humanos! Quem te resistirá? Até quando hás de correr, sem te secar? Até quando rolarás os filhos de Eva para o mar profundo e temeroso, somente atravessado pelos que embarcam no lenho da cruz?"
Santo Agostinho, As confissões

A criança não conheceu o Paraíso; a Criação privou-a da idílica cena primitiva. Livrou-a do pecado cometido pelo primeiro casal, do qual ela é apenas o fruto. Sua inocência foi reconhecida por Jesus ao tomá-la como modelo (em sua docilidade para deixar-se guiar?) para aqueles que aspiram a entrar em seu Reino: "Deixai vir a mim as criancinhas e não as impeçais, porque o Reino de Deus pertence aos que são semelhantes a elas" (Evangelho de São Marcos).

Ainda que inocente, seu destino não é a vida paradisíaca; filha de Eva, a que tentou o homem a pecar, deve expiar a culpa com seu sofrimento. Por sua filiação, nossa criança originária nasce culpada, destinada pelos adultos à crucifixão.

"A invenção cristã reserva um papel central de sofrimento" para o infantil. A "criança ocidental primogênita" surgirá presa "da equação pecado-dor-castigo, ou da equação mulher-pecado-criança, o que dá no mesmo. Sua vida é o testemunho e a prova irrefutável da queda: vida que precisa ser justificada, pelo sofrimento, para ser redimida e, só assim, ser passível de reconciliação com a perfeição. Do infantil, o cristianismo fez um ser faltoso e culpado, alguém que deve sofrer e expiar simplesmente por existir" (Corazza, 1999, p.41).

O "pecado da infância" e a "perversidade na puerícia" enchem Santo Agostinho de vergonha e culpa ao evocar sua infância em As confissões: "Por isso, Senhor, envergonho-me de contar, na minha vida terrena, esta idade que não me lembro de ter vivido (...) E se 'fui concebido em iniqüidade' e se 'em pecado me alimentou, no ventre, minha mãe', pergunto, Senhor e Deus meu, onde e quando esteve inocente este vosso servo? (...) Jazia eu, pobre criança, à beira deste abismo de corrupção (...) Que coisa houve mais corrupta aos vossos olhos do que eu? (...) Será esta a inocência das crianças?" (Agostinho, 400, I).

Culpada, abjeta em sua corrupção, a criança assim talvez permanecesse por toda sua infância, já que o batismo, sacramento destinado a purificá-la do pecado original, não ocorria em tenra idade, e o próprio Agostinho só foi batizado muito tarde em sua vida. Ao que parece (cf. Ariès, 1978), foi só a partir do final da Idade Média que o batismo passou a ser ministrado de forma significativa às crianças.

Não é só por sua origem que a criança é um ser do pecado. Sua natureza sensível faz dela um ser totalmente entregue às tentações: os sentidos são a porta de entrada da sensualidade, do prazer e das paixões ("Logo que viu o sangue [do gladiador], bebeu simultaneamente a crueldade"): "Sendo a saúde o motivo do comer e beber, o prazer junta-se a esta necessidade, como um companheiro perigoso (...). Muitas vezes não se vê bem ao certo se é o cuidado necessário do corpo que pede esse esforço do alimento, ou se é a voluptuosa e enganadora sensualidade que exige ser servida (...). Não receio a impureza do alimento, mas temo a imundície do prazer" (Agostinho, 400, X).

Dada a riqueza dos sentidos, o inimigo pode se apresentar sob os mais variados disfarces tentando a voluptuosidade dos olhos, da boca, do ouvido "da minha carne". "Todos os dias nos vemos investidos por estas tentações, ó Senhor! Somos tentados sem interrupção! Os louvores humanos são a fornalha onde cotidianamente somos postos à prova. Também nesta miséria nos ordenais a continência (...) Conheceis os rios de lágrimas que rebentam dos meus olhos! Ah! Dificilmente entrevejo até que ponto estou limpo desta peste" (Agostinho, 400, X).

É preciso mobilizar um exército para dominar a sensibilidade perigosa: "Sustento uma guerra cotidiana com jejuns, reduzindo o corpo à escravidão (...) E ouvi também outra palavra vossa: 'Não corras atrás das tuas concupiscências, e reprime a tua sensualidade"' (Agostinho, 400, X).

O santo não é o único a acusar seu ser infantil. Sua voz grave ecoará por longos séculos no coro entoado pela civilização ocidental até o início dos tempos modernos, cujo estribilho invariável será sempre o medo, a raiva e a desconfiança que os adultos sentem em relação à criança que pensam que um dia foram. Teólogos e pregadores multiplicarão imagens terríveis de Eva e seus filhos para advertir os homens do perigo que encarnam.

Durante séculos ela afastará de si os cuidados maternos, substituídos por amas mercenárias. E será objeto do infanticídio tolerado, que, segundo Ariès, embora fosse um crime severamente punido, foi praticado em segredo ou disfarçado como acidente até o fim do século XVII.

Em Descartes o aviltamento da infância surge sob a forma do ser irracional; sua degradação é sua intimidade promíscua com a imaginação e a sensibilidade, que a condena ao erro perpétuo. Se o homem erra, é porque antes foi, necessariamente, criança. A criança mama o preconceito junto com o leite de sua ama ignorante, diz o filósofo.

Ocasião do pecado, ocasião do erro: tanto para Santo Agostinho quanto para Descartes, a infância é algo de que devemos nos livrar como de um mal. Ascese difícil porque a maioria dos homens está condenada a permanecer presa à sua infância, seja por falta de caráter, seja por falta de inteligência. "Erro ou pecado, a infância é um mal" (Badinter, 1985, p.63).

E também um modelo de pureza a conservar, conforme Jesus já advertira no Evangelho e Rousseau o repetirá no século XVIII. Irracional, ilógica, primitiva "graças a Deus", poderíamos dizer: para ele a criança será um belo retrato da natureza ainda não maculada pela cultura.

Essa outra imagem ideal da criança, cujos traços são a pureza e a inocência, marcará a infância na modernidade. A publicação do Emílio (1762) foi um marco nessa história, inaugurando um reinado que desde então só se fortalecerá: o do Menino-Rei, da criança valorizada pela mãe, que agora será levada a amamentar o seu bebê e a libertá-lo de suas faixas.

Simples mudança nos costumes que aproximou a mãe do seu filho, permitindo que alguns vislumbrassem sua face de perigo (curiosamente, um dos sentidos atribuídos pelo dicionário a "perigo" é "mulher tentadora, provocante"). Tudo se passa como se, junto com a faixa, caísse um véu: perigosa é a mãe que, retirando os panos que cobriam seu filho, faz dele um ser sensível às suas carícias e ao seu afeto.

O contato amoroso assim propiciado prolonga aquele promovido pela amamentação que, cada vez mais, dispensará as amas-de-leite mercenárias. Prazeres ilícitos já condenados desde o início da era cristã por um Santo Agostinho flagelado pela volúpia: "Nada mais fazia senão sugar os peitos, saborear o prazer e chorar as dores da minha carne (...) Quem me poderá recordar o pecado da infância, já que ninguém há que diante de Vós esteja limpo, nem mesmo o recém-nascido, cuja vida sobre a terra é apenas um dia? (...) Em que podia pecar, nesse tempo? Em desejar ardentemente, chorando, os peitos de minha mãe? Se agora suspirasse com a mesma avidez não pelos seios maternos, mas pelo alimento que é o próprio da minha idade, seria escarnecido e justamente censurado" (Agostinho, 400, I).

Prazeres ilícitos aos quais, apesar de tudo, a criança estava exposta até então pela "temível promiscuidade dos criados" (Ariès, 1978, p.244) e que foi um argumento poderoso a favor da escola, mesmo entre os seus adversários (muito embora a própria escola tenha sido atacada como promíscua durante o século XVII): "Nada é mais perigoso para os costumes e talvez para a saúde do que deixar as crianças muito tempo sob a tutela dos criados de quarto'. 'Ousa-se fazer com uma criança coisas que se teria vergonha de arriscar com um rapaz'" (Cardeal de Bernis, século XVIII, citado por Ariès, 1978, p.144).

Essa preocupação já fora objeto da atenção sistemática de Gerson no século XV.

A escola, essa "espécie de quarentena", segundo Ariès - o que, dentre outras coisas, significa "abstinência sexual" -, torna-se, cada vez mais, uma obrigação que penetra, pouco a pouco, as classes sociais e as várias idades. Entre o bebê e o adulto introduz-se a etapa da escola, do colégio, meio de "isolar a juventude do mundo sujo dos adultos para mantê-la na inocência primitiva" e "de treiná-la para melhor resistir às tentações dos adultos" (p.232).

Em outros termos e conforme já o tenho afirmado em outras ocasiões (Bacha, 1996, 1998a, 1998b, 1999a, 1999b), a Escola surge como um meio de purificar a criança, de afastá-la desses adultos que insistem em considerá-la como uma boneca (é o caso das mulheres) destinadas a proporcionar-lhes prazer. É isso que alguns moralistas censuram nos pais do século XVIII.

Mas "quarentena" é também o "isolamento imposto a portadores ou supostos portadores de doenças contagiosas" (Dicionário Aurélio), como a raiva e o cólera... Pela hostilidade que provoca, não seria desse tipo a doença infantil? "O estado infantil é o estado mais vil e mais abjeto da natureza humana depois da morte", dirá Bérulle, chefe de um dos dois grandes movimentos pedagógicos do século XVII (citado por Badinter, 1985, p.60).

A infância é um mal do qual todo homem deve ser curado, e esse é um mote, quase uma divisa da nossa civilização. Não serão poucos a conjurar o perigo da infância, e talvez não seja outro o desígnio da educação escolarizada. A ela caberá o expurgo da criança em cada um.

Nas Règies de l'éducation des enfants (1687), argumentando sobre a necessidade de se amar as crianças e vencer a "repugnância" que elas inspiram ao "homem racional", Coustel escreve: "'Se considerarmos o exterior das crianças, feito apenas de imperfeição e fraqueza, tanto no corpo como no espírito, é certo que não teremos motivos para lhes ter grande estima. Mas, se olharmos o futuro e agirmos sob a inspiração da Fé, mudaremos de opinião'. Além da criança, veremos então o 'bom magistrado', o 'bom cura', o 'grande senhor'. Mas, acima de tudo, devemos lembrar que as almas das crianças, ainda impregnadas da inocência batismal, são a morada de Jesus Cristo" (citado por Ariès, 1978, p.140).

Olhar o presente com os olhos no futuro para não ver o passado, para não ver a criança que sobrevive em cada um de nós?... Olhar para a criança "como se fosse um adulto" para exorcizar o infantil, cegando-nos para nossas origens?

Ora, por que desejaríamos evitar um originário que, segundo dizem, seria nosso "paraíso perdido"?

 

MEDÉIA, A MÃE OGRA

"Por que como crianças boazinhas, por quê? Porque eu as amo tanto!"
W. S. Gilbert, The two ogres

Tal como seu fruto, a mulher "tem uma face de trevas" (Simone de Beauvoir). Ela "é o caos de onde tudo se originou e para onde tudo deve um dia retornar [...]. É noite nas entranhas da terra. Essa noite onde o homem é ameaçado de abismar-se, e que é o avesso da fecundidade, o apavora" (Simone de Beauvoir, citada por Delumeau, 1996, p.312).

A atitude do humano em relação ao "segundo sexo" sempre oscilou entre a atração e a repulsão, a admiração e a hostilidade, a veneração e o medo. "Essa ambigüidade fundamental da mulher que dá a vida e anuncia a morte foi sentida ao longo dos séculos, e especialmente expressa pelo culto das deusas-mães. A terra-mãe é o ventre nutridor, mas também o reino dos mortos sob o solo ou na água profunda. É cálice de vida e de morte. É como essas urnas cretenses que continham a água, o vinho e o cereal e também as cinzas dos defuntos" (Delumeau, 1996, p.312).

Todas as civilizações multiplicaram as figuras femininas demoníacas que encarnam a ambigüidade desse medo-fascínio soterrado em cada humano. Desde a Lilith dos sumérios até a nossa Eva, a mulher tem sido identificada como o demônio da sexualidade desenfreada, a tentação, a sedução, que introduziu na terra o pecado, a desgraça e a morte; mas também a vida e o prazer. Só entre os índios da América do Norte o mito da vagina dentada se apresenta sob mais de trezentas versões. Na índia em vez dos dentes ela está cheia de serpentes.

A genealogia perde-se no tempo. Circe, sedutora, transformou em porcos os companheiros de Ulisses e interrompeu sua viagem; Medéia matou seus próprios filhos; as Amazonas eram devoradoras de carne humana; Lâmia, divindade insaciável e pérfida, rapta e mata as crianças; a Medusa tem o olhar que petrifica os homens; as Erínias, ou Fúrias gregas, tem seus olhos injetados de sangue e terríveis aguilhões com afiadas pontas de bronze que submetem suas vítimas a sofrimentos atrozes; "assustadoras", "loucas" e "vingadoras", elas eram tão terríveis, que os gregos não ousavam pronunciar seu nome (Delumeau, 1996, p.313).

O medo do feminino não foi criado pelo cristianismo -muito embora ele tenha assombrado o mundo com esse fantasma até o século XX. Femina, diz o Malleus, vem de e minus, que significa "menos fé"; ela tem "'afeições e paixões desordenadas' que se desencadeiam na inveja e na vingança, os dois principais móveis da feitiçaria. É mentirosa por natureza, (...)" (Malleus maleficarum, citado por Delumeau, 1996, p.327).

Em todas as civilizações e em todos os tempos a mulher sempre foi fatal ao homem. Deve ter sido por isso que eles (e elas) as trancaram em casa...

No começo da Idade Moderna o Ocidente sai à caça da "filha mais velha de Satã"; acende o fogo purificador que queima milhares de mulheres acusadas de antropofagia, rapto de crianças, feitiçaria. '"A mãe ogra (Medéia é uma delas) é uma personagem tão universal e tão antiga quanto o próprio canibalismo, tão antiga quanto a humanidade' (W. Lederer). Inversamente, os ogros masculinos são raros. Por trás das acusações feitas nos séculos XV-XVII contra tantas feiticeiras que teriam matado crianças para oferecê-las a Satã, encontrava-se no inconsciente esse temor sem idade do demônio fêmea assassino dos recém-nascidos" (Delumeau, 1996, p.312).

Tendo chegado ao poder, o cristianismo repetirá, contra o outro sexo, as mesmas acusações de infanticídio e canibalismo que pesaram sobre os primeiros cristãos, cujas reuniões eucarísticas foram representadas por seus inimigos como "orgias incestuosas em que se matavam e se comiam crianças e em que se adorava um asno" (Delumeau, 1996, p.382).

A galeria psicanalítica das figurações imaginárias do feminino reserva um lugar de destaque para Jocasta, que violou a maior das fronteiras ao se deitar com seu filho, fundindo-se a ele numa prole desgraçada pelo incesto, que os precipitou na tragédia encenada por Sófocles.

Fantasia de relação genital "entre dois adultos, um dos quais seria filho do outro" que, para Conrad Stein e segundo Renato Mezan, não seria mais que "uma representação defensiva de um ato muito mais terrificante, que a rigor não pode ser sequer caracterizado como um ato: a liquefação de si na união com a mãe. Essa união seria mortal" (Mezan, 1995, p.118).

Modificando as noções de Édipo e castração, Conrad Stein cola o desejo do incesto e o horror do incesto, situando na volta ao ventre materno a imagem da dissolução de si, numa união cuja condição é a perda da individualidade. "O horror do incesto não vem do medo da castração, mas é tão primordial quanto o desejo incestuoso (...) O verdadeiro medo não é o do pai castrador, mas o da mãe devoradora: o horror do incesto equivale então ao medo da morte" (Mezan, 1995, p.117-8).

A mitologia grega contém inúmeras dessas fantasias infantis, incestuosas, edípicas, nas quais o filho é violentamente aspirado para o interior de sua mãe, onde desaparece para sempre. Devereux (1990) chama a atenção para Édipo em Colona, de Sófocles, que termina com Édipo engolido pela Terra-Mãe no final de sua vida.

E eis que o paraíso revela sua face de horror. Todo ser humano nasce no seio de um "matriarcado", onde devorar o seio e ser por ele devorado são apenas as duas faces de uma mesma moeda na economia psíquica.

Inferno. Paraíso. Ou ainda "falso paraíso", como escreve Nicolas Abraham, para quem o mito do paraíso perdido "serve para camuflar a deliciosa alegria de provar o fruto da árvore do saber" (1995b, p.165) e o prazer intenso que sentimos em abandonar o "falso paraíso" originário, onde vivíamos numa "unidade dual" com a mãe - "inocência" originária manchada pelo "crime da introjeção", que é o primeiro passo para a constituição de um Ego.

Em suas versões bíblica e psicanalítica, o que o mito das origens oculta "é a alegria de viver fora dessa morna felicidade paradisíaca, fora desse aquário climatizado, é a volúpia de morder essa maçã da ciência, é o prazer propriamente orgástico de se despertar a si e ao mundo, prazer que todos nós vivenciamos enquanto crianças, e que vivenciamos inclusive a respeito de experiências ditas más, já que elas permitiam nos encontrar" (Abraham, 1995b, p.121).

A "unidade dual" de origem opõe-se a qualquer imagem de plenitude (na mãe como no filho). "Há em nós um vazio de mãe. Um vazio de mãe em nós com um vazio de filho. O vazio com seu vazio formam uma unidade a que eu chamei de 'unidade dual'" (id., ibid., p.319).

Somos todos mutilados de mãe. Muito cedo a criança é arrancada da mãe e a unidade dual transforma-se em nostalgia sem esperança. "A mãe perdida é a mãe de tudo" (Abraham, 1995b, p.315). É a mãe de Édipo e do seu ódio sem fim: se vocês acreditam na imagem "de um Édipo galante, cavaleiro protetor de sua dama, amante ciumento de sua dama, homúnculo libidinoso de sua dama, percam as ilusões! O que o anima é o ódio, é a agressão (...). Onde passa Édipo, não brota nada. Desde que o mundo é mundo, inutilmente, a humanidade luta contra o ódio de Édipo" (id., ibid., p.316-7).

Conrad Stein diz que as "Erínias de uma mãe" vêm substituir o "sublime estado originário de criança ao mesmo tempo nascida e não-nascida". No lugar da "glória primordial que se supõe perdida por causa do nascimento" surge um laço de ódio inextinguível que unirá para sempre uma mãe e seu filho (Stein, 1988, p.65). '"Eu não posso ficar mais': todos os que não conhecem repouso e que, depois de Freud, persistem em acreditar que sofrem apenas por desejar sua mãe e querer suprimir seu pai, e que aspiram a ser libertados deste duplo pecado de intenção, não são eles na verdade perseguidos, exatamente como Orestes, pelas cadelas irritadas de sua mãe? E quem então conheceria o repouso?" (Stein, 1988, p.56-7).

Mutilada de mãe, sombra de uma mãe eclipsada, filha de Jocasta, de Epicasta (a Jocasta de Homero), de Eva ou de Medéia, tanto faz, a criança evocará sempre sua perigosa origem. Cravados para além dela, é a sombra de um outro ser que os olhos do adulto vislumbram; do ser com o qual foi um na origem e com o qual permaneceria umbilicalmente unido pelo ódio. O Édipo de Stein é criança odiada, rejeitada e condenada ao trauma de saber que nasceu de uma mãe, das "Erínias de uma mãe".

Seja raiva, cólera ou doença venerea (não são, o amor e o ódio, as duas faces de uma única moeda?), o fato é que o mal de Édipo parece contagioso. Senão, por que toda uma civilização iria destiná-lo à quarentena escolar? Encerrando Édipo no seu santuário moderno, o Ocidente confinou seu ódio e sua agressividade ao terreno da disputa intelectual.

 

QUARENTENA ESCOLAR: ABORTAR O INFANTIL E QUEIMAR O FEMININO?

Não por acaso assistimos a uma verdadeira cruzada realista avançando pelo campo escolar. Cada vez mais pedagogos alistam-se nesse exército, combatendo o inimigo poderoso e resistente. Podemos observá-los, indignados - e bem antes do sucesso da nossa Tiazinha -, atacando o tratamento de "tia" utilizado pelas crianças nas relações com seus professores.

Glória Mendes (1994) considera "hipócritas" escolas e professores que permitem serem chamados de "tias" e "tios", pois assim usurpam o lugar de um outro, "deslocando e deformando o lugar de ensinar". Segundo essa pedagoga, a criação de tal elo irreal de parentesco ocorreria porque grande parte dos educadores tem dificuldade em aceitar a "realidade", segundo a qual "não existe aluno sem família". Irrealidade que Paulo Freire teria combatido em seu artigo "Nós podemos reinventar o mundo", em que afirmava a importância de denunciar "a armadilha ideológica" oculta "por trás dessa simples palavra" - "tia" -, que tira "dela o dever de ensinar e ser professora" (Mendes, 1994, p.62-4).

Perseguindo o suspeito sob todos os seus disfarces, os cruzados da realidade e da racionalidade também fustigaram os heréticos contos de fadas do templo escolar.

Segundo Marly Amarilha em Estão mortas as fadas?, os professores teriam sido tomados pela síndrome de Sherazade porque reconheceriam na literatura um instrumento poderoso de controle da criança, desconhecendo-a como objeto de prazer e de desejo. Os contos de fadas teriam sido atacados nas últimas décadas porque seriam "textos depositários de valores conservadores e alienantes, portanto, impróprios para as crianças" (Amarilha, 1997, p.60).

Desaparece a dimensão evocativa da linguagem, proibida de fazer sonhar.

Banindo os vôos da imaginação, o fogo purificador queima as bruxas e suas vassouras. Afinal, se o maternal fosse apenas o paradisíaco, por que a valorização do professor seria tanto menor quanto mais ele se aproxima dos seus domínios?

A imago materna é, "ao mesmo tempo garantia de vida, de calor e de alimentação, e foco de poderes obscuros e ameaçadores, que se traduzem por uma capacidade de absorção indefinida e destruidora de todos os limites. Nos contos populares, esta divisão da imago materna aparece sob a forma da mãe e da madrasta, da boa fada e da bruxa". A separação da entidade materna em representações antagônicas protege da angústia do informe que é inseparável do desejo pela mãe. Isso porque este desejo é necessariamente acompanhado pelo desejo de retornar ao ventre (Mezan, 1985, p.530-1).

Na última opinião de Freud sobre a questão da feminilidade, "o homem e a mulher, um e outro de constituição bissexual, são dominados, cada um à sua maneira, por sua recusa da feminilidade" (Stein, 1997, Prefácio). O feminino é, então "o 'recalcado por excelência'" (Freud citado por André, 1996, p.11).

No seu santuário Édipo será submetido a rituais purificadores que vão consolidá-lo em sua posição matricida. Desembainhando a lógica fálica, ele poderá exercer sua agressividade através da atividade intelectual, chegando a despojar-se de tudo que possa evocar aquela na qual pode se desvanecer.

A ilusão de autarcia protege-o de um mal perigoso como o das doenças sexualmente transmissíveis. O mundo do by yourself cria uma barreira sólida como a outra, feita de crucifixo e alho para isolar a vítima do vampiro apavorante que vem sugar sua alma.

Não surpreende que a autonomia da criança na escola tenha sido crescentemente valorizada ao longo de um século que prima pelo ataque ao feminino. No século XX, hordas de mulheres se emancipam, revelando-se tão ativas e viris quanto os homens. Esse é o crime de Nora, a personagem principal da Casa de bonecas do norueguês Ibsen, que abandona a família para viver sozinha, dizendo ao marido que vai educar-se a si mesma.

O crime de Nora é o crime das mulheres do século XX, que irrompem no domínio público derrubando as barreiras domésticas em que foram confinadas. Ela é diferente daquelas outras duas grandes mulheres da literatura universal que são Emma, ou Madame Bovary, e Ana Karênina.

Todas elas foram paridas por homens na segunda metade do século passado. Mas, enquanto Emma e Ana cometem o mesmo crime - são adúlteras -, o crime de Nora é outro, bem mais grave. Ela viola a interdição do espaço público que pesa sobre as mulheres. Ela abandona a casa de bonecas, deslocando-se da posição passiva de objeto para ser sujeito da própria vida. Nora declara guerra à feminilidade.

Uma guerra que Anaïs Nin também travou na primeira metade do nosso século, registrando em seu diário: "Que tortura querer ser homem".

Essas Noras viverão de modo doloroso suas atividades sublimadas, ou sua inserção no domínio público. Sua profissão será vivida com a mesma culpa de Ana e Emma, isto é, como uma infidelidade conjugal. Para dizer de modo resumido e conforme li em algum lugar: os homens trabalham, as mulheres abandonam a família.

Ana e Emma punem a sua infidelidade com o suicídio. Ana se deixa esmagar embaixo das rodas de um trem. Emma envenena-se, definhando numa lenta agonia diante do leitor.

Nossas Noras não vão se impor penas mais brandas por desertarem de suas casas de bonecas. Atacarão sua feminilidade no seu próprio seio - numa patologia da mama - e no seu coração. Os médicos consideram o infarto agudo do miocárdio e o acidente vascular cerebral doenças tipicamente masculinas e observam o aumento de sua incidência sobre as mulheres neste século de sua emancipação.

Esse conflito com a feminilidade torna-se agudo no século XX e a educação escolarizada, evidentemente, não permanecerá indene a ele.

Mas, apesar de todas as precauções e de todas as medidas exortatórias, a sedutora perversa consegue furar o isolamento, atrapalhando a quarentena de Édipo. O professor-Eva acorda o fantasma originário, seja ele a "unidade dual", a "sedução originária", o "Édipo originário" ou a "cena primitiva".

 

O SABER DE ÉDIPO, MATRICIDA

"A sabedoria e a ignorância são como os alimentos úteis ou nocivos. Podem-nos ser apresentados com palavras polidas ou com rudeza de forma, como os bons e maus alimentos nos podem ser servidos em pratos finos ou grosseiros"
Santo Agostinho, As confissões, V

E Deus disse: quem comer da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal morrerá. Mas a serpente-tentação cochichou no ouvido da mulher que eles não morreriam; seus olhos se abririam e eles se transformariam em deuses. Eva come o fruto e o dá ao marido; Deus diz: "O homem se tornou como um de nós" agora que conhece o bem e o mal. Por terem desobedecido a Deus comendo o fruto da árvore proibida, homem e mulher foram castigados. Sua desobediência valeu à humanidade a expulsão do Paraíso: toda a espécie humana ficou marcada pelo pecado original.

Por toda a eternidade a mãe-Eva seguirá oferecendo o seu fruto, despertando a voracidade dos seus descendentes numa "experiência de satisfação", que para Freud é a metáfora do surgimento do desejo. A vergonha e a culpa de Santo Agostinho ao se lembrar da avidez com que ele próprio desejou, em sua infância, o fruto proibido, são bastante eloqüentes.

Crime inaugural para o qual a relação mestre-discípulo remete, a introjeção do seio é o primeiro passo para a constituição do Eu, advindo daí o seu caráter pecaminoso segundo Nicolas Abraham. Nas origens da humanidade, nas origens da nossa humanidade, uma mãe-Eva oferece o fruto proibido incitando a espécie ao pecado originário. Como um fantasma, o crime da introjeção, a sedução originária, o Édipo originário, assombram o humano em sua educação.

Para "o influente filósofo Filão, o Judeu, que viveu aproximadamente à mesma época que Cristo" e interpretou a Queda do Homem e sua expulsão do Paraíso, Adão encarna a razão, desencaminhada por Eva, que encarna a sensualidade (Gay, 1988, p.111).

No De magistro (Do mestre, de 389), o diálogo que mantém com seu filho Adeodato, Santo Agostinho diz que é preciso "que não apenas se creia, mas também se comece a compreender com quanta verdade está escrito nos livros sagrados que não se chame a ninguém de mestre na terra, pois o verdadeiro e único Mestre de todos está no céu" (Cap. XIV). Muitos séculos adiante, Santo Tomás de Aquino voltará à mesma questão no seu próprio De magistro (1257).

Deus é o único Mestre. Só Ele pode ensinar. Seria essa a origem do "impossível" atribuído por Freud à educação?

Embora esteja proibido de conduzir seu semelhante ao conhecimento, o humano cria a Escola e se faz mestre. Templo consagrado a idolatrar nosso deus Logos, ela repete o crime inaugural. A educação escolarizada evoca esse originário feito de culpa, desejo e prazer.

Do seu altar o sacerdote-professor tenta os fiéis discípulos iniciando-os no crime. Professor-serpente, professor-Eva, desperta-os para o prazer de saborear a maçã do conhecimento e de realizar o que Stein (1988) chama de "matricídio impossível".

Como Fausto, o bispo dos maniqueístas, "culpado" por ter iniciado Santo Agostinho na doutrina proibida. "Grande laço do demônio", porque "seduzia a muitos por meio da sua melíflua eloqüência", Fausto oferecia o "alimento da ciência" como um "manjar", servindo suas "iguarias" em "bandejas" (Agostinho, 400, III e V).

Adão e Eva, Prometeu, o outro Dr. Fausto - o do Ocidente moderno - contam a história do conhecimento proibido. Os que desobedecem à proibição são perseguidos por castigos terríveis. Daí o caráter esotérico (o oposto de exotérico) do conhecimento em sua transmissão escolástica, que, por seu hermetismo, torna-o acessível a apenas uns poucos iniciados, aliviando, talvez, a culpa pela transgressão.

Édipo, incitado pela Esfinge ao crime de conhecer, acabou perseguido pelas Erínias de uma mãe. "Decifra-me, ou te devoro", diz a "fêmea ávida de amor" que é a Esfinge nas versões primitivas (cf. Mezan, 1985, p.539, n.97) e que, segundo Conrad Stein, é uma figura que encarna a feminilidade monstruosa que cada um traz em si, reprimida. Como Édipo, todos quereríamos perseverar na cegueira para essa mãe monstruosa, perversa sedutora irreconhecida. Cegos para o desejo matricida.

Cativo do enigma como Ulisses do canto das sereias, o estrangeiro desvenda os segredos do monstro, que morre por isso atirando-se do rochedo. Jocasta também se enforcou, observa Conrad Stein, porque Édipo descobriu o segredo da sua maternidade. Aquela cujos desejos foram devassados, conhecidos, perscrutados, deve morrer. Qualquer que seja "Ela". Édipo é o conquistador "na medida integral em que seus atos realizam e ocultam ao mesmo tempo o impensável desejo de Orestes, o matricida" (Stein, 1988, p.31).

Perigoso e atraente, o saber mata a mãe. Por que, então, deveríamos acreditar (ou desejar) que Édipo não claudicaria ao longo do seu trajeto escolar?

 

VEM AQUI, DECANTADO ULISSES, ESCUTAR NOSSA VOZ...

Circe fez Ulisses descer à úmida região do Hades e ensinou-o a falar com os mortos. Nesse lugar inacessível aos mortais, o herói encontrou "a mãe de Édipo, a bela Epicasta, a qual, em sua ignorância, praticou um crime horroroso: casou-se com seu filho. Este, depois de ter assassinado o pai, tornou-se o marido de sua mãe". Os deuses revelaram o crime aos homens, impondo a Édipo males cruéis. "A rainha, essa baixou à morada de Hades, de portas solidamente fechadas, depois de, no paroxismo da dor, ter atado um laço a uma elevada trave de seu palácio, deixando em herança a seu filho os inúmeros tormentos que as Erínias de uma mãe são capazes de suscitar" (Homero, 1981, XI).

Guiado pela "deusa terrível dotada de voz humana", Ulisses realiza sua "empresa mais arriscada", segundo lhe diz a alma de Aquiles por ele interrogada. "Como ousaste baixar à morada de Hades, onde habitam os mortos insensíveis, fantasmas de homens que tanto penaram?" (Homero, 1981, XI). Encontra-se também com a alma de sua própria mãe, Anticléia, que ele não sabia morta. "Arde em desejo" de abraçá-la, num desejo impossível de ser concretizado, já que ela esgueira-se de suas mãos "como se fosse uma sombra ou um sonho", e isso lhe provoca "intensa dor".

Finda essa primeira provação - a evocação dos mortos -, explica-lhe Circe, ele ainda terá de passar pela "região das sereias, cuja voz encanta todos os homens que delas se aproximam. Se alguém, sem dar por isso, delas se avizinha e as escuta (...) ficará cativo" do seu canto harmonioso. Em volta delas amontoam-se "as ossadas de corpos em putrefação, cujas peles se vão ressequindo". Mas, ensina a deusa, Ulisses deve prosseguir sem parar, tapando as orelhas dos seus companheiros "com cera doce como mel amolecida (...) para que nenhum deles possa ouvi-las. Tu, se quiseres, ouve-as; mas, que em tua nau ligeira te atem pés e mãos, estando tu direito, ao mastro, por meio de cordas para que te seja dado experimentar o prazer de ouvir a voz das sereias. Se acaso pedires e instares com teus homens que te soltem, que eles te prendam com maior número de ligaduras" (Homero, 1981, XII).

As sereias então "entoaram este harmonioso canto: 'Vem aqui, decantado Ulisses, ilustre glória dos aqueus; detém tua nau, para escutares nossa voz. Jamais alguém por aqui passou em nau escura, que não ouvisse a voz de agradáveis sons que sai de nossos lábios; depois afasta-se maravilhado e conhecedor de muitas coisas, porque nós sabemos tudo (...) que acontece na nutrícia terra'. Assim elas cantavam, e suas magníficas vozes inundavam-me o coração com o desejo de as ouvir, (...)" (Homero, 1981, XII).

O que seria da Odisséia se Ulisses tivesse recuado diante dessas provações? Ainda seria o herói homérico, se o medo do cativeiro o tivesse ensurdecido para essas "vozes magníficas" que sabem tudo "que acontece na nutrícia terra"? Em que se transforma a educação quando seus protagonistas fogem da obscura região dos seus fantasmas e resistem ao canto das sereias?

De nossa parte, estamos longe de exortá-los a se despojarem desses espectros que vêm assombrá-los na escola e de exigir que se dispam de fantasias que supostamente usurpariam. O próprio da psicanálise é analisar - e não julgar - os desejos inconscientes. É ouvir esses desejos, e não tapar os ouvidos com a cera da crítica.

Quem melhor que o analista para fazer o professor dialogar com os fantasmas que a relação transferenciai acorda? Como Circe, ele pode ajudar o professor a escutá-los, pois conhece sua língua e seus hábitos de vida, levando-o a triunfar sobre as resistências suscitadas no discípulo (e nele próprio) pela relação transferenciai.

Sem o quê, essas resistências poderiam edificar um poderoso arsenal defensivo, já que o professor não está obrigado, por dever de ofício, nem à análise pessoal nem à neutralidade. Submetido a uma transferência que não pode analisar, sua posição não parece confortável: "Eu queria adquirir um controle para não meter a mão na orelha do aluno que faz gracinha", disse uma professora. Outro desabafou: "Se eu (como aluno) agüento tudo isso, por que eles não podem agüentar? Eu sinto que é isto, a gente (o professor) quer se vingar". Um terceiro: "Eu quero métodos para agir com o aluno, com o quadro, para saber como devo me comportar, para entender o comportamento do aluno e para aprender a controlar a turma".

Escutar as metáforas, que sempre contêm o sinal do inconsciente e habitam tanto o terreno epistemológico quanto o campo pedagógico. Eis a proposta da psicanálise do conhecimento objetivo de Gaston Bachelard, que dedicou parte significativa de sua obra ao perigoso poder de domínio que o imaginário exerce nos territórios da ciência e da educação, em que se manifesta sob a forma de obstáculos - obstáculos epistemológicos e obstáculos pedagógicos. "É no pormenor da pesquisa objetiva que vamos mostrar a resistência dos obstáculos epistemológicos. É aí que vamos ver a influência da libido" (Bachelard, 1996, p.226).

Os textos dos alquimistas são generosos em tais obstáculos. Esses ancestrais longínquos da química projetam sua sexualidade inconsciente nas experiências que realizam, de modo que o "seu" mercúrio sofre de complexo de castração e de Édipo (ele corta a cabeça do rei para conquistar o seu reino) e entre os "seus" metais há diferença de sexos e relação sexual. Os alquimistas não se defendem muito bem das tentações sexuais; para um psicanalista seus textos indicam claramente indecências e é exatamente por serem assim impuros que eles prescrevem a purificação, escreve o "músico das imagens".

Deparando com o obstáculo na sala de aula, Bachelard fez, como Freud, do adversário um aliado. Diante de uma experiência nova, um espírito em formação mostra, em primeiro lugar, pensamentos sexuais: numa reação química entre dois corpos diferentes, um vira macho e outro, fêmea. "No ensino da química pude constatar que, na reação do ácido com a base, quase todos os alunos atribuíam o papel ativo ao ácido e o papel passivo à base. Num breve exame do inconsciente, logo se percebe que base é feminino e ácido, masculino. O fato de o produto ser um sal neutro não deixa de ter uma repercussão psicanalítica." O caminho da interpretação objetiva está totalmente fechado, mas o caminho da interpretação psicanalítica está totalmente aberto (Bachelard, 1996, p.240).

A resistência oposta pelos obstáculos faz da educação uma luta e da instrução uma polêmica. Bachelard transformou isso que resiste ao trabalho do pensamento no motor do seu ensino. "A psicanálise pode declarar o inconsciente como um carcereiro obtuso: vigiando sempre seu segredo, o inconsciente acaba por mostrar o lugar onde ele se esconde" (Bachelard, 1977, p.82). O professor instruído pelo surracionalismo ensina por objeções, por uma demolição sistemática do erro, e por uma psicanálise das metáforas que impregnam o conhecimento objetivo. Para descobrir, o aluno primeiro tem que dizer "não" a um erro anterior. Para ensinar bem é preciso, antes, analisar o obstáculo - tanto no aluno quanto no mestre.

A prática pedagógica deve inquietar a razão, o que "não deixa de ter uma ponta de sadismo" e de desejo de poder. "Na vida cotidiana também gostamos de amolar o próximo" e quem faz charadas é um bom exemplo. "Quase sempre o enigma à queima-roupa é a desforra do fraco sobre o forte, do aluno sobre o professor. Propor um enigma ao pai não é, na inocência ambígua da atividade espiritual, satisfazer o Complexo de Édipo? Reciprocamente, a atitude do professor de matemática, que se mostra sério e terrível como uma esfinge, não é difícil de psicanalisar" (Bachelard, 1996, p.304).

A análise das resistências suscitadas pela relação mestre-discípulo incluem, evidentemente, o analista debruçado sobre a educação. Talvez lhe coubesse aceitar um pacto semelhante ao proposto por Ulisses antes de se desnudar diante de Circe: "Circe, como podes exortar-me a ser amável para contigo, que em tua morada metamorfoseaste meus companheiros em porcos, e que, retendo-me aqui, maquinas um pérfido plano, convidando-me a penetrar em teu aposento e a subir a teu leito? Queres que me desnude, para me privar da força e da virilidade; mas eu não consentirei em fazer-te a vontade, a não ser, ó deusa, que te obrigues por solene juramento a não me tecer nova cilada" (Homero, 1981, X).

Juramento que o analista renova submetendo à análise o seu próprio inconsciente e as suas resistências à situação pedagógica. Afinal, quantas outras atividades representariam com o mesmo capricho a perversa sedutora, aquela que jamais sai de cena sem deixar como herança para seu filho "os inúmeros tormentos que as Erínias de uma mãe são capazes de suscitar"?

 

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1 Diferentes partes desse texto foram apresentadas na Câmara de Vereadores de Campo Grande ("O feminino na cultura"), no Conselho Regional de Psicologia - CRP/14 ("O feminino no século XX") e no III Fórum de Psicologia em Cardiologia/5º Congresso Centro-Oeste de Cardiologia ("A feminilidade").