SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.5 número8Do drama cantado à dança da bundinha: brincar é fazer de conta que é adulto?Um lugar para falar... índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.5 no.8 São Paulo  2000

 

ARTIGO

 

O desenvolvimento psicomotor diante da modernidade

 

The psychomotor development in the modernity

 

 

Esteban Levin

Psicomotricista, psicanalista. Diretor da Escuela de Formación en Clínica Psicomotriz de Buenos Aires. Professor convidado da Universidad de Buenos Aires e da Universidade Federal de Fortaleza

 

 


RESUMO

Neste artigo, procuramos interrogar-nos a respeito da problemática que a cultura atual apresenta sobre a imagem do corpo, a organicidade, a deficiência e o desenvolvimento. Conceitos que consideramos fundamentais para compreender como se estruturam os pontos de encontro e enlace entre a estruturação subjetiva e o desenvolvimento psicomotor da criança.

Interdisciplina no desenvolvimento infantil; problemas de desenvolvimento na criança; sintomas na infância; modernidade


ABSTRACT

In this paper the author makes questions about the body image, the orgnicity and development Fundamentl concepts to understend how the metting ponts between subjetive structuration and the pshycomotor development work.

Interdiscipline in children's development; developmental problems; symptoms in childhood; modernity


 

 

Não acreditamos que o corpo continue sendo corpo se lhe tiramos sua imagem, ou seja, seu véu..."

Propomo-nos aqui a refletir sobre diferentes cenas e cenários da infância, nas quais a criança se reconhece, existindo em suas produções corporais e não apenas em seu crescimento e em sua maturação psicomotora.

Interessa-nos destacar a importância estrutural dessas cenas como verdadeiros pontos de encontro entre a estruturação subjetiva e o desenvolvimento psicomotor. É importante que nos detenhamos brevemente na problemática do eixo do corpo na primeira infância.

 

O EIXO DO CORPO

A temática do eixo corporal nas crianças pequenas remete-nos diretamente a interrogar-nos sobre o papel da postura e da representação no desenvolvimento psicomotor de um sujeito.

Acreditamos que a primeira postura, o primeiro eixo corporal, organiza-se e delimita-se a partir do toque e da postura do Outro materno. É nessa cena de diálogo tônico-gestual e corporal que o recém-nascido sustentará não apenas seu corpo, mas também sua imagem. Nesse cenário simbólico, os movimentos arcaicos do bebê serão tomados como gestos, o amamentar será tomado como um ato de amor, o grito será transformado em chamado e a gestualidade reflexa se configurará como um dizer. Nessa verdadeira metamorfose corporal e gestual, o eixo corporal começará a funcionar como representação e como lugar em que se instala o desejo do Outro.

A idéia de eixo corporal remete-nos ao que se perguntava Diderot no século XVIII: "Se lhe perguntamos o que é um corpo, você responderá que é uma substância, um volume impenetrável, figurado, colorido e móvel. Mas separe desta definição todos os adjetivos. O que restará para este ser imaginado que você chama de substância?"

O eixo do corpo é um pólo integrador das funções cinestésicas e labirínticas, que ordena o corpo ao promover o equilíbrio em relação à posição postural, espacial e temporal.

A sensibilidade cinestésica reflete a posição do corpo em relação à força da gravidade. O que marca a importância dessa sensibilidade na orientação e no equilíbrio do corpo no espaço.

O sentido cinestésico do equilíbrio postural (sensações correspondentes aos músculos, às articulações e aos tendões) junto com o órgão do equilíbrio localizado no ouvido interno determinam o modelo neuromotor da orientação e do equilíbrio corporal, dando lugar à função do eixo.

O eixo do corpo em sua função de receptáculo (parafraseando Jean Bergès) transforma-se em um operador fundamental para o desenvolvimento psicomotor e para sua constituição subjetiva. Nas crianças pequenas, o efeito de apaziguamento gerado pelos movimentos de embalar e movimentar que o Outro realiza acompanhado pela sua voz (canção de ninar) abre o caminho para o que inteligentemente Dupré chamou de "o lado negativo da motricidade" (o relaxamento).

O ritmo do impulso motor é delimitado por um estado de contração muscular (o lado positivo da motricidade) e um estado de distensão (o lado negativo da motricidade); entre essas variações tônicas motoras e suas referências posturais (em especial, em relação com o eixo corporal) oscila a motricidade de um sujeito. Deste ponto de vista, o lado "negativo" da motricidade não é a passividade, mas o que nomeia a síncopa, o silêncio necessário para que o movimento se organize em um ato gestual.

Tanto os estados de tensão permanente (as paratonias) como os estados de hipotonia generalizada situam a impossibilidade do desdobramento psicomotor, especificamente no concernente ao ritmo do impulso motor necessário para o "exercício" de seu funcionamento e do fazer significante.

As crianças com sintomatologia psicomotora nos "fazem ver" a queda, o desmoronamento do eixo corporal, dramatizado em sua desorientação espacial sem limites representativos nos quais sustentar-se para situar-se e diferenciar-se. Em parte, esta é a demanda que a criança enuncia nesse singular "fazer-se ver" na relação com o olhar do Outro.

O impulso motor desprende-se da postura. A partir disso, o eixo do corpo se configurará como a "coluna vertebral" do postural.

Esse primeiro eixo corpóreo é ritmado pelas presenças e ausências que o Outro materno demarca em seus cuidados periódicos, nas trocas e giros posturais que realiza com o recém-nascido, nos jogos e imitações corporais, no manejo do corpo. Tudo isso produz como efeito sensações cinestésicas e labirínticas que se incorporam e ressoam no bebê como uma primeira musicalidade estética, um ritmo que marcará o encontro-desencontro com o Outro.

O impulso motor de um sujeito, em seu correspondente tônico, responderá a esse ritmo "estético" delimitado pelas presenças e ausências, abrindo o caminho à representação, que, deste modo, ficará ligada ao eixo do corpo em sua função de receptáculo do toque, do dizer e do movimento que o Outro imprime no corpo.

Nesse sentido, o ritmo periódico e melódico (limitado pelo lado negativo, silencioso da motricidade) do movimento corporal tem uma "sonoridade" musical que institui um tempo: o tempo orientador no encontro com o Outro que marcará o impulso motor do infans e, por que não?, sua temporalidade.

O domínio da motricidade estrutura-se, em grande medida, a partir desse laço com o Outro que transforma o movimento em gesto e em imagens lúdicas. O sistema motor fica assim limitado pela dimensão psíquica que constitui a direcionalidade e a orientação do sistema. Daí o psicomotor.

 

O EIXO DO CORPO EM CRIANÇAS COM SEVEROS TRANSTORNOS NEUROLÓGICOS

Em crianças com deficiências múltiplas ou com transtornos neurológicos, o eixo do corpo transforma-se em um operador fundamental no encontro-desencontro com o Outro. Muitas vezes, o discurso parental sobre o eixo corporal demonstra a impossibilidade ou dificuldade de relacionar-se com a criança. Por exemplo: "Não sei como pegá-la, tenho medo de machucá-la", "É tão molinha, que é melhor não tocá-la muito", "Eu não posso tocá-la", "Eu e meu marido achamos que ela é dura por causa da doença, não podemos fazer nada", "O médico nos disse que ela é assim por causa da patologia, com isso não se pode brincar", "Ele será sempre meu bebê, porque não se sustenta e não vai caminhar".

As dificuldades próprias do transtorno neurológico entrelaçam-se e encontram-se com as imagens que cada pai faz da patologia de seu filho. Se predomina a patologia, eclipsa-se a criança como sujeito, e ela aparece como objeto que representa uma e outra vez a patologia. Se prevalece o sujeito criança, o pequeno terá de se representar apesar da patologia e para isso necessita que seus pais transformem-se em espelho de sua imagem, e não do órgão.

Uma de nossas funções na clínica com essas crianças portadoras de graves transtornos neurológicos será possibilitar a elas construir sua imagem corporal e, em relação aos pais, permitir que eles possam reconhecer-se em seus filhos, ou seja, restabelecer a filiação.

Se, na clínica, tomamos as crianças como objetos a reparar, a reeducar, a exercitar ou a estimular, corremos o risco de perder a dimensão subjetiva, e com ela a possibilidade de atar seu desenvolvimento psicomotor (e, portanto, o eixo corporal) ao cenário estruturarite da constituição de um sujeito. É nesta direção que propomos nossa técnica e estratégia clínica. O eixo do corpo não se move, é a partir dele, de sua função estrutural, que a motricidade articula-se e ordena-se como representante de um sujeito.

 

SUJEITO, DESENVOLVIMENTO E MODERNIDADE

Não há dúvidas de que, cada vez mais, a cultura da modernidade oferece-nos mais elementos técnicos, princípios tecnológicos e detalhados sobre o corpo e seu desenvolvimento psicomotor. Mas... de que corpo se trata? Como se classifica, tecnifica e subdivide o corpo a partir dessa concepção?

Tomemos como exemplo algumas imagens corporais da modernidade, como a imagem de um organismo humano. A princípio, pode-se dividi-lo e classificá-lo de acordo com os elementos que compõem a cabeça, o tronco e por último as extremidades (superiores e inferiores).

A partir disso, podemos descrever e estudar o interior do soma, os diferentes e variados sistemas, por exemplo: o circulatório, o respiratório, digestivo, o muscular. Podemos obter então uma detalhada descrição de sua fisiologia.

Podemos continuar levantando o véu e as "peles" e procurar conhecer mais, investigar o que ocorre dentro, estudar seus componentes químicos, sua composição orgânica. Podemos descobrir suas células, sua composição e função, seus elementos e seus próprios sistemas e subsistemas. Podemos continuar descobrindo até chegar (depois de complexos mecanismos) a vislumbrar os átomos e seu funcionamento.

O que mais podemos observar, descrever, fragmentar, dissecar, ordenar, organizar de um soma (etimologicamente cadáver)?

O corpo, em sua materialidade, em sua substancialidade, em seu organismo, indubitavelmente, existe. Este corpo pode ser tocado, visto, manipulado, modificado, utilizado, esvaziado, consertado, composto, detalhado, higienizado, analisado, transformado, classificado, reeducado.

Mas algo insiste e instiga para além do organismo, algo que não pode ser tocado, manipulado, utilizado ou detalhado.

O que insiste e consiste configurando esse corpo, não apenas como soma ou como um objeto passível de desenvolver-se, é uma imagem. Precisamente, não uma imagem real de órgão, mas uma imagem virtual de corpo.

Uma imagem que se estrutura no desenvolvimento psicomotor da criança a partir da imagem do Outro que ainda não é ela, mas que lhe permitirá sê-lo. Ser uma imagem do Outro para, a partir desta, ter sua imagem e seu esquema corporal.

Sua primeira imagem está no Outro, que não vê nem seus órgãos, nem suas funções orgânicas, nem suas composições químicas ou componentes fisiológicos, mas que olha diante de si um bebê no qual se reconhece e que reconhece nomeando-o como filho.

É essa imagem desejante que esse Outro materno lhe concede o que permitirá à criança refletir-se, não em seu desenvolvimento muscular, tônico ou funcional, mas em um lugar simbólico impossível de tocar, invisível para os sentidos, pois carece de realidade tangível, já que se sustenta no desejo que é sentido e incorporado no corpo por meio do intocável do toque. É nesse diálogo tônico-libidinal que se configura o sujeito.

Essa realidade é a que confere existência à psicomotricidade nestes tempos da modernidade. Pois essa imagem do corpo entronca-se em cada órgão (por isso os órgãos podem falar), em cada função (por isso provocam seu funcionamento) e em cada sistema corporal (por isso deixam sua marca).

Mas... o que tem a dizer a modernidade sobre o desenvolvimento da criança?

O discurso atual da modernidade sobre a temática do desenvolvimento infantil nos leva a suprimir o sujeito que emerge em cada ato e jogo psicomotor. Pretende, deste modo, a busca de um desenvolvimento "harmônico" e adequado de acordo com estágios, modelos e subestágios previamente estabelecidos, os quais por sua vez dependem de cada classificação e tipologia que o discurso imperante da modernidade considere mais lógico, adequado e equilibrado para sua respectiva idade cronológica.

Essa lógica levou a suprimir o sujeito-criança de tal modo, que, se este não está de acordo com certa classificação cognitiva, ou com certos padrões neuromotores, ou com alguns parâmetros estabelecidos, o problema que supostamente essa criança teria é ter sido mal avaliada ou mal classificada.

Busca-se então denodadamente uma classificação, ou se enquadra a criança dentro de alguma tipologia das muitas que existem para respeitar o currículo institucional, ou simplesmente para a tranqüilidade do avaliador.

O exemplo mais claro disso é a clássica classificação da educação especial, em crianças severas ("os severos"), em crianças moderadas ("os moderados"), em crianças leves ("os leves") e em crianças motoras, que toleram seus clássicos jogos e atividades pedagógicas para cada nível, sem possibilidade de nenhuma evolução ou progresso. Dito de outro modo:

"um severo" é severo e nunca poderá ser moderado, por isso necessita atividades para severos, "um moderado" nunca poderá ser leve, por isso necessita uma atividade para moderados.

Lembro-me de uma supervisão na qual os pais de João traziam a problemática desta criança com paralisia cerebral e dificuldades em seu desenvolvimento. O menino tinha sido encaminhado a uma escola "para motores", e lá foi realizada uma série de testes diagnósticos, a partir dos quais disseram aos pais que, como a criança apresentava um retardo mental, não podia ser aceita na instituição. Foi encaminhado a uma instituição "para mentais", na qual voltaram a realizar uma série de entrevistas diagnósticas e, como admitiam somente crianças severas e moderadas, foi encaminhado a uma terceira instituição, em que, após um novo diagnóstico, disseram aos pais que, do ponto de vista cognitivo, poderia ingressar, mas, como apresentava um transtorno motor, João não podia ser admitido.

 

EM QUE CLASSIFICAÇÃO E TIPOLOGIA ENTRA UMA CRIANÇA COMO JOÃO PARA SER SUJEITO?

Existem também diferentes instituições nas quais as crianças são agrupadas de acordo com sua patologia, por exemplo, o grupo dos Down, o dos paralíticos cerebrais, o dos autistas. Cada patologia nomeia, agrupa e uniformiza suas atividades e propostas pedagógicas correspondentes.

O nome próprio, o que nomeia ou agrupa as crianças, o que lhes é comum é a sua patologia; são nomeadas, faladas, agrupadas e educadas de acordo com sua patologia. É a deficiência o que as nomeia como síndrome, como órgão ou como objeto. Longe estão assim de ser consideradas como sujeitos. O que causa sua posição no discurso institucional é o que as agrupa e as designa como signos do fracasso, do retardo ou da deficiência. É sua patologia que as abarca e engloba em todo seu fracassado desenvolvimento.

Esse discurso "científico" da modernidade sobre o desenvolvimento "patológico" convoca a criança e seus pais a um lugar de integração social, cultural e educativo cheio de impossibilidades, pois, por um lado, são nomeadas, apresentadas e incluídas como crianças diferentes do normal e, por outro lado, o trabalho é centralizado em parâmetros, índices e classificações estritamente pedagógicos e cognitivos normais.

A partir dessas posições, se a criança fracassa ou não aprende, o problema é da criança, do deficiente, ou seja, quem não está capacitada é a criança. É este o discurso que nos apresenta a modernidade sobre o desenvolvimento anormal. Portanto, a partir deste olhar, deparamos cada vez mais com novas técnicas de estimulação, novas classificações e avaliações, novos e específicos testes e novas e precisas técnicas cognitivas que pretendem eficácia e a obtenção de condutas adaptadas ao meio.

Mas... o que ocorre com a singularidade de cada criança, de cada desenvolvimento, de cada história?

Diante dessa questão, pensamos que, se a criança fracassa ou não aprende, o problema não é da criança, mas do outro, seja este outro um educador, terapeuta, professor, pai ou instituição.

Se uma criança não brinca porque não fala, não dirige o olhar e realiza movimentos estereotipados, o objetivo não deveria ser que a criança adquirisse novos hábitos e conhecimentos ou que conseguisse aprender as cores ou se adaptasse a brincar com outras crianças, ou tivesse sua sensibilidade estimulada, mas sim compreender qual é a problemática que a criança nos faz ver em sua estereotipia, em seu corpo, em seu não olhar e em sua não palavra. Estabelecendo-se assim uma tática e estratégia particular para esse sujeito-criança, e não para sua patologia de base ou seu diagnóstico.

Seguindo o exemplo, a criança não pode brincar. Não é que ela decide não brincar, e sim que não pode decidir, pois não brinca e deste modo não pode configurar suas representações, suas palavras ou seu desenvolvimento. Reiteramos, o problema não é da criança, mas é dos outros em encontrar o modo adequado de encontrar-se com ela, e não com seu déficit.

As resistências a brincar e a aprender não são da criança, mas dos outros em compreender a singularidade; nessas produções (ainda que sejam estereotipadas), a criança nos "faz ver".

O mais difícil, o mais custoso para um terapeuta, ou para um educador, é admitir e suportar suas próprias falhas, sua própria ignorância, mesmo que seja a única forma de resgatar ali um sujeito que, com seu sofrimento, nos apresenta o problema de sua história e seu desenvolvimento.

A partir desse ponto de vista, propomos que o desenvolvimento psicomotor de uma criança é basicamente desarmônico (e não harmônico, como nos propõe o discurso da modernidade), já que a criança ingressa na cultura por meio da demanda e do desejo do Outro que a constitui, o que nos permite afirmar que a primeira imagem do corpo de uma criança é a imagem do corpo de um Outro (função materna e paterna). Sua primeira imagem está no Outro, e não em seu corpo.

O desarmônico desde a origem se estabelece na diferença e disjunção entre seu corpo e suas sensações e sua imagem, que está em um "extracorpo", que está no Outro. A partir disso se inicia a singularidade e o mistério que determina o desenvolvimento psicomotor da criança.

Como encontrar, recuperar e engendrar o mistério, o enigma singuiar no desenvolvimento, será nosso desafio atual diante do discurso uniforme da modernidade.

Concluindo, em relação ao corpo despojado de imagens que nos apresenta a modernidade, qual é a função do psicomotricista?

O psicomotricista terá de lutar necessariamente com essa fascinação, exagero e desmesura pelo detalhe orgânico ou funcional que a modernidade apresenta-nos atualmente. Uma vez que, em detrimento da imagem, o oculto torna-se visível, o misterioso do desenvolvimento metamorfoseia-se em pura mecânica ou estágios, e a curiosidade infantil transforma-se em manuais padronizados ou em caminhos preestabelecidos estatisticamente. Deste modo, o corpo é esvaziado de todo segredo e enigma. A sombra do órgão retorna uma e outra vez fragmentando e questionando a imagem.

Nós, que trabalhamos com crianças partindo da psicomotricidade ou de qualquer outra disciplina, temos a responsabilidade de não retroceder diante do excesso de organicidade que a cultura atual nos propõe, que em sua última versão tenderia a eliminar a imagem do corpo. Por exemplo, pode-se geneticamente clonar um corpo. Mas... como clonar uma imagem corporal?

A imagem do corpo não é clonável, pois é o lugar em que um sujeito se representa - é ali que se situa a impossibilidade do discurso científico. Exatamente no lugar em que o sujeito emerge em sua singularidade fracassa a fórmula genética de sua reduplicação.

Somos responsáveis por nossa paixão, "a paixão pela ignorância", quanto mais acreditamos saber, menos sabemos, e então nos formamos e nos deixamos também interrogar pela criança, somos sensíveis a ela, ou seja, a criança, com suas perguntas, seu corpo, suas imagens, seus questionamentos, nos impacta, nos impressiona e nos comove.

Deixar-nos impressionar, comover e impactar pelas produções da criança implicará para ela reconhecer-se e existir em suas produções e questões, e, para nós, suportar nossa própria ignorância. Será esta a nossa responsabilidade.

 

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

Bergès, J. (1988). A função estruturante do prazer. Escritos da Infância, 2.         [ Links ]

 

 

Tradução: Daniela Teperman