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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.5 no.8 São Paulo  2000

 

ARTIGO

 

Um lugar para falar...1

 

A place to speak...

 

 

Sandra Pavone de Souza

Psicanalista, membro da equipe da Derdic (PUC-SP), professora universitária

 

 


RESUMO

Este artigo apresenta importantes articulações entre linguagem e sujeito, propondo mais especificamente a relação entre mutismo infantil e falhas na constituição do sujeito. A autora baseia-se em alguns conceitos, como a função do Outro Primordial, as inscrições primordiais e a instauração do circuito pulsional, assim como apresenta ilustrações clínicas e relato de caso.

Mutismo; constituição do sujeito; circuito pulsional


ABSTRACT

This article presents important articulations between language and subject sketching specifically relations between infantile mutism and a failure in the subject constitution. The author is supported by some concepts, like the primal Other fhnction, the primary inscriptions and the institution of the pulsional circuit, as well as she shows some clinical illustrations and a case report.

Mutism; subject constitution; pulsional circuit


 

 

Quando na clínica, com crianças tendo dificuldades ou ausência de fala, somos levados mais adiante e passamos a nos questionar sobre o que estaria impedindo sua constituição como falantes, começamos a deparar com inúmeras e intrincadas relações entre linguagem e constituição do sujeito. O mutismo infantil, bastante freqüente em casos de autismo, aponta para uma abrangência que nos convoca a situar questões de estruturação muito antes de tomarmos esse fenômeno como um sintoma.

Fundamentalmente, neste artigo, busco aproximações que permitam elucidar o ato da fala ali onde a clínica nos indica que ele não é inato nem exclusivamente dependente do aparato biológico com que nasce uma criança. Mais especificamente, ressalto por um lado a função do Outro Primordial e a entrada da criança no campo da linguagem e por outro a instauração do circuito pulsional na constituição do sujeito.

O grito, que a princípio é um meio de descarga da tensão acumulada e, ao mesmo tempo, a expressão do estado de desamparo e urgência inicial, vai sendo cada vez mais intencionalmente endereçado ao outro. Este Nebenmensch terá então uma função fundamental de inscrever esse corpo e suas manifestações num universo de linguagem, num universo simbólico. Assim o grito ou o esperneio passam a ser signos de uma demanda ao Outro, ou seja, um semelhante, porém destinatário de uma ordem simbólica (Garcia-Roza, 1991).

Esse outro que inscreve a criança num referente simbólico investe-se em relação a ela como um outro privilegiado: Outro, "...o grito de necessidade do bebê deve ser traduzido no tesouro dos significantes do Outro materno para se tornar demanda, o que, ao mesmo tempo, o aliena; ele passa a ser apenas demanda do Outro, já que expresso nos significantes deste" (Laznik-Penot, 1997, p.37).

A que questão estruturante do sujeito nos remete então a função do Outro Primordial, do Nebenmensch? Aponto aqui a relevância desse tempo estruturante e dessa função para o que no futuro poderá vir a ser uma fala. Trata-se, porém, do lado da mãe, de uma ilusão antecipadora que lhe permite escutar e olhar algo além da realidade daquilo que ali está. Esse mesmo ato comporta, entretanto, a atribuição de um sujeito ao bebê que produz esses sons. "Por isso é que não vacilam e embora saibam que seu bebê é incapaz de compreendê-lo tudo o supõe falante... colocar o seu filho na posição de escuta, quando na verdade ele não sabe escutar, mas apenas ouvir, e escutar seu filho quando na verdade ele não produz nada que possa ser escutado, apenas ouvido. Essa sutil, mas decisiva diferença de função entre perceber a voz - ouvir -, e diferenciar uma palavra - escutar" (Jerusalinsky, 1997, p.82).

Do lado dos pais, o que escutamos muitas vezes é exatamente a ausência no seu discurso dessa ilusão antecipatória. É como se esses pais só pudessem ser atingidos pelo ruído que ali está, impossibilitados de escolher para esse som um sentido e de posteriormente incluir essa palavra numa rede de significantes. B. tem agora 5 anos e, por volta do fim de seu primeiro ano, começava a falar, quando os pais mudaram de cidade. Na cidade de origem era possivelmente o avô quem exercia essa função para o menino, e o pai acredita que o fato de o filho ter parado de falar possa ser atribuído a essa separação do avô (sic). Ele me conta que só o avô é que conversava com o menino quando ele ainda não falava nada e que o próprio pai e outros diziam ao avô o quanto ele parecia "doido" fazendo isso.

Certa vez sua mãe me conta que nos momentos em que está para dormir seu filho fica um bom tempo fazendo "pa, pa, pa, pa..." Quando pergunto a ela o que acha que ele pode estar querendo dizer, ela me responde:

- Não quer dizer nada, não. É só barulho.

Ilusão antecipatória, ver uma imagem se sobrepor a esse real.

Algumas mães como aquela do caso acima não se deixam iludir. Elas vêem o real ele mesmo, sem nenhuma substituição. Se o grito, o balbucio ficar sendo ele mesmo, se não puder ser mensagem para esse outro, ocorrerá o que Lacan (1962-3) chama no Seminário A angústia de a subjetivação do a como puro real.

É portanto fundamental que alguém consiga encontrar nesse bebê um dizer que possa fazer querê-lo (referente a um seminário proferido por Alfredo Jerusalinsky na Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida, na USP, em 1998).

E onde um pai e uma mãe encontram um dizer de seu bebê? No seu próprio fantasma, ou, dito de outra maneira, que "a criança seja portadora, aos seus olhos, daquilo que a eles faz falta" (Laznik-Penot, 1997, p.47).

A mãe de B., aquele garotinho do primeiro exemplo, é incapaz de relembrar ou relatar qualquer coisa que faça parte do início da vida da criança. Aliás, é muito difícil ela dizer qualquer coisa. O pai se queixa de que ela passa o dia com o menino, mas é de pouca conversa, e ela responde a isso dizendo:

- Como é que posso falar com ele? Ele não fala! Se ele falasse, eu poderia conversar com ele.

Transformar o real da voz em mensagem, em dádiva: você quer me dizer... Aí está essa importante diferença entre ouvir barulhos e escutar palavras, ou seja, atribuir sentidos e antecipar palavras naquilo que é ainda uma pura voz, um puro grito.

"Para que o objeto não fique sendo ele mesmo e somente ele mesmo, é necessário transformar cocô em dádiva - e isso as mães sabem fazer muito bem" (Jerusalinsky, 1997, p.82).

O pai de um garoto de 8 anos que não fala vem contar o que se passa com o menino:

- Doutora, meu filho está incompleto. Andou, mas não falou. Às vezes diz papapa, mamama. Palavras sem sentido.

Certamente. Para esse pai não havia como atribuir sentido, como poder supor que isso fosse mensagem e que portanto lhe dissesse respeito. Não parece possível elevar essa voz a um lugar simbólico. E o mais surpreendente do exemplo é a proximidade disso que o menino balbucia com as palavras "papai" e "mamãe".

Essas palavras que virão nomear as produções da criança, recortando e separando os objetos, não serão quaisquer palavras. São significantes que sustentarão o trabalho de separar os pedaços do corpo, lançando o sujeito à simbolização, ou seja, às séries substitutivas. A palavra que vem representar o objeto, substituindo-o, amplia as possibilidades simbólicas, isto é, da própria inscrição e do funcionamento das representações.

"A entrada na linguagem, este recalcamento devido à voz da mãe, se faz ao preço disso que justamente a voz da criança vai perder, ou seja, ela vai se perder enquanto voz, para tornar-se da língua, tornar-se da fala" (Bergès & Balbo, 1996).

A função materna permite recortar, separar esses objetos do próprio corpo à medida que a mãe diz não a esses objetos, e isto ela o fará se não ficar presa ao objeto como ele mesmo. É por sua ilusão antecipatória que se constituirá essa imagem real, formada pelo conjunto desses pequenos a, surgindo e recortando o corpo da criança.

 

A INSTAURAÇÃO DO CIRCUITO PULSIONAL

Penso que se a voz é um desses objetos que serão extraídos, possibilitando a inscrição da representação de uma falta, recortando o corpo, isto é, inserindo-o numa pulsionalidade, podemos considerar o próprio advento da fala do ponto de vista do circuito pulsional.

É nessa operação que a voz vai se perdendo como tal, na medida em que sua transposição para outro registro, o do simbólico, torna o próprio objeto - agora de outra maneira aí apresentado - perdido, ou, simplesmente, representado. "Na operação de libidinização, de nomeação, de antecipação desse grito em fala, há algo em torno do que tudo isso gira, em torno do que tudo isso se antecipa: uma voz, a voz da mãe, a voz da própria criança" (Bergès & Balbo, 1996).

Lacan, no Seminário XI, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964), nos traz uma extensa retomada do conceito de pulsão a partir do texto de Freud (1915) "As pulsões e suas vicissitudes". Em Lacan, a pulsão não é um conceito que articula o biológico e o psíquico tal como considerado por Freud. Ela é sobretudo um conceito que articula significante e corpo. A partir desses vários destinos, vicissitudes que a pulsão pode seguir, Freud vai falar das condições da satisfação pulsional. O enlaçamento pulsional, seu fechamento em forma de circuito, é o que põe em jogo o que é da ordem da satisfação. Esta não estaria ligada ao encontro de um objeto ligado à satisfação de uma necessidade, mas à execução de um trajeto em forma de circuito, que nada mais é que um trajeto "que vem se enlaçar sobre o ponto de partida: a fonte, a zona erógena" (Lacan, 1964, p.42).

"... esse movimento circular do impulso que sai através da borda erógena para a ela retornar como sendo seu alvo, após ter feito o contorno de algo que chamo o objeto a. (...) - é por aí que o sujeito tem de atingir aquilo que é, propriamente falando, a dimensão do Outro" (Lacan, 1964, p.183).

É a partir do que Freud (1915) trabalhou a respeito dos dois pares de opostos sadismo-masoquismo e voyeurismo-exibicionismo, marcando os possíveis destinos na montagem pulsional, que se pode situar esse circuito em três tempos:

1) ativo: indo em direção a um objeto externo,

2) reflexivo: tomando como objeto uma parte do próprio corpo,

3) passivo: em que a própria pessoa se faz ela mesma objeto de um outro que vai ser posto no lugar de sujeito.

Lacan vai trabalhar esse percurso marcando que antes de seu enlaçamento "a pulsão se manifesta sob o modo de um sujeito acéfalo" (Lacan, 1964, p.171). Há uma relação entre a constituição do circuito pulsional e o surgimento do sujeito. Ele aparece no momento em que a pulsão pode fechar seu curso circular. Dito de outro modo, para que se possa falar propriamente em sujeito da pulsão, é necessário o seu fechamento em circuito, o que não será possível antes desse terceiro tempo.

Lacan sustentou sua noção de surgimento do sujeito da pulsão por meio do que Freud chama de "novo sujeito", que surge no terceiro tempo do circuito pulsional. Esse sujeito novo não é o Ich, ele é o outro. Ele diz que esse sujeito é propriamente o outro, que o olha, que o escuta, etc.

Nesse movimento da pulsão, "não parece que, ... a pulsão invaginando-se pela zona erógena, está encarregada de ir buscar de algo que, de cada vez, responde no Outro?" (Lacan, 1964, p.185).

A aparição desse novo sujeito parece então estar fundamentalmente ligada ao tempo da alienação, já que é como objeto do outro que o sujeito aparece aqui. Nas palavras de Lacan, "o sujeito só é sujeito por seu assujeitamento ao campo do Outro" (Lacan, 1964, p.178). Articulam-se aqui o surgimento do sujeito a partir do assujeitamento ao campo do Outro e o surgimento do sujeito no terceiro tempo pulsional assujeitando-se ao Outro buscando fisgar seu gozo.

Pretendo daqui retomar a constituição da fala através dos três tempos pulsionais, afirmando que o advento do sujeito falante só poderá ser tomado como tal quando estivermos diante desse terceiro tempo em torno do objeto voz.

ativo - ouvir (o próprio grito e a voz da mãe)

Aqui penso que podemos situar a criança indo em direção à voz do próximo, assim como à sua própria. Se o grito da criança é tomado como apelo, e este outro que a socorre na experiência de satisfação interpreta essa manifestação com seus próprios significantes, essa experiência tem conseqüências importantes sobre a complexificação do aparelho psíquico, já que deixará traços mnésicos de lembranças de várias ordens: do seu próprio choro, da voz do outro que socorre e dos trilhamentos (Bahnungen)2 entre essas duas ordens de imagens-lembrança.

Quando o estado de tensão ressurgir, o investimento vai encontrar os trilhamentos eficazes para enviá-lo a esse conjunto de imagens-lembrança (as representações de desejo) e vivificá-las: é a satisfação alucinatória primária. Se este pólo alucinatório for demasiadamente investido haverá uma decepção, um desprazer, pois a descarga motora aí ativada não coincidirá com a satisfação por tratar-se do objeto alucinatório. Daí que o investimento que lhe pertence voltar-se-á ao pólo perceptivo, transformar-se-á em atenção psíquica em busca do objeto de satisfação no mundo exterior. Será necessário julgar as novas percepções tomando por base aquelas que previamente fizeram marca no pólo alucinatório. Como o objeto da realidade não será jamais idêntico àquele das representações de desejo e pela necessidade de reencontrar similitudes antes de autorizar a resposta motora específica, novos trilhamentos entre as representações vão se instalar. Mas isso só poderá ter lugar contanto que o trilhamento, que leva ao conjunto complexo de representações, fique investido de forma duradoura, ou seja, com a condição de que seja suficientemente repetida.

É nesse sentido que a voz da mãe assim como o próprio grito do bebê podem tornar-se um desses traços, desses atributos que deixam marcas mnésicas, o que sustentará sua atenção psíquica em direção a eles. Haverá um investimento em direção à voz do próximo e às imagens de palavras que ele empregará para traduzir suas manifestações, incluindo-se aí seus gritos que serão objeto de um grande investimento de atenção da criança; uma busca, fundamentalmente, do investimento libidinal que essa atribuição comporta.

Acho importante marcar que desse próximo que socorre partem dois componentes: 1) estrutura constante que permanece coesa enquanto coisa Das Ding, 2) outra que pode ser compreendida em um trabalho de rememoração, ela comporta os atributos. Importante para que não sejamos levados a pensar, pelas afirmações acima, que falar poderia ser resultado simplesmente de imitar a voz do outro, assim como efeito de um trabalho de rememorar. Vale lembrar que em Lacan a Coisa - Das Ding, termo retirado do texto do "Projeto" de Freud (1895) - seria o termo estranho em torno do qual circula a pulsão.

Não é possível pensar que falar seria um trabalho de rememoração, pois este não comportaria o fundamental da operação da alienação aos significantes do Outro, ou seja, o resto dessa operação, o objeto a. Os trilhamentos não seriam apenas um trabalho de memória dos traços que fizeram marcas. Eles fazem um circuito em torno do componente estranho, da parte coesa do outro, em torno de Das Ding, podemos dizer, um circuito pulsional.

Penso ser esse o primeiro tempo em que o investimento da criança irá em direção à voz da mãe e às imagens de palavras que ela emprega para traduzir suas manifestações, suas vocalizações.

reflexivo - ouvir-se (tomar como objeto uma parte do corpo próprio, a própria voz)

Aqui podemos falar de um tempo anterior à própria fala e que tem um valor fundamental, que é o balbuciar, quando o bebê brinca com a própria voz.

Lacan (1962-3) no Seminário A angústia, em que busca circunscrever a gênese desse objeto a do lado da criança, lembra-nos os trabalhos de Roman Jakobson com bebês em berçário em que se gravavam seus monólogos. Ele acentua que esses monólogos não se produzem na presença de outra pessoa, muito pelo contrário, podem até cessar quando outra pessoa está presente, o que nos aponta que neste caso não é em busca de algo no outro o que entra em jogo nesse tempo.

Penso que aqui a criança brinca com sua voz como às vezes também brinca com a saliva fazendo bolhinhas, buscando simbolizar a falta que possa estar em jogo com esses objetos.

Quando Lacan refere-se aos monólogos de bebês, é para falar do sujeito que está se constituindo, da constituição do objeto a como resto, de uma voz destacada de seu suporte, do tempo da separação. Se a criança tenta reter no discurso da mãe algo da voz, se ela tenta não perder isso que cai da boca da sua mãe, isto é, sua voz, é porque tenta fazer com que a lei não intervenha. É o que Balbo vai falar do poder de recalcamento da voz da mãe. "Ela vai perder-se enquanto voz para fazer surgir o sentido, isto é, para tornar-se língua. A letra aqui vem do momento em que cai do buraco que representa a boca da mãe algo de seu discurso que é a sua voz, voz da qual a criança tenta reter algo para não perder tudo dessa voz. Pois não há outro objeto do qual se faça luto, se não a voz a perder" (Bergès & Balbo, 1996).

"A voz responde ao que se diz, mas ela não pode responder. Dito de outra maneira, para que ela responda, devemos incorporar a voz como alteridade do que se diz... Uma voz portanto não se assimila. Ela se incorpora {Einverleibung - incorporação}, está aí o que lhe pode dar uma função para modelar nosso vazio" (Lacan, 1962-3, p.318).

Nesse caso o que se perde é a voz, esse objeto voz desprende-se desse outro. É nessa dialética entre o Outro e o objeto que o - sujeito ganha seu lugar. Há ao mesmo tempo a constituição do objeto enquanto perdido e o aparecimento do sujeito.

passivo - se fazer ouvir (a criança se faz ela mesma objeto de um outro)

É nesse tempo que poderemos falar de surgimento do sujeito da pulsão, denominado de novo sujeito em Freud, em que a criança vai se fazer ela mesma objeto de um outro. Isso aparece quando a criança vier a produzir algo, buscando com isso não apenas fazer imitação daquilo que no primeiro tempo ouviu, mas buscando que o outro a escute. É quando a criança busca se fazer ouvir por esse outro, buscando a cada vez repor em jogo algo do seu desejo desse outro, de seu gozo. Daí o fechamento do circuito da pulsão como um movimento de apelo a esse Outro.

Em outras palavras, o sujeito aparece sob a forma de um outro que o escuta. Aquele que é escutado só se torna sujeito por haver um sujeito que o escuta. O fechamento do circuito pulsional se dá no momento em que há algo no Outro que se busca atingir, ao mesmo tempo que há algo aí que se perde, que se subtrai.

É preciso esperar pela escuta do Outro estando a criança como objeto para que o sujeito da fala ganhe o seu lugar3 É preciso não confundir aqui o sujeito do qual nos fala Lacan com o sujeito da ação, com atividade, pois se tornaria difícil compreender como o sujeito pode aparecer como efeito de se fazer objeto de um outro.

O surgimento desse sujeito nos conduzirá portanto ao fechamento do circuito pulsional.

Falar não poderia portanto ser o atributo de fazer coincidir palavras com objetos, mas muito mais que isso. Na fala há um endereçamento ao Outro. Quem fala não apenas pronuncia palavras. Há aqueles que fazem isso. Uma fala só podemos tomá-la como tal quando há esse atravessamento do campo do Outro.

O que vai fazer com que a criança fale de um modo ou de outro, isto é, na forma de agrupamentos ou como um sujeito dividido, é o modo em que lhe falam. Ou seja, que fale num ou noutro estatuto vai depender do modo em que é falada, em que a fala lhe é dedicada.

apropriação de signos
<-
atravessamento do campo do Outro
->

Entre um e outro não há desdobramento cronológico. Ou é um ou outro.

Os psicóticos também falam. Entretanto, sua fala não é endereçada a um outro, quem a interpreta não é o outro como no caso da fala neurótica. Um neurótico quando fala corre o risco da interpretação daquele que escuta, ele se desembaraça da voz, o ponto de amarração reside no outro. Na psicose, a voz lhe faz ressonância nos próprios ouvidos. Sua voz enquanto objeto pequeno a não percorre o campo do outro, senão que fica nos próprios ouvidos, sai e retorna. Não se transforma (trecho referido a um seminário de Alfredo Jerusalinsky em 14 de setembro de 1998, na Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida, na USP, em São Paulo).

 

UM LUGAR PARA FALAR - RELATO DE CASO

Retomo aqui um fragmento de caso buscando ilustrar este trabalho a partir do que propus estar em jogo no ato de falar, enquanto enlaçamento pulsional a partir de três tempos.

No início do atendimento de R., um menino de 8 anos que não falava, não havia nada que ele fizesse que pudesse me fazer pensar que houvesse ali um sujeito. Seus atos pareciam nada significar, e seus pais tampouco podiam dar sentido ao que ele fazia ou ao pouco que dizia. Restringia-se a andar ou correr pela sala, raramente me olhava nos olhos ou me solicitava. Tomava objetos na mão batendo neles estereotipadamente com a outra mão, enquanto pronunciava "Hum! Hum!" com a boca fechada.

Desde o início do trabalho com R. começo a atribuir sentidos ao que parecia ainda não querer dizer muita coisa. O trabalho com a mãe caminha paralelamente, e, diante dela e de sua total impossibilidade de dizer algo sobre o filho que não fosse contar suas novas "manias", sentia-me muitas vezes uma tola buscando ver seus atos como simbólicos.

É muito interessante notar que um de seus objetos prediletos sejam revistas, que ele a princípio apenas usa para dobrar ao meio e bater e depois de um tempo passa a folhear com "alguma atenção". Digo interessante porque o pai trabalha numa editora de revistas, e a mãe dedicava-se a folhear revistas durante um bom tempo das sessões ou indicava ao filho que o fizesse quando não queria ser importunada por seus incessantes pedidos de pegar algo para comer em sua bolsa.

A mãe relata que para ela era muito difícil dizer não ao filho, principalmente quando este lhe pedia comida. Oferecer comida a ele durante a sessão era também uma forma de mantê-lo ocupado sem que ele pudesse importuná-la.

Certo dia decido dizer aos dois que ali na sessão ele não iria comer mais. Que ele podia esperar terminar para comer e que só assim ia poder fazer outras coisas com a boca enquanto estivesse ali.

Mais ou menos nessa época eu vinha nomeando para ele o que estava nessas páginas que ele talvez nem por um segundo se detinha para olhar. Uma delas era uma propaganda que tinha várias barras de chocolate, e nesse dia me lembro de ter dito "Chocolate? Hum! Que gostoso!" nas várias vezes em que ele retornava a essa página. R. me ouvia muito atento e parecia mesmo buscar que eu repetisse a minha fala cada vez que voltava ao chocolate.

Nesse dia a mãe entra parte da sessão, e a primeira coisa que ele faz quando ela senta é buscar a revista aberta na página do chocolate e ao se aproximar dela lhe diz "Hum". Escrevo aqui sem o ponto de exclamação, pois aí ainda não se podia ouvir assim, já que ele não enunciava assim. A mãe nem sequer o olha, e imediatamente lhe pede para se afastar. Aí eu retomo dizendo a ela o que tinha se passado e o que ele possivelmente buscava lhe contar.

Vários outros passos importantes apareceram entre esse dia e o que vou relatar aqui, mas vou fazer um salto direto ao ponto em que isso depois veio fazer sentido.

Meses depois ele entra na sessão com duas bolachas na mão e não faz menção de querer comê-las. Olha para a minha agenda, que tem uma palavra escrita que começa com B, como fazia outras vezes que algo, uma palavra ou uma foto, se referisse a algo que começasse com B. Digo-lhe que "sim, bolacha é com B". Em seguida sugiro que pegue o material para escrevermos ou desenharmos algo sobre a bolacha. Ele vai até a caixa e pega a revista que tem a foto com os chocolates. Ele diz "Hum, Hum", mas não na mesma entonação de quem está achando uma delícia. Enquanto isso, bate na revista estereotipadamente.

Ele agora se aproxima e solicita muito mais do que fazia no início do trabalho. Enquanto está com a revista, vem de costas e encosta em mim. Olho para seu braço e, vendo sua pele, que é bem morena, eu lhe digo: "Você tem a cor de chocolate. Hum, que gostoso! Vem cá, que vou te comer!" Faço duas boquinhas com as minhas mãos que abrem e fecham, fazendo-lhe cócegas, brincando de tirar pedaços. Enquanto isso coloco-me em seu lugar, dizendo: "Ai, Sandra. Isso faz cócegas". Ele se afasta e diz: "Si". Ele se diverte muito com o jogo e vem de costas pegando minha mão para que eu continue. Enquanto faço a boca que abre e fecha com a ponta dos dedos fazendo cócegas pelo seu corpo, eu lhe digo: "Minham, minham, minham, minham, minham. Que gostoso esse chocolate!"

Como não continuo direto e dou um tempo para ver o que é que surge do lado dele, ele se afasta e vem de novo de costas encolhendo o pescoço no tronco, antecipando as cócegas que estavam por vir. Depois se afasta novamente vindo de frente, e, como espero, ele me diz "Mam, mam", possivelmente reproduzindo o som das boquinhas, e fica de novo esperando as cócegas. Daí vira uma brincadeira de se oferecer como objeto.

Na sessão seguinte, ele pega a revista que já está na página do chocolate e novamente diz "Mam, mam", e ri antecipando as cócegas. Mais uma vez fico um tempo sem responder de imediato ao que ele demanda, esperando ver surgir algo mais que um simples gesto ou indicação do lado dele. Ele pega a minha mão, mas, como nada diz, resolvo não responder. É aí que ele resolve me fazer cócegas subindo com os dedos pela palma da minha mão. Respondo a isso dizendo: "Ai! Que cócegas!" Isso parece a princípio remetê-lo a um tempo em que ele agarrava meu cabelo com muita força, e eu dizia "Ai" tentando fazê-lo parar, pois ele vai direto agarrar meu cabelo. Digo-lhe que esse Ai de agora é diferente do Ai do cabelo.

Uma semana depois ele entra na sessão e diz "Mam, mam", pegando as minhas mãos, e, antes mesmo que eu chegue a tocá-lo, ele diz rindo: "Ai, ai". Foi também esse o primeiro dia que vi sua mãe poder atribuir algum sentido a um ato dele. Enquanto falava comigo sobre a escola em que está pretendendo matriculá-lo, ele me olha com a mão no queixo. Ela pára de falar, olha para ele e diz: "Olha como ele está interessado!"

Essa brincadeira depois virou aquela da formiguinha que sobe pelo braço, que ele pedia que fizesse nele, assim como fazia em mim. E também uma outra de esconder seus olhos atrás da palma da mão para que eu chamasse por ele.

É possível ver surgir um sujeito alienado nos significantes do outro, assim como os tempos pulsionais necessários para que uma inscrição ocorra e o esticamento simbólico do objeto que entra em jogo aí. Várias substituições operaram (chocolate que ele comia nas sessões, chocolate na revista, sua pele cor de chocolate e ele um chocolate). Talvez isso só tenha sido possível a partir de uma das poucas lembranças que a mãe traz de quando ele era bebê: que era gordinho e risonho. Isto é, que algo relativo a comer, comida já pudesse em algum momento ter feito parte de alguma inscrição fundamental. Então, o que se passa na sessão pode ter sido mais o efeito de fazer funcionar uma inscrição do que de fazer uma primeira inscrição.

O que ainda não é possível saber é se esse início de constituição poderá ter do lado dos pais uma sustentação, pois não basta que uma inscrição ocorra. É necessário que essas experiências sejam suficientemente repetidas e que possam constituir-se em redes, possibilitando surgir para este lindo moreninho um lugar para falar...

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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1 Trabalho apresentado como monografia final do curso de especialização (latu sensu) da Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida, Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo; orientadora: Gislene Jardim.
2 Neste ponto, introduzo alguns aportes metapsicológicos desenvolvidos por M. C. Laznik-Penot sobre a constituição do circuito pulsional e o funcionamento das representações inconscientes que serão objeto de um trabalho ainda não publicado, La psychanalyse à l'épreuve de la clinique de l'autisme. Arcanes conforme Laznik-Penot, 1997.
3 Como se pode notar, aparecem aqui novas articulações entre essas duas zonas de borda - ouvido e boca - que não pretendo desenvolver no presente artigo.