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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.5 no.8 São Paulo  2000

 

RESENHA

 

Elisabete Aparecida Monteiro

Mestre em Educação pela FE-USP. Professora do Dep. de Metodologia de Ensino do CECH da Universidade Federal de São Carlos

 

 

CIFALI, M. & IMBERT, F. Freud e a Pedagogia. M. S. GONÇALVES & A. U SOBRAL (trads.). São Paulo, Loyola, 1999

A autora de Freud pedagogue? Psychanalyse et éducation e de Le lien éducatif: contre-jour psychanalytique, Mireille Cifali, e Francis Imbert, autor de Médiations, institutions et loi dans la classe, L'inconscient dans la classe e Vivre ensemble, publicaram em 1998 Freud e la pédagogie, que teve sua tradução para o português em 1999.

Autores expoentes na conexão psicanálise e educação, Cifali e Imbert, em Freud e a pedagogia, tratam da natureza da contribuição da psicanálise à educação. Apesar de não se tratar de um tema inédito, pois os mesmos autores já o abordaram nas obras que produziram individualmente, num trabalho como esse é sempre necessário recuperar toda uma história de esforços e expectativas em torno da contribuição entre os campos, além de preservar a especificidade de cada um deles.

Para realizar esse trabalho, os autores recorreram a vários textos de Freud, textos de autores precursores dessa reflexão, como Pfister, August Aichhorn e Hans Zulliger, e autores mais recentes, como Lacan, Catherine Millot, Elisabeth Roudinesco, entre outros.

De início, Cifali e Imbert evidenciam a esperança dos psicanalistas, nitidamente presente nas comunicações entre Freud e os seguidores da "causa", quanto à função profilática de uma educação psicanaliticamente orientada, principalmente enquanto se pensava numa educação psicanalítica voltada para o individual (como uma análise infantil).

Tendo em vista que a civilização tem seu fundamento na "renúncia pulsional", a responsabilidade da educação estaria em avaliar os efeitos destrutivos de uma "espécie de hipocrisia" dos ideais culturais. À educação caberia tornar o homem apto para a cultura e útil à sociedade, sem dele exigir sacrifícios.

Logo, como apontam os autores, os textos psicanalíticos mostraram que o mal-estar da civilização é inerente ao desenvolvimento cultural. Portanto, não há educação que possa abrandar a insatisfação que caracteriza a sexualidade humana. Numa carta a Fliess, de 14 de novembro de 1897, Freud afirma ser o desprazer inerente à sexualidade, uma "repressão orgânica". O homem utiliza da moralidade para defender-se da sexualidade. Então, não é a moralidade a causa da repressão sexual, mas uma repressão presente na natureza mesma da pulsão sexual.

Explorando os textos psicanalíticos, Cifali e Imbert apresentam outros argumentos em torno do inevitável mal-estar da civilização: a impossibilidade de satisfação sexual completa está atrelada à "intervenção da barreira do incesto", isto é, qualquer objeto é substituto, e nunca o objeto originário (a mãe). A renúncia ao incesto foi condição para a existência da civilização, mais ainda, é a partir do sacrifício do poder absoluto e do gozo absoluto que o homem se desenvolve. Nesse contexto, o Complexo de Édipo vem prestar o serviço de introduzir o sujeito na castração.

Em Totem e tabu, o assassínio do Pai (índice de referência absoluta) vem liquidar o gozo (fora da lei) e erigir o Pai simbólico que funda as leis e os interditos. A culpa e o arrependimento dos filhos tornam o pai morto mais poderoso do que quando vivo. Resulta daí a ambivalência (ódio e amor) que caracteriza o "complexo paterno".

Diante da inevitável e constitutiva insatisfação humana, os autores perguntam-se: qual seria o papel das ilusões? Resposta: o de poupar-nos de sentimentos de desprazer. E, diante dessa mesma realidade, qual seria o papel da educação? Do ponto de vista psicanalítico, conduzir as energias originariamente perversas para fins socialmente úteis, a sublimação.

Freud não propõe modelos de aplicação prática da psicanálise no campo da educação e reconhece essa sua "falta". Diante disso, os educadores psicanalistas recorreram à problemática da noção de "transferência" e do "ideal do ego", que, num primeiro momento, como mostram Cifali e Imbert, favorecia a sujeição à figura do professor, na medida em que encontrava eco no desejo narcisista dele de que a criança correspondesse a suas expectativas.

A subjugação imposta pelas autoridades converte-se em "interdito do pensar". Em 1907, no texto "As explicações sexuais dadas às crianças", Freud reflete sobre as ocultações dos pais a respeito da vida sexual, fruto da má consciência destes. Suas respostas habituais ofendem a pulsão de investigação da criança, que passa a desconfiar dos adultos.

Os autores deduzem da leitura dos textos psicanalíticos que a intimidação foi revelada como o meio e o fim da educação. A religião representa o plano em que, segundo Freud em O futuro de uma ilusão, se elaboram a dependência e o infantilismo. Em "As teorias da sexualidade infantil" (de 1908), Freud torna nítida a diferença entre os propósitos da religião e as teorias sexuais infantis.

De qualquer maneira, a substituição da religião por projetos sociopolíticos, a substituição da religião pela razão contida no discurso comunista, por exemplo, é outra forma de negar as dificuldades inerentes à essência da cultura. Sobre a impossibilidade de uma reforma sociopolítica e educativa que pudesse minimizar tais dificuldades inerentes à cultura, Freud fala em O mal-estar na civilização (de 1930).

No que diz respeito à repressão religiosa e aos ideais políticos, os autores advertem: não há por que fabricar crianças revolucionárias ou crianças dóceis. Aos educadores cabe, sim, a renúncia de submeter a criança ao interdito de pensar.

Como Cifali e Imbert puderam muito bem localizar no conjunto de trabalhos psicanalíticos, uma "educação psicanalítica" seria aquela capaz de acolher a realidade das pulsões, ao mesmo tempo em que não deve permitir o livre acesso delas à satisfação. A educação deve buscar um "nível ótimo" entre privação e permissividade.

Cifali e Imbert mostram, na análise dos textos freudianos, que houve o reconhecimento de que a psicanálise não oferece possibilidade de profilaxia das neuroses pela educação, tal como era desejado no início. Por outro lado, autores como August Aichhorn acreditaram que o educador poderia recorrer ao corpo teórico psicanalítico para esclarecer e corrigir sua tarefa.

Nesse momento do texto, os autores deparam com a problemática em torno da aplicação. Se fala-se em "aplicação", isso significa que os campos não se confundem. Por outro lado, resta saber da possibilidade de um encontro.

De que maneira a educação poderia cumprir com a sua função? Como a psicanálise contribuiria no contexto educativo? Esta é a pergunta que os psicanalistas herdaram de Freud. E, entre os pioneiros nessa busca pela conexão entre os campos, encontramos o pastor e pedagogo Pfister, que, encorajado por Freud, defendeu os direitos dos pedagogos à psicanálise. Cifali e Imbert ressalvam que tal entusiasmo em ambos reside no interesse dos psicanalistas em abrir o exercício da psicanálise para pessoas sem formação médica. Em "A questão da análise leiga" (entre 1913 e 1926) Freud esforça-se em não deixar a formação médica recobrir o empreendimento psicanalítico, impedindo-o de atingir seu objetivo e de limitar sua aplicação. Diante disso, Freud vislumbra a pedagogia (que põe fora do inventário das ciências) como via de aplicação psicanalítica.

Como nos mostram os autores, Freud, tendo avançado em seus trabalhos, reconsidera seu entusiasmo inicial e afirma a impossibilidade de que a psicanálise venha a substituir a educação, bem como delimita a "situação psicanalítica" no sentido de mostrar a especificidade do tratamento infantil. Dessa forma, insinua a necessidade de uma "pesquisa aprofundada" da realidade infantil no tratamento psicanalítico, que, de certa forma, anunciava o trabalho de sua filha, Anna Freud.

Disposto a apoiar o empreendimento da filha, Freud opõe-se a Melanie Klein. Anna Freud define que o trabalho analítico com crianças tem um fundo contraditório: é preciso que analise e eduque. A educação teria como propósito preparar a criança para a análise, na medida em que fortalecesse seu superego. Melanie Klein, por outro lado, denunciava o caráter esmagador e sádico do superego infantil e incluía na função do analista de crianças o que já fazia parte da atribuição do analista de adultos: aliviar a ação do superego.

Cifali e Imbert revelam uma certa parcialidade de Freud, que, a partir dos pressupostos de Anna, não mais expôs suas observações ou críticas diante dos trabalhos apresentados por outros autores que, dentro do campo educativo, estavam interessados na psicanálise. Assim ocorreu no prefácio a Jeunesse à l'abandon, de Aichhorn.

Os autores, então, fazem um percurso pelas proposições de Aichhorn e Zulliger. O primeiro vê-se preocupado em compreender a delinqüência, e por isso recorre aos ensinamentos psicanalíticos. Cifali e Imbert destacam esse autor como o primeiro a considerar a necessidade de uma reforma no "ambiente" educativo, definido na relação dual professor-aluno. Para tanto, Aichhorn descreve uma relação educativa favorável, a partir de uma "transferência positiva" e de uma "nova orientação do Ideal do ego".

Hans Zulliger, em Uma falha na pedagogia psicanalítica, reprova o privilégio da relação dual em detrimento da dimensão de grupo. Zulliger reflete sobre a relação do grupo de crianças com o professor a partir do modelo da relação da massa com seu líder. Nesse momento do texto, Cifali e Imbert analisam as aproximações - e os distanciamentos entre as proposições de Zulliger e as presentes em Psicologia de grupo e análise do ego, de Freud. Além disso, recorrem às formulações de Lacan sobre a distinção entre as dimensões do simbólico e do imaginário para revelar certa deficiência no texto de Zulliger. Ao mesmo tempo reconhecem o mérito do trabalho desse autor que saiu da análise da relação dual professor-aluno.

Freud e a pedagogia segue fazendo uma antologia de textos de Freud, de Aichhorn e de Zulliger que conduz o leitor na evolução das principais obras iniciais da conexão psicanálise e educação.

Enfim, trata-se de uma grande contribuição, tanto para os que estão neste momento iniciando sua reflexão em torno do que a psicanálise traz à educação, como para aqueles que já há algum tempo permanecem nesse exercício.