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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.5 no.9 São Paulo  2000

 

DOSSIÊ

 

Entre o dizer e o fazer: o discurso oficial sobre a inclusão e suas contradições

 

Between sayinc and doing: the official speech about inclusion and its contradictions

 

 

Regina Maria de SouzaI; Wilmar d'AngelisII; Viviane VerasIII

IPsicóloga, doutora em Lingüística e professora na Faculdade de Educação da Unicamp. É coordenadora do GT Linguagem e Surdez da Associação Nacional de Pós-Graduação em Letras e Lingüística
IILingüista, indigenista e pesquisador de história indígena do Sul. Professor no Departamento de Lingüística do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp
IIIPesquisadora do Projeto Língua Materna em Instância Paterna (Unicamp)

 

 


RESUMO

O presente trabalho analisa documentos e textos oficiais, editados nos últimos seis anos, que têm como tema a inclusão social e escolar de pessoas surdas. Nosso estudo tem por objetivo destacar que, embora alguns documentos considerem a necessidade da língua de sinais, no discurso oficial sobre a surdez (caracteristicamente médico) a Libras não é tratada como uma língua, mas tão-somente como um recurso auxiliar e instrumental para o ensino do português.

Língua de sinais; educação de surdos; inclusão


ABSTRACT

This paper analyses official documents and texts dating from the last six years which deal with the inclusion of deaf people in society and school. The study aims at highlighting the fact that, although some documents consider the necessity of the sign language, the Brazilian Sign Language (Libras), as it is treated by the official discourse on deafness (which is ch a ra c ter is tically medical), is not considered a language, but only an ancillary means in the teaching of/in Portuguese.

Sign language; deaf education; inclusion


 

 

Parece ser cada vez mais consensual a idéia de que a educação da pessoa surda deve considerar a presença da Língua Brasileira de Sinais (Libras) nos espaços de sala de aula. Como tese, essa constatação encontra eco nos anseios das comunidades surdas (Feneis, 1999; FMS, 1999), em textos de pesquisadores (cf. os trabalhos organizados por Skliar, 1999) e em documentos oficiais (MEC, 1994a; 1994b; 1994c; 1999; Presidência da República, 1999; entre outros). Essa diversidade em termos de grupos já nos faz suspeitar de que a compreensão da tese em questão é igualmente diversa, remetendo, portanto, a posições ideológicas também distintas.

O que discutimos neste texto é exatamente a questão da existência de pelo menos duas perspectivas radicalmente distintas na abordagem da surdez, o que faz com que tenham sentidos igualmente diferentes as sugestões de uma e de outra quanto ao uso da Libras no ensino de pessoas surdas. Em outras palavras, perguntamo-nos sobre o que sustenta distintos discursos sobre a surdez e suas respectivas conseqüências pedagógicas.

 

O DISCURSO OFICIAL

No presente trabalho, tomamos como "discurso oficial" os enunciados proferidos ou editados pelo MEC, e também documentos produzidos por personalidades públicas que ocupam cargos executivos em instâncias estatais.

De acordo com uma concepção bakhtiniana, o enunciado constitui uma unidade discursiva que não tem origem em si mesma e que se caracteriza por ser sempre uma resposta (de adesão ou réplica) a uma cadeia de outros enunciados que versam sobre o tema considerado. Nesse sentido, encontra-se em estreita relação intertextual com outros enunciados já produzidos sobre o assunto (Bakhtin, 1952-71).

Evidentemente, tomado como elo de um conjunto, o enunciado bakhtiniano poderia ser entendido como algo que postula, por si mesmo, um tratamento de inclusão (de um enunciado em uma rede), assinando assim seu compromisso com uma totalidade. Entretanto, uma vez que tais enunciados são aqui citados (do latim citare: pôr em movimento), destacados de seu contexto de origem, submetidos à regência de outras ideologias, assumiremos que essa possibilidade, também por si mesma, impede tal totalização. Daí decorre também o fato de o dizer nunca ser neutro - cada enunciado, ao se inscrever em um campo ideológico, contrapõe-se a outros enunciados possíveis, adquirindo e refletindo outras tonalidades.

Foucault (1995) nomeia como "formação discursiva" um conjunto de enunciados submetidos às mesmas regularidades, às mesmas regras de formação ideológica. Tais regras são entendidas como as condições de existência de objetos, modalidades de enunciação, conceitos e escolhas temáticas em uma dada repartição discursiva. Assim sendo, os enunciados que se situam em uma mesma formação discursiva remetem-se também a uma igual formação ideológica. Cada formação discursiva determina, em uma dada época, o horizonte de possibilidades do dizer sobre um objeto, atuando assim como um mecanismo que desloca, dispersa e, ao mesmo tempo, impõe limites às transformações futuras. Em uma tal concepção, não existem verdades exteriores à linguagem. Do mesmo modo, o que se classifica como normalidade e deficiência são efeitos de discursos social e historicamente determinados.

Como disse Canguilhem (1995), o termo "normal" não é um conceito estático nem tem existência a priori, como se fosse um atributo intrínseco a determinada condição orgânica ou social. Uma norma, ao expurgar tudo o que em referência a ela mesma não pode ser considerado normal, permite a possibilidade da inversão de termos:

"Assim, qualquer preferência por uma ordem possível é acompanhada - geralmente de maneira implícita -pela aversão à ordem inversa possível. (...) a norma lógica de prevalência do verdadeiro sobre o falso pode ser invertida, de modo a se transformar em norma de prevalência do falso sobre o verdadeiro, assim como a norma ética de prevalência da sinceridade sobre a hipocrisia pode ser transformada em norma de prevalência da hipocrisia sobre a sinceridade" (Canguilhem, 1995, pp.212-3).

Desse modo, o "verdadeiro" de hoje bem pode ser o "falso" de amanhã. E essa inversão é quase sempre política.

No presente trabalho, buscamos expor os sentidos, a tonalidade ideológica e a face política que termos como "surdez" e "Libras" adquirem em enunciados oficiais, bem como discutir as práticas pedagógicas que deles podem ser decorrentes. Foram eleitos, deliberadamente, textos recentes, na medida em que o que nos moveu foi a compreensão das possibilidades atuais de se repensar a educação dos surdos a partir do dizer governamental.

O documento mais recente à nossa disposição é o decreto presidencial de 20/12/99, que "dispõe sobre a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência" (Presidência da República, 1999). Nele, a pessoa surda é retratada como "portando" uma deficiência; definida, por sua vez, como "toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica que gere incapacidade para o desempenho de atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser humano" (Capítulo I, Artigo 3º, item 1º). Como desvio da normalidade, a deficiência auditiva é classificada em termos de grau - da surdez leve à anacusia. Segundo o decreto, a igualdade de condições de aprendizagem, entre os alunos deficientes e os demais, deve ser garantida por meio de "reabilitação integral"; "escolarização em estabelecimentos de ensino regular com a provisão dos apoios necessários, ou em estabelecimento de ensino especial" (Capítulo VII, Artigo 152). Em outras palavras, tanto no decreto, quanto nos Parâmetros curriculares nacionais sobre Adaptações Curriculares (MEC, 1999) e no Vol. 1 da Coleção Programa de capacitação de recursos humanos do ensino fundamental - Deficiência Auditiva, também publicado pelo MEC, a surdez é conceituada a partir do discurso médico (MEC, 1997).

O último que citamos - o livro sobre Deficiência Auditiva - foi distribuído a todas as escolas públicas como recurso de capacitação de professores na ativa e, portanto, constitui um mecanismo de perpetuação da compreensão da surdez como deficiência. Uma adversidade que não é nem histórica nem socialmente determinada, mas inerente ao próprio sujeito. Desse modo, os professores são formados para narrar seus alunos surdos a partir de uma falta em relação aos que ouvem, não em relação àquilo que esses alunos desejam. Seus apelos em sinais passam a não encontrar escuta, embora sejam vistos por todos na classe.

Quando os textos editados pelo MEC discorrem sobre a prática pedagógica, no entanto, insistem na necessidade da consolidação de modelos que rompam com a idéia de incapacitação, a fim se "respeitar a atenção à diversidade e manter a ação pedagógica 'normal'" (MEC, 1999). Que efeitos de sentido a precaução das aspas insere nesse enunciado?

Talvez as aspas em "normal" queiram escrever um reconhecimento de que a ação pedagógica, no caso dos deficientes, é desigual em relação ao "grupo de referência do aluno". Justificamos: o professor, ao ser convocado a conceituar o surdo como deficiente, é autorizado a fazer adaptações curriculares, e, entre elas, eliminar "conteúdos que, embora essenciais no currículo, sejam inviáveis de aquisição por parte do aluno" (p.39). Ou, ainda, é perfeitamente justificável que possa realizar a "eliminação de objetivos básicos - quando extrapolam as condições do aluno para atingi-los, temporária ou permanentemente" (MEC, 1999, p.39).

A busca de uma política única dirigida a todas as deficiências (todos são deficientemente iguais) pode ser a razão mais aparente para que o aluno surdo seja concebido sob o viés da deficiência mental; entretanto, é possível que tal concepção possa ter raízes em outro lugar. Uma vez que a língua é tomada como meio de expressão e comunicação, no ensino normal as falhas na comunicação são atribuídas à falta de transparência da linguagem, que falhou em espelhar com perfeição o pensamento; no caso da língua de sinais, quando essas falhas aparecem, é o pensamento do surdo que é posto sob suspeita, é aí que está a deficiência.

Todavia, os PCNs são claros. As adaptações não podem reter o aluno, pelo contrário, devem possibilitar-lhe a conclusão do curso:

"Embora muitos educadores possam interpretar essas medidas como 'abrir mão' da qualidade de ensino ou empobrecer as expectativas educacionais, essas decisões curriculares podem ser as únicas alternativas possíveis para os alunos que apresentam necessidades especiais como forma de evitar sua exclusão" (MEC, 1999, p.38).

Sabemos que a urgência em aprovar o maior número possível de alunos, conferindo-lhes diplomas de conclusão de Ensino Fundamental, obedece a determinações de ordem política que, nas atuais circunstâncias, dispensam comentários; mas é preciso destacar que o rótulo "alunos com necessidades especiais" refere-se não só aos alunos que deverão ser incluídos, mas também àqueles que poderiam vir a ser excluídos e que, portanto, no momento estão incluídos nela. Por outro lado, a possibilidade de "empobrecimento das expectativas educacionais" passa a ser responsabilidade desses mesmos alunos especiais (é por causa deles que se abre mão da qualidade), garantindo a imunidade dessa escola diplomática. Às necessidades dos alunos especiais (e aqui se incluem aqueles cuja adversidade não é inerente, mas histórica e socialmente determinada), essa escola responde com a exclusão dos objetivos "básicos", entre eles, como se pode constatar pela mídia, a alfabetização 1

No caso específico da surdez, os professores e as escolas são desafiados a se valerem de estratégias que possam minimizar a distância entre a normalidade ouvinte e a anormalidade surda, sem que isso implique nenhuma ruptura, por exemplo, com o oralismo. Algumas delas: o encaminhamento do aluno para a protetização; o uso de tablados, em sala, para facilitar a propagação dos sons; a disponibilização de "salas-ambiente", na escola, para treinamento auditivo e da fala; o uso de material visual de apoio; o posicionamento do aluno de modo que possa ler os lábios do professor (e aí é o professor que deve se comportar como um deficiente físico, evitando movimentar-se); e o emprego de "sistema alternativo de comunicação adaptado às possibilidades do aluno: leitura orofacial, gestos e língua de sinais" (MEC, 1999, p.46).

Ao abordar a surdez, sustentan-do-se no discurso médico, o discurso oficial mantém a relação opositiva, que constitui de fato uma relação hierárquica entre o "normal" de um lado e, de outro, o "patológico/ deficiente/portador de necessidades educativas especiais/diversas do normal". O apelo à escala médica como dispositivo de avaliação dos graus de surdez dá ao discurso oficial uma legitimidade cientificista e permite-lhe estabelecer, pelo simples fato de atestar as dificuldades do surdo, a possibilidade de "otimizar suas potencialidades", garantindo, assim, a estabilidade de uma ordem social idealizada. Entretanto, como afirma Canguilhem (1995), o normal e sua contraparte - o anormal - não constituem entidades empíricas, ou seja, "não há patologia objetiva" (p.186). Ainda que se possam descrever as estruturas e os comportamentos, não se pode qualificar tudo isso de patológicos com base em critérios puramente formais. "Objetivamente, só se podem definir variedades ou diferenças, sem valor vital positivo ou negativo" (p.186).

No rastro da lógica classificatória das deficiências, a partir do padrão considerado normal para o ser humano (Decreto 3298, Capítulo I, Artigo 3º, item 1), nos documentos está decretada a inclusão. Neles, o surdo é tomado como categoria de exclusão, uma vez que é definido em relação ao que é rotulado positivamente como normal (ou, seja, é definido a partir do grau de distância em que sua perda o exclui da normalidade). Assim, no processo de inclusão (de surdos, cegos, índios, pessoas com síndrome de Down, autistas, e outros), é o excluído, o desviante que se revela a norma, pondo em ação a lógica implacável da suplementandade.

A partir do exposto até aqui, seria interessante refletirmos sobre os tipos de práticas pedagógicas que podem ser derivadas dos discursos oficiais sobre aqueles que não ouvem, mas antes devemos chamar a atenção para o modo como a língua de sinais é concebida por esses mesmos discursos. Para irmos direto ao ponto, é legítimo afirmar que a Libras é compreendida como um recurso comunicativo auxiliar ou instrumental tanto para a compreensão e aprendizado do português pelo aluno como para seu ensino pelo professor.

De fato, a ênfase no papel comunicativo - e não constitutivo - da Libras em relação à subjetividade e à vida social dos surdos é facilmente constatada. No Programa de capacitação (MEC, 1997), define-se como "estimulação da linguagem" a "aplicação de métodos e técnicas para a aquisição, treino e uso da expressão gráfica e/ou palavra articulada ou ainda da Libras como meio de expressão e de comunicação..." (p.130).

Nos PCNs (MEC, 1999), a "linguagem gestual" e a "língua de sinais" são consideradas entidades distintas, mas são postas, ambas, na categoria de recursos complementares para o favorecimento da compreensão de textos escritos e como "sistema alternativo de comunicação adaptado às possibilidades do aluno" (p.46). Nesse documento, a Libras é explicitamente representada como um instrumento, entre outros de natureza visual, de acesso ao português ou como elemento mediador nas relações entre professor e aluno surdo, com estatuto similar à escrita Braille.

Nas Sugestões de Estratégias (Diário Oficial da União, nº 246, de 28/12/94, Seção I), a Libras é entendida também como recurso facilitador para o entendimento, pelo surdo, de instruções escritas ou faladas em contextos de avaliação, como, por exemplo, durante o vestibular. Recomenda-se, nesse texto, que os avaliadores sejam notificados das "dificuldades lingüísticas do portador de deficiência auditiva" (MEC, 1994b, Dos Portadores de Deficiência Auditiva, sem número de página). Em tal enunciado, as dificuldades lingüísticas estão vinculadas à falta da audição, e não à presença dos sinais, isto é, ao desafio que o aluno surdo poderia encontrar ao se ver compelido a lidar com duas línguas muito diferentes entre si em uma situação de exame. Abordar as dificuldades lingüísticas a partir da falta da audição é coerente com o pressuposto de que a pessoa que não ouve deve ser surda preferencialmente em português e, por isso, deve estar incluída, também preferencialmente, com ouvintes e falantes. Se dificuldades forem encontradas, no momento de ensiná-la em português, providências devem ser tomadas no sentido de garantir o acesso do aluno à Libras (idéia presente, ou suposta, em todos os documentos considerados). Sugere-se, ainda, a flexibilização da correção dos textos em português.

Um outro aspecto que merece especial consideração é que os documentos, embora baseados em tabelas científicas, apenas sugerem medidas a serem tomadas pelo professor e/ou pela escola no caso da presença de sujeitos deficientes, o que nos leva a perguntar pela construção teórica que enformana tal prática. O professor, uma vez que toma a língua de sinais como código auxiliar, está em pleno direito de tentar adivinhar o que o surdo quer dizer. As estratégias, qualificadas como sugestões, podem ou não ser acatadas, sem que haja uma contraparte legal para cada uma das opções assumidas. O dever da escola acaba por ser reduzido, assim, à não recusa do "deficiente". No caso dos surdos, isto quer dizer que o Estado mantém a mesma política lingüística que adotava antes da Conferência de Salamanca, ocorrida em 1994: continua assumindo tacitamente que a língua de instrução é, para todos os alunos brasileiros, o português. Dessa forma, o professor pode continuar ensinando/falando em português na presença de alunos surdos (embora os textos recomendem que se empenhe em aprender e em usar a Libras com eles). Nesse caso, não há troca, porque não há língua comum, e as trocas são legisladas pela língua. Com os sinais funcionando como código, e não como signos, que suscitam uma representação, a significação não depende do que a precede nem do que a segue; ela é imediata, colada ao gesto, paralisada. A língua de sinais - simbólica - recebe então uma utilização imaginária, sem nenhuma referência às ações recíprocas que fazem o laço social. Enfim, os gestos, tomados em si mesmos, são um beco sem saída, levando a uma oposição dual sem fundo diferencial, sem pressupor um sistema de referências que permita interpretá-los, comandando um automatismo de execução.

Se nossa análise estiver correta, a educação de surdos não pode ir além do que já se tem: a manutenção de uma política essencialmente monolíngüe, seja pela via do enfoque médico, seja pela interpretação pedagógica do vale-tudo semiótico, seja por programas bilíngües que privilegiam o ensino em/do português. Tais programas, em geral, não têm um objetivo plural. A língua do grupo minoritário - no caso, a de sinais - ou é negada, ou é utilizada como forma de acesso à língua majoritária. Segundo Mohanty and Perregaux (1997), políticas lingüísticas com essa orientação compõem, na escola, programas bilíngües fracos, que acabam por desaguar no monolingüismo na língua de prestígio - quando conseguem ter algum tipo de sucesso.

Com a redução da Libras a mera estratégia de acesso ao português, passa a ser irrelevante a presença de professores surdos na escola para que possam fazer circular as realizações culturais engendradas nas comunidades surdas (as histórias de constituição de tais comunidades; as singularidades que guardam entre si; as narrativas de seus membros, enquanto formas literárias sinalizadas; suas piadas, jogos teatrais, festividades etc. - elementos legítimos de cultura). Quando presente, o professor surdo continuará sendo posto em posição hierárquica inferior à do professor ouvinte, já que será mantido como uma espécie de auxiliar no atendimento das demandas curriculares convencionais.

Ao reduzir os sinais a mero recurso comunicativo auxiliar, o discurso oficial não considera a Libras como produto de trabalho histórico tecido por gerações de surdos que com ela produziram distintas leituras de mundo, criaram formas próprias de agregamento e de territorialização. Todas essas características deixam de ser levadas em conta quando a língua é desvinculada dos espaços históricos e sociais em que é fermentada. Definida como forma de comunicação visual e alternativa, ao Estado compete apenas recomendar seu uso, sem que seja necessário que tome para si a responsabilidade pela criação de cursos de professores surdos e de intérpretes em sinais. Fica também desobrigado de garantir, sob a forma de leis, direitos lingüísticos aos alunos surdos.

 

O DECRETO 3298

Vários motivos justificam uma atenção mais detalhada a esse decreto. Em primeiro lugar, porque, como decreto, constitui uma determinação ou ordem, nesse caso emanada do próprio presidente da República, o que lhe imprime a força que toda lei possui. Como cada novo decreto, cria a expectativa de que algo ainda não dito será anunciado - novidade que, supõe-se, alterará o futuro de forma relevante em relação ao passado, mas que pode também gerar a suspeita de que concepções já assumidas saíram, enfim, da clandestinidade ao serem formalmente reconhecidas. Em segundo lugar, porque dispõe sobre a Política Nacional para a Integração da Pessoa Deficiente, explicitando um conjunto de princípios que deveriam nortear a planificação das ações pedagógicas. Em terceiro, porque, como diretriz, exclui um conjunto de outras práticas educacionais possíveis que só encontrariam ancoradouro com o rompimento, pelo Estado, dos compromissos ideológicos que atualmente sustentam seu discurso.

A nosso ver, o Decreto 3298 é a consolidação, em lei, de uma política de inclusão, que é, por sua vez, a resolução prática de questões suscitadas por um determinado discurso acerca da sociedade. O que nos diz, sobre a sociedade, o discurso da inclusão?

Essa é a primeira pergunta que julgamos importante considerar.

Comecemos, por isso, atentando aos artigos 6º e 7º do referido decreto, que tratam de suas Diretrizes e Objetivos. Lê-se, no Artigo 6º.

Art. 6º São diretrizes da Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência:

I - estabelecer mecanismos que acelerem e favoreçam a inclusão social da pessoa portadora de deficiência.

O Capítulo VII diz que estão entre os "objetivos da Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência":

II - [a] integração das ações dos órgãos e das entidades públicos e privados nas áreas de saúde, educação, trabalho, transporte, assistência social, edificação pública, previdência social, habitação, cultura, desporto e lazer, visando à prevenção das deficiências, à eliminação de suas múltiplas causas e à inclusão social.

A pressuposição admitida na expressão "que acelerem e favoreçam a inclusão social" (Art. 6º) é que "pessoa portadora de deficiência", por definição, está fora do convívio social. Em outras palavras, há uma normalidade admitida, a partir da qual o deficiente é, por definição, um ser associal. Já a proposta de "mecanismos" que acelerem e favoreçam tal inclusão traz à luz uma de duas outras pressuposições possíveis, a saber: a) a de que o convívio social ou a participação na sociedade é algo que se inicia (para todos) em algum momento bastante posterior ao nascimento, coincidindo com o ingresso no ensino escolar ou com a entrada no mercado de trabalho; b) a de que as "pessoas portadoras de deficiência", diferentemente das pessoas "normais", vivem um período de exterioridade em relação à sociedade e que, em algum momento, sua inclusão na sociedade é desejável.

É bom destacar que a idéia de inclusão assenta-se, antes de tudo, sobre a crença na existência de um todo social, único e harmonioso, que reedita a concepção positivista do corpo social. Qualquer ruptura nessa concepção harmoniosa é vista como disfunção, anormalidade ou cancro. Para os representantes (ou praticantes) dessas rupturas as soluções propostas são, respectivamente, reeducação ou enquadramento (como no caso dos menores infratores); normalização ou cura (no caso da surdez) e extirpação ou limpeza (no caso, por exemplo, das investidas contra os movimentos organizados através da repressão policial ou pela veiculação maciça, pela mídia, da visão oficial).

É interessante observar, igualmente, que a política de inclusão é fruto do olhar caridoso que reconhece, no outro (ou em certos outros), seu não-pertencimento ao todo social, ou sua não-integração harmoniosa ao corpo social, por razões aborigine, ou seja, inerentes à natureza do sujeito ou grupo. Caridoso porque pretende, convertido em decreto, devolver à sociedade indivíduos funcionando em uníssono com o todo. Esse é o caso dos surdos, mas também é o caso dos povos indígenas. Em suma, as políticas de inclusão buscam garantir, em primeiro lugar, não o bem-estar das pessoas e grupos aos quais elas se dirigem, mas, antes de tudo, o bem-estar social, a ordem e o progresso, ou seja, a manutenção da harmonia e a não-ruptura do pacto de colaboração mútua, sem conflitos, entre as diferentes partes desse corpo social.

A suposição de que haja excluídos pressupõe a existência de incluídos e, mais, que a situação dos incluídos é a da normalidade, mas isso deve ser posto sob suspeita. De fato, a grande divisão, entre proprietários e não-proprietários de meios de produção, não é assim tão explícita, para a maioria das pessoas, por efeito do próprio discurso da classe dominante e de seus meios de difundi-lo e hegemonizá-lo. Assim, o senso comum percebe e valoriza as distinções sociais em termos de "quem ganha mais" e "quem ganha menos". Nessa escala, os deficientes costumam ser vistos como pessoas que não ganham (e, freqüentemente, pessoas que exigem esforços de outros para sustentá-los). Por tudo isso, sem que sejam vistos como estando fora ou excluídos da sociedade, os deficientes são entendidos como parte dela, mas uma parte subalterna, inferior, incômoda e improdutiva. Imaginar que certas políticas podem realizar o milagre da inclusão é supor possível, no sistema capitalista, políticas voltadas contra a lógica e a manutenção do próprio sistema.

Mas voltemos ao Decreto 3298. No caso específico da surdez, o documento apresenta uma curiosa forma de definição, em seu Artigo 4º:

II - deficiência auditiva - perda parcial ou total das possibilidades auditivas sonoras, variando de graus e níveis na forma seguinte:

a) de 25 a 40 decibéis (db) -surdez leve, b) de 41 a 55 db - surdez moderada, c) de 56 a 70 db - surdez acentuada, d) de 71 a 90 db - surdez severa, e) acima de 91 db - surdez profunda, e f) anacusia.

Por que, para definir deficiência auditiva, foi necessário dizer mais do que a parte inicial da frase: "Perda parcial ou total das possibilidades auditivas sonoras"? Em que essa escala médica vai ordenar o fazer profissional do professor? (cf. Lajonquière, 1993). Essa, ou alguma tabela do tipo, só faria sentido se o decreto propusesse diferentes políticas dependendo da situação particular definida por graus e níveis de surdez. Mas nada disso acontece.

E, se ficássemos na frase inicial, todos os surdos se sentiriam contemplados ou se reconheceriam na definição? Vejamos: "Deficiência auditiva - perda parcial ou total das possibilidades auditivas sonoras". Quem tenha nascido surdo perdeu o que nunca teve? Ou deve-se entender que o decreto exclui os surdos congênitos da definição de "deficiência auditiva", tomando como tais apenas os casos de surdez adquirida?

A grande e central questão é exatamente essa: definir um conjunto de pessoas pelo viés da deficiência, em lugar de assumir uma perspectiva que reconheça diferenças. Em outras palavras, o grande limitador é uma perspectiva que toma o outro pelo que ele não tem em relação a nós (os formuladores do discurso), e não pela falta que é constitutiva de cada um de nós, e que lhe permitiria desejar. Reconhecer os surdos pela via do discurso comparativo pronuncia-os inevitavelmente como sujeitos-menos. Os sujeitos-menos, as pessoas com perdas ou faltas, serão sempre alvo de políticas de acréscimo, que tratam de completá-las no que lhes falta: próteses, implantes, aparelhos2; ou de compensá-las por suas faltas com currículos adaptados às suas possibilidades e limitações intrínsecas; objetivos escolares simplificados, ou mesmo facultados; exigências de capacitação, em muitos casos, reduzidas. São medidas de ordens distintas que convergem, todas, para um mesmo objetivo: a inclusão.

Não se trata de negar, por exemplo, o benefício das próteses para muitas pessoas, ou a legitimidade da adoção de recursos da medicina, quando seus benefícios sejam reais. Trata-se de recusar uma perspectiva de normalização que se restrinja a esses benefícios. No caso da surdez, a perspectiva da diferença implica, para o Estado, o reconhecimento do direito a formas de ensino diferenciadas no conjunto da sociedade. Em outras palavras, escolas, ensino, materiais educativos e profissionais adequados para situações distintas, como as dos surdos, das sociedades indígenas, e outros.

 

CONCLUSÃO

Nas seções precedentes, percorremos o discurso oficial ou tratamos de expô-lo na profusão de documentos recentes que tratam das pessoas "portadoras de deficiência" e, em particular, dos "deficientes auditivos" (no jargão próprio daquele discurso). Apontamos ali a diferença de perspectiva que subsidia a fala oficial sobre a inclusão, em contraposição a um discurso de reconhecimento de diferenças.

Reconhecer diferenças não significa, como sugeriria uma leitura equivocada, construir um discurso justificador das (e resignado em face das) distinções sociais, incluindo as diferenças de classe. Reconhecer diferenças significa recusar o discurso da normalidade e as práticas de normalização, que pretendem salvaguardar a alegada pureza das identidades que ela parece englobar. Reconhecer as diferenças significa exigir políticas públicas que levem em conta os direitos dos segmentos sociais diferenciados, e recusar políticas públicas assistencialistas e práticas que, em nome da inclusão, negam direitos essenciais, como o direito dos surdos a uma língua própria.

Reconhecer diferenças é também recusar a perspectiva segundo a qual a exclusão e a marginalização não são desejáveis na sociedade capitalista, e denunciar a exclusão e a marginalização como características componentes do próprio sistema. O discurso da inclusão, voltado a setores minoritários, tenta ser, também, um discurso da classe dominante sobre si mesma (construindo uma imagem de não-discriminação e de preocupação social) e sobre a própria sociedade (resgatando a imagem positivista da harmonia do corpo social).

A Libras, língua das comunidades surdas e língua da constituição do sujeito surdo como pessoa e como cidadão, não tem reconhecimento em tal perspectiva de inclusão, a não ser como mecanismo de acesso à língua oficial ou como recurso de comunicação (comunicação que se revela impraticável fora de uma língua comum). No entanto, sua força vital é tão inegável, ao lado do fracasso reiterado das práticas oralistas mais radicais, que o discurso inclusivo dá lugar a ela, ainda que como instrumento auxiliar de ensino. Vale lembrar que reconhecer a Libras como língua significa também outorgar-lhe os direitos acadêmicos conferidos a todas as línguas: nenhuma língua é inferior a outra, todas são igualmente eficazes, todas servem à comunicação.

O desafio que temos pela frente é, aproveitando-nos dessa maior tolerância pelos sinais nas escolas, inverter esse jogo e criar espaços efetivos nos quais a Libras seja, de fato, reconhecida como língua. Realizando esforços para que crianças surdas possam ser alfabetizadas em sinais, ser escritoras e artistas em sinais, ter acesso ao currículo em sinais, sem que se negligencie minimamente o ensino do português, sem que sejam dispensadas de aprender o inglês, o espanhol e outras línguas, sem que haja necessidade de serem brindadas com um currículo reduzido. Mas uma escola dessas requer uma transformação radical do que temos agora, não apenas quanto ao tempo de permanência da criança na escola ou em relação a uma análise crítica do currículo, mas demandando, sobretudo, a presença de professores surdos e ouvintes que aceitem romper com o discurso da deficiência.

É bem verdade que, nesse caminho, estaríamos conferindo grande visibilidade à condição sociolingüística dos surdos e, potencializando-a, tornaríamos urgente o reconhecimento de sua condição como membros de grupos lingüisticamente minoritários. Isso teria, obviamente, implicações políticas e sociais sérias.

No passado, Itard (1842), Bell (1883) e Whitney (cf. Saussure, 1916) já haviam considerado que seres humanos poderiam constituir sociedades a partir de intercâmbios exclusivamente realizados em sinais. Para Whitney, lingüista americano do século XIX, "que considera a língua como instituição social (...) os homens poderiam também ter escolhido o gesto e empregar imagens visuais em lugar de imagens acústicas" (citado em Saussure, 1916, p. 17). Itard (1842), já na primeira metade do século XIX, afirmava que a partir dos gestos o homem, se não ouvisse, poderia ter inventado uma escrita para registrar suas imagens visuais e constituir civilizações tão sofisticadas quanto aquelas subsidiadas pela fala. Em 1817, Bebian defendeu a tese de que os surdos deveriam ser instruídos em sinais, também em sua modalidade escrita. Bell (1883), no final do século XIX, já expressava o temor de que com isso se favorecesse a criação de uma variante surda da raça humana.

Talvez valesse a pena considerarmos que o fato de ainda não termos conseguido viabilizar uma escola para surdos, a partir do reconhecimento radical da diferença lingüística entre nós e eles, talvez se deva à dificuldade de rompermos com a nossa própria história e lógica de colonização, ruptura que poderia nos permitir conceder ao outro ser visto e escutado em sua diferença. Um tema sem dúvida interessante, embora provavelmente a ser apagado, no bojo das atuais comemorações desses últimos 500 anos.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Recebido em 12/10/1999

 

 

NOTAS

1 Como exemplo, tome-se a reportagem publicada pela revista IstoÉ em 10/5/ 2000, nº 1597, pp.54-6. O título denuncia: "Ensino reprovado: sem repetência, alunos de escolas públicas chegam até a sexta série sem saber ler, escrever nem fazer as quatro operações aritméticas".
2 O Artigo 19º do Decreto 3298, chama as "próteses auditivas, visuais e físicas" de "ajudas técnicas". No caso dos índios, os discursos oficiais (do Estado ou das Missões) costumam ser muito explícitos: é preciso "ensinar a trabalhar", "ensinar a vestir-se", "ensinar higiene", "dar ferramentas", "iniciar a educação" (ou seja, introduzir ensino escolar), etc.