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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.5 no.9 São Paulo  2000

 

ARTIGO

 

Práticas linguageiras e fracasso escolar1

 

Practices of language and school failure

 

 

Bernard Charlot

Professor de Ciências de Educação na Universidade de Paris 8

 

 


RESUMO

Sabe-se que o fracasso escolar tem uma relação com a linguagem. O que é aquela relação? Em uma abordagem tradicional destacam-se as carências na linguagem dos alunos fracassados, notadamente dos alunos dos bairros populares. Em uma abordagem mais nova, enfoca-se a pertinência da linguagem popular enquanto meio de expressão e comunicação. A abordagem mais recente salienta as "práticas linguageiras", isto é, o uso da linguagem enquanto prática social, cultural, pessoal, em uma dada situação. O artigo apresenta estas abordagens na perspectiva do problema do fracasso escolar e também dados empíricos relacionados às práticas linguageiras dos alunos de bairro populares.

Fracasso escolar; linguagem; deficiências de linguagem


ABSTRACT

It is well known that school failure is related with language. But what is exactly this relationship? A traditional approach points out the deficiencies in the language, especially among the students from popular suburbs. A more recent approach focuses on the pertinence of the language spoken by those students as medium of expression and the most recent approach emphasizes the practices of language, that means the use of language as social, cultural and personal practice, into a given situation. This article presents those approaches into the perspective of the problem of school failure and it also deals with empirical data related to the practices of language of students from popular backgrounds.

School failure; language; language deficiences


 

 

Desde muito tempo atrás sabe-se que o chamado fracasso escolar tem relação com a linguagem1. Sabe-se disso porque a escola é um mundo de cultura escrita. Desde o início da escola, o desafio é aprender a ler e a escrever, isto é, entrar no mundo dos textos, de uma linguagem que não é igual à linguagem da vida cotidiana. Sabe-se disso também porque os professores enfrentam a dificuldade da língua no dia-a-dia da sala de aula. Assim, as inovações pedagógicas nascidas no chão da sala de aula deram uma importância maior à questão da linguagem - as de Freinet por exemplo, como o texto livre, o uso da imprensa e da correspondência escolar. Enfim, sabe-se disso porque as pesquisas, notadamente as de Basil Bernstein, mostraram haver uma ligação entre linguagem, socialização e aprendizagem. Assim, é claro que existe uma relação entre linguagem e fracasso escolar. Mas o que é essa relação, isso não é claro.

Começarei apresentando alguns dados empíricos que permitem melhor entender o papel das práticas linguageiras no fracasso escolar, notadamente no fracasso dos jovens de bairros populares. Em seguida, desenvolverei uma reflexão teórica sobre várias abordagens da relação entre a linguagem e o fracasso escolar.

 

PRÁTICAS LINGUAGEIRAS E FRACASSO ESCOLAR: ALGUNS DADOS EMPÍRICOS

Em primeiro lugar, gostaria de mencionar algumas pesquisas etnográficas, tanto inglesas quanto francesas, que evidenciaram o caráter específico da questão e do questionar na escola.

Na vida cotidiana, quem questiona é alguém ignorando uma coisa e, por isso, pedindo informações. Ao contrário, na escola, o professor apresenta uma questão apenas quando ele conhece a resposta. Não é para pedir uma informação, a questão do professor, é sim para mandar os alunos responderem o que o professor já conhece. O questionar na escola, portanto, é muito diferente do questionar na vida cotidiana.

Além disso, esse questionar funciona conforme um certo rito, de três tempos. Um: o professor põe a questão. Dois: o aluno responde. Três: o professor avalia a resposta ("Muito bem", "Não é exatamente isso"...). Esse rito não pode variar. Imaginem o que sucederia se o aluno apresentasse uma questão para verificar se o professor conhece a resposta e avaliasse essa resposta do professor...

Além do mais, quando o professor prossegue sob a forma "questões e respostas" - os pesquisadores evidenciaram uma técnica especial usada inconscientemente pelo professor -, ele apresenta a questão, espera a resposta; se esta não chegar, ele dá uma indicação suplementar para ajudar os alunos a encontrarem a resposta; depois ele espera novamente a resposta, se esta não chegar, o professor dá mais uma indicação; e assim por diante até a resposta chegar (aquela que o professor está esperando). Isso significa que os alunos, enquanto eles estão buscando a resposta, devem não apenas refletir no conteúdo da questão, mas também interpretar a fala do professor. Para se tornar um bom aluno, deve-se aprender muitas coisas... até mesmo a se tornar um bom aluno, isto é, a entrar em certas práticas escolares diferentes daquelas da vida cotidiana, notadamente em práticas linguageiras específicas.

A escola supõe uma certa relação com a linguagem. Na escola, a linguagem não é apenas um meio para dizer alguma coisa, é também o objeto mesmo da reflexão. Se o aluno não entrar nessa relação com a linguagem, se levar a sério as questões do professor, ele vai propor respostas certas, mas engraçadas. Recentemente, um colega português contou-me uma história ocorrida quando ele era professor de língua portuguesa, já faz tempo, na cidade do Porto, em Portugal. Ele tentava ensinar para jovens de um bairro popular o que é, gramaticalmente, o sujeito. Explicou que o sujeito é quem faz a ação. Depois, ele deu um exemplo: "Eu vou pescar". E ele perguntou aos alunos: "Quem vai pescar?" E um aluno respondeu: "É o senhor, professor"...

A escola exige uma certa postura perante a linguagem. Por um lado, essa postura é artificial: não se fala assim na vida cotidiana. Mas, por outro lado, essa postura permite entrar em universos de saberes que não existem na vida cotidiana. Os alunos queixam-se porque sempre na escola "fala-se, fala-se, fala-se", e, além disso, não se fala da mesma maneira que se fala na vida. É essa, porém, a tarefa específica da escola: permitir aos jovens entrar em mundos que não existem no dia-a-dia da vida, em atividades intelectuais específicas, em uma relação específica com a linguagem. Não é para afastar os jovens da vida, é sim para ajudá-los a melhor entender a vida e, se puderem, mudá-la.

Mas a escola deve construir essa relação com a linguagem, indispensável para que alguém seja bem-sucedido na escola. Essa relação deve ser considerada como um dos objetivos fundamentais da formação. O problema é que, muitas vezes, a escola supõe essa relação, como se já tivesse sido construída. Se a escola não der o que permite ser bem-sucedido na escola, somente poderão ser bem-sucedidos os alunos que já receberam isso fora da escola - quer dizer, em sua família.

A relação com a linguagem aparece como fundamental na questão do fracasso escolar. Agora, gostaria de evocar as pesquisas que fizemos sobre esse assunto, eu e minha equipe. Estamos pesquisando, já há doze anos, a relação com o saber e com a escola dos jovens, particularmente dos jovens de meio social popular. Para falar simplesmente, nossas pesquisas tratam de três questões básicas: que sentido tem para um jovem o fato de ir à escola, o fato de se mobilizar para estudar (ou não se mobilizar), o fato de aprender qualquer coisa, seja na escola, seja em outro lugar. Evidentemente, nós chegamos à questão: e que sentido faz para esse jovem o fato de falar e de escrever na escola?

Pedimos, notadamente, aos alunos que escrevessem um texto contando (ou tentando contar...) tudo o que eles aprenderam em sua vida, qualquer que seja o lugar. Podem-se constatar diferenças importantes entre os textos dos alunos bem-sucedidos e os textos dos alunos fracassados.

Assim, os alunos fracassados (muitas vezes oriundos de famílias populares) escreveram textos deste tipo: "Aprendi a andar, falar, lavar a louça, cantar, tocar música, escrever..." Enquanto os alunos bem-sucedidos escreveram textos deste tipo: "Aprendi as línguas estrangeiras, porque nesta época na Europa deve-se conhecer a língua internacional que é o inglês e também o alemão por causa da reunificação das duas Alemanhas..." Os primeiros, fracassados, produzem textos curtos, dizendo apenas o que o jovem aprendeu - muitas vezes, com listas de palavras, sem sequer fazerem frases. Os segundos, bem-sucedidos, produzem textos mais longos, nos quais eles falam sobre o que aprenderam, tornando-se o saber mesmo um objeto do discurso, em textos construídos.

Nos textos dos alunos fracassados, a linguagem permite dizer as coisas, nada mais. O aluno responde, dá informações, e acabou. Não comenta o que ele está escrevendo, como se a linguagem fosse um instrumento transparente,' sem espessura, tendo apenas uma função de referencialização, a de dizer o mundo. Enquanto nos textos dos alunos bem-sucedidos, a linguagem tem três funções: ela permite dizer o mundo, mas também fazer (construir um texto) e ser (exibir-se por meio da própria forma do discurso). O "Eu" aparecendo no texto não é igual em ambos os tipos de textos: no primeiro é um "Eu" fazendo coisas na sua vida cotidiana, no segundo é um "Eu" escrevendo um texto. Podem-se encontrar, no segundo tipo de textos, várias marcas de modalização, que pouco se encontram no primeiro, quer dizer, formas linguageiras permitindo dar comentários, opiniões, avaliações, etc. Esses alunos utilizam mais adjetivos e advérbios, usam verbos para comentar (acho que...) e também verbos remetendo a atividades intelectuais (refletir, compreender, analisar...), e não apenas a atividades físicas (fazer...), eles empregam marcas do tempo (hoje, outrora...) e também usam o saber mesmo enquanto sujeito da frase (falar me permite..., escrever é uma capacidade que...).

É certo, portanto, que os textos dos alunos bem-sucedidos são mais ricos que os dos alunos fracassados. Mas, assim avaliando, devemos prestar atenção a dois fatos, relacionados. Em primeiro lugar, essa riqueza lingüística é conseqüência de uma certa postura, de uma certa relação com a linguagem levando a certas práticas linguageiras. Portanto, como verificamos, de nada serve ensinar técnicas - por exemplo, o uso de advérbios ou do saber mesmo enquanto sujeito da frase -, se não se construir ao mesmo tempo uma nova relação com a linguagem, novas práticas linguageiras. Em segundo lugar, não se deve esquecer que essa pobreza dos textos é uma conseqüência da própria natureza da tarefa pedida ao aluno. Não é uma deficiência lingüística que ocorre em toda tarefa que exige o uso da linguagem: os mesmos jovens podem mostrar uma linguagem muito mais rica em outras situações, de briga, por exemplo. Todavia, não há dúvida de que eles não dominam o uso escolar da linguagem. Esse uso não apenas permite ser bem-sucedido na escola, mas também possibilita o acesso a universos e atividades intelectuais específicos.

Agora, gostaria de apresentar-lhes três abordagens teóricas da relação entre a linguagem e o fracasso escolar.

 

A ABORDAGEM DO PROBLEMA EM TERMOS DE DEFICIÊNCIAS LINGÜÍSTICAS

Uma abordagem tradicional destaca as deficiências da linguagem dos alunos fracassados, notadamente aqueles dos bairros populares. Esses jovens não falam bem, não escrevem bem, aprendem na sua família uma língua que não é correta, por isso são carentes na língua e fracassados na escola. Sendo que lhes faltam certos conhecimentos e competências lingüísticas, deve-se desenvolver com eles uma pedagogia compensatória, remediando essas carências. Logo, trata-se de enriquecer seu vocabulário, melhorar sua sintaxe, levá-los ao "bem falar" e ao "bem escrever". Para atingir esses objetivos, a escola ensina-lhes palavras e regras que permitem produzir textos corretos, bem escritos, até bonitos. Em uma forma mais moderna daquela pedagogia, apoiando-se nos saberes recentes da lingüística, trata-se até de lhes ensinar certos conhecimentos sobre o que é um texto, um discurso. De modo geral, o ensino tenta transmitir-lhes saberes técnicos sobre sua língua para que eles possam dominá-la.

Essa concepção do aprendizado da linguagem e da relação entre a linguagem e o fracasso escolar traz problemas de um ponto de vista prático. Primeiro, ela remete ao professor de francês, inglês, português... um problema que, no entanto, diz respeito a todos os professores. Assim, seria um professor, o de língua, que deveria resolver a questão do fracasso escolar. Em segundo lugar, a eficácia dessa pedagogia mostra-se limitada. É certo que ela permite aos alunos escrever textos corretos; além disso, ela ajuda a restaurar a auto-estima dos jovens. Porém, ela nem melhora o uso da linguagem nas outras disciplinas ou na vida, nem resolve o problema do fracasso escolar fora do âmbito da construção de textos. São técnicas assim aprendidas pelos jovens, não mais, e essas técnicas não valem para além das tarefas por meio das quais foram aprendidas.

Com efeito, essa concepção traz problemas também do ponto de vista teórico. Falar ou escrever não é aplicar regras. Trata-se de outra coisa, de uma prática que envolve o conteúdo do texto, o gênero desse texto, a situação de expressão e comunicação, uma atividade intelectual, uma dada posição no mundo do sujeito falando. Falar, escrever, não é dominar o sistema da língua, ao menos não é apenas uma questão de sistema. Falar, escrever é fazer uma certa coisa, é desenvolver uma prática específica, prática essa chamada pelos pesquisadores de prática linguageira.

 

A LINGUAGEM ENQUANTO MEIO DE EXPRESSÃO E COMUNICAÇÃO

A concepção sobre a qual acabei de falar destaca as deficiências na linguagem dos alunos fracassados. Ao contrário, uma outra abordagem da relação entre linguagem e fracasso escolar salienta a pertinência da linguagem popular enquanto meio de expressão e comunicação.

A desvalorização da linguagem popular do aluno gera efeitos negativos. Na sala de aula, o aluno sofre de uma imagem negativa e não ousa mais falar. O que assim está desvalorizado é sua própria identidade e seu próprio grupo, de tal modo que às vezes o aluno opõe-se à própria escola, até com violência, notadamente verbal. A violência simbólica da escola, ele responde com sua própria violência simbólica. Hoje, pelo contrário, salienta-se o fato de uma língua não ser apenas um conjunto de palavras e um sistema sintático, mas também uma cultura, um conjunto de costumes sociais e valores. O que se diz numa língua é também uma certa maneira de viver, de entender o mundo, de relacionar-se com os outros e consigo mesmo. Sendo considerada enquanto um conjunto de palavras e um sistema sintático, a linguagem dos jovens de bairros populares parece pobre e errada. Mas é um erro considerar essa linguagem sem analisá-la com referência às situações nas quais ela é usada e aos objetivos desse uso, o que leva a uma desvalorização da linguagem do jovem, mas também do próprio jovem, de sua classe social, de seu grupo cultural. Quando a linguagem dos jovens de bairros populares refere-se às situações de vida, a competência lingüística deles torna-se manifesta (como mostrou Labov já há muitos anos). Na vida cotidiana, com seus amigos, esses jovens falam, falam com facilidade, gostam de falar, ainda que na sala de aula fiquem silenciosos (ou falem uns com outros, ou atrapalhem o professor...). Como bem se pode ver no rap, esses jovens considerados incapazes de escrever podem produzir textos poéticos e narrativos exprimindo emoções, sentimentos, experiências.

Essa valorização das capacidades lingüísticas dos alunos leva os professores a propor novas tarefas, substituindo as tarefas escolares clássicas, novas tarefas estas centradas sobre a expressão e a comunicação. Atenção, todavia. São as funções expressivas, comunicativas, ligadas à identidade que são valorizadas nessa forma de linguagem. As palavras são cheias de sentidos e valores que correspondem às pertenças sociais e culturais e às identidades coletivas. Os textos são construídos por justaposições de enunciados, repetidos muitas vezes para insistir e produzir sentimentos de importância e valor. Tudo isso constitui uma certa prática linguageira, que é pertinente para exprimir o que vivem os jovens de bairros populares. Mas essa prática deixa de ser pertinente para dominar certos outros usos da língua, particularmente os usos escolares. Esses usos implicam que o sujeito falando afaste-se de sua experiência imediata, tome distância, procure objetividade, verdade, confronte-se com textos e discursos além dos enunciados.

Existem práticas linguageiras específicas, que estabelecem várias relações com a linguagem, o saber, o mundo, os outros e consigo mesmo. As diferenças entre as práticas linguageiras não são apenas efeitos das diferenças sociais, mas também condições para entrar nos vários usos da língua e dominá-los. Se a escola trancar-se nas tarefas de expressão e comunicação, preocupada com o reconhecimento da legitimidade dessas práticas, é certo que a reconhecerá, o que é bom, mas também deixará os alunos de bairros populares fora das demais práticas linguageiras, as que permitem a eles entrar em novos universos intelectuais, entenderem melhor o mundo, a vida e si mesmos, e portanto lhes permitem atingir novos graus de liberdade. Mas iniciar os jovens naquelas novas práticas não é fácil, porque eles fazem questão de falar como falam. Seu jeito de falar diz a sua identidade. Ao mudar essas práticas, eles arriscam trair, trair o grupo e trair-se, ainda que ampliem o leque de suas relações com o mundo, com os outros, consigo mesmos.

 

UMA ABORDAGEM EM TERMOS DE PRÁTICAS LINGUAGEIRAS

A abordagem mais recente da questão pedagógica da linguagem salienta as práticas linguageiras, quer dizer, o uso da linguagem não apenas enquanto sistema, mas sobretudo enquanto prática - que é também social, cultural e pessoal - em determinada situação. Essa abordagem destaca a diferença entre língua e linguagem. A língua é um sistema lexical e sintático. A linguagem, quer falada quer escrita, é uma prática que consiste em fazer qualquer coisa com a língua. A linguagem supõe a língua, mas não se reduz a ela. Com a mesma língua podem-se ter práticas linguageiras de objetivos e formas muito diferentes. Pode-se pedir ou dar uma informação, expressar emoções, agir sobre os outros argumentando, mandando, seduzindo, mentindo..., exibir sua identidade e pertença social e cultural, pensar, analisar um texto, etc. Pode-se também falar enquanto se faz outra atividade mais importante: enquanto se trabalha, fala-se com um colega, enquanto se assiste a televisão, fala-se com sua família... Apesar de suporem competências lingüísticas, essas práticas não são simplesmente aplicações dessas competências.

Falar em práticas linguageiras é insistir sobre a atividade de um sujeito social em situação.

A prática linguageira é uma prática social. Primeiro, porque o sujeito mesmo é social: ele aprendeu a falar por meio de sua socialização familiar e seu relacionamento com outros jovens; o que e como ele fala diz respeito ao que ele é de um ponto de vista social. Segundo, a prática linguageira é social porque se fala em situações sociais, sendo as práticas linguageiras articuladas com outras práticas sociais (trabalhar, brigar, namorar...). Pelo fato de a prática linguageira ser social, ela é estruturada por normas que variam conforme os meios sociais.

Todavia, seria um erro reduzir a análise das práticas linguageiras à questão da normalização social. Primeiramente, o sujeito investe sua própria subjetividade nas situações sociais e, nas práticas linguageiras, ele entra nelas com toda sua história. Em segundo lugar, por mais social que seja, uma prática linguageira envolve também certa postura do sujeito, certa relação com a linguagem - relação essa que varia conforme as especificidades das práticas linguageiras. Enquanto o sujeito está falando, ele tem de adotar certa postura, a que permite a sua prática ser eficaz. O sujeito argumentando, contando, mandando, paquerando não está envolvido em iguais relações com o mundo, com os outros, consigo mesmo.

Afinal, na medida em que uma prática linguageira é mais ou menos eficaz, ela atinge mais ou menos seus objetivos. Para explicar algo, expressar sentimentos, mandar, seduzir, importa o jeito de falar. Conforme esse jeito, pode-se ser mais ou menos bem-sucedido. Isto é, existem normas na atividade, uma normatividade interna que não deve ser confundida com a normalização social relacionada às relações de dominação.

Para entender a relação entre linguagem e fracasso escolar, deve-se levar em consideração a tripla dimensão das práticas linguageiras: elas são sociais, subjetivas e mais ou menos eficazes. Não há dúvida de que a escola é um lugar em que existem desigualdades sociais - e, por isso, ela tem de estar atenta a que as práticas de expressão e comunicação dos jovens de bairros populares não sejam desvalorizadas. Mas a escola é também um lugar de aprendizagem, formação, reflexão, um lugar cognitivo ligado à cultura escrita. Ora, os usos cognitivos da linguagem supõem certas relações com a linguagem, certas posturas do sujeito, certas normas internas das atividades.

Esses usos exigem do aluno sair de uma relação imediata com a linguagem, entender que a linguagem não serve simplesmente para dizer o que é o mundo, mas também permite construir universos intelectuais, desenvolver uma atividade intelectual específica. Escrever poesia, estudar matemática, estudar história, isso não é dizer o mundo como se a linguagem fosse transparente e não fizesse nada mais do que mostrar o que existe, é sim fazer mundos existirem, por meio de um certo uso da linguagem, das práticas linguageiras.

Os usos cognitivos da linguagem exigem também que o aluno saia da postura do "Eu mesmo" ligado à vivência e à relação prático-afetiva com o mundo para entrar na postura do "Eu" do pensamento, da relação reflexiva com o mundo e os discursos. Para bem entender a diferença entre ambas as posturas, pode-se remeter à diferença entre "dar sua opinião" e "pensar" ou "argumentar". Para dar sua opinião, uma pessoa irá evocando princípios importantes e experiências vividas por ela: é o "Eu mesmo" que está dando sua opinião. Para pensar, o sujeito tem de argumentar, isto é, dar argumentos, mas também pensar nas objeções que um outro sujeito poderia lhe opor e organizar seus próprios argumentos para que estes não apenas apresentem suas idéias, e sim respondam às objeções do outro sujeito - que fica virtual, que deve ser criado pelo sujeito argumentando. Além disso, vários sujeitos virtuais podem assim interferir, opondo argumentos contraditórios... A diferença fundamental entre "dar sua opinião" e "pensar" está na postura do sujeito. É difícil para um aluno entender essa diferença, e é tanto mais difícil se ninguém lhe explica...

Aí ficam fontes fundamentais de fracasso escolar: na relação com a linguagem, que é também relação com o saber, a escola, o mundo, os outros, consigo mesmo.

Acho que o ponto-chave é possibilitar aos alunos entender que a linguagem permite ao mesmo tempo dizer, fazer e ser, dizer o mundo, fazer textos, ser enquanto se é o autor desses textos. Constatamos em nossas pesquisas que os alunos fracassam quando eles não podem entrar nessas práticas linguageiras, nessa relação com a linguagem. Não se deve esquecer que essa relação é também uma relação com o mundo, a vida, os outros, consigo mesmo. O desafio é escolar, mas é igualmente social. Ao entender que falar e escrever é também fazer e ser, pode-se entender que falando e escrevendo trata-se igualmente de mudar o mundo e de mudar-se, notadamente de diminuir as desigualdades sociais entre os que falam dentro do mundo e os que falam sobre o mundo.

 

 

Recebido em agosto/2000

 

 

NOTA

1 Este artigo é adaptado da palestra ministrada no Encontro Nacional de Estudantes de Letras (EXNEL), em Cuiabá, em 18 de julho de 2000. Na nossa equipe de pesquisa, é a professora Élisabeth Bautier a especialista da questão da linguagem. Estou utilizando aqui os nossos escritos comuns, mas também os dela. Sobre as questões das quais estou falando neste texto, pode-se ler, notadamente: B. Chariot, É. Bautier e J.-Y. Rochex, École et savoir dans les banlieues... et ailleurs, Paris, A. Colin, 1992; É. Bautier, Pratiques langagières, pratiques sociales, Paris, L'Harmattan, 1995; B. Charlot, Le rapport au savoir en milieu populaire, Paris, Anthropos, 1999; B. Charlot, Da relação com o saber. Elementos para uma teoria, Porto Alegre, Artes Médicas, 2000. Sei que a palavra "linguageira" não existe em português; ela corresponde à palavra francesa "langagière", que também não existe no francês corrente. Os pesquisadores usam essa palavra por razões teóricas, esclarecidas ao longo deste artigo.