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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.5 no.9 São Paulo  2000

 

ARTIGO

 

Formação de psicólogos para o atendimento a problemas de aprendizagem: desafios e perspectivas

 

Undergraduate education of psychologists towards the learning problems: challenges and perspectives

 

 

Marilene Proença Rebello de Souza

Professora doutora do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Sua área de atuação é a psicologia escolar

 

 


RESUMO

Este artigo discute a formação de psicólogos diante dos problemas de aprendizagem, partindo da análise de concepções e práticas psicológicas de atendimento ensinadas em cursos de graduação em Psicologia. 268 prontuários de atendimento em clínicas-escola foram pesquisados, focalizando-se os seguintes aspectos: natureza e perfil dos encaminhamentos escolares, concepções e modalidades de atendimento psicológico à queixa escolar. Constatamos que a interpretação dada aos encaminhamentos escolares pelos psicólogos clínicos demonstra desconhecimento de boa parte das pesquisas educacionais relativas à vida diária escolar, embora se teçam críticas à qualidade da escola pública brasileira.

Psicologia; educação; psicologia escolar; psicologia clínica; formação dc psicólogos


ABSTRACT

This article analyses the psychological concepts and practices of assistance relating to the learning problems taught in undergraduate courses of Psychology. 268 records of attendance were examined, focusing the following aspects: nature and profile of the school procedures, modes and conception of psychological assistance relating to the learning problems. One can verified that the interpretation clinical psychologists give to the school complaint reveals that they do not know the latest research related to the daily life of a school even when they criticize the quality of the public school.

Psychology; education; school psychology; clinical psychology; undergraduate education of psychologists


 

 

"A ciência moderna, ao colocar-se sobre fundamentos pragmáticos, 'absorve', assimila a estrutura cotidiana"

Agnes Heller

 

A psicologia enquanto área do conhecimento tem voltado grande parte de sua pesquisa para explicar os processos de aprendizagem e desenvolvimento que ocorrem na infância e na adolescência. Essas duas fases da vida do ser humano destacam-se na produção acadêmica e, pela sua importância, ocupam lugar de relevância na formação do psicólogo. E também nessas duas fases do desenvolvimento - infância e adolescência - que estão centrados os maiores índices de encaminhamento para atendimento psicológico, em função de algo que é considerado pelo adulto como inadequado ou insuficiente nesse desenvolvimento ou no processo de aprendizagem. Quais os motivos que levam os adultos a encaminharem crianças e adolescentes ao psicólogo? Esta pergunta vem sendo respondida por meio de levantamentos feitos em clínicas-escola de vários centros de formação em Psicologia (Ancona-Lopez, 1983; Silvares, 1989); como também nos serviços públicos de atendimento, em Unidades Básicas de Saúde de várias regiões da cidade de São Paulo, como apontam os levantamentos feitos por Urbinatti e colaboradores (Tabulação, 1989; Urbinatti et ai, 1994). Todos esses trabalhos indicam que na faixa etária entre 7 e 14 anos, aproximadamente dois terços dos encaminhamentos psicológicos ocorrem por problemas vividos pelas crianças no seu processo de escolarização.

Tendo em vista esse dado endêmico presente na natureza do encaminhamento psicológico, nosso interesse voltou-se para a análise desses encaminhamentos, buscando desvelar os motivos que levam educadores e pais a procurarem o atendimento psicológico.

Realizamos um estudo exploratório (Souza, 1996) envolvendo quatro cursos de formação de psicólogos, analisando os dados de encaminhamento de 268 prontuários de crianças e adolescentes. Este número corresponde a 30% dos encaminhamentos realizados em cinco serviços de atendimento psicológico de universidades paulistas. As perguntas feitas aos prontuários de atendimento foram as seguintes: quem são as crianças encaminhadas?; quais os problemas enfrentados na escola que mobilizam os educadores a encaminharem seus alunos para atendimento psicológico?; que modalidade de atendimentos e encaminhamentos é oferecida à criança e ao adolescente com problemas escolares nos cursos de formação de psicólogos?

 

QUEM SÃO AS CRIANÇAS ENCAMINHADAS

As crianças atendidas pelos psicólogos encontram-se, em sua maioria, no início do processo de alfabetização. A amostra pesquisada caracteriza-se da seguinte maneira: a média de idade dos encaminhamentos é de 9,3 anos, e 66% dos alunos estão cursando entre a primeira e a terceira séries do Ensino Fundamental; destes, 35% encontram-se na segunda série. Do total de encaminhamentos, aproximadamente 7 em cada 10 crianças são meninos. Do conjunto de encaminhamentos, 40% são provenientes de escolas públicas, e 4% das escolas privadas.

 

PROBLEMAS ENFRENTADOS NA ESCOLA QUE CULMINAM COM O ENCAMINHAMENTO PSICOLÓGICO

O levantamento indica que o motivo mais freqüente de encaminhamento está no fato de a criança apresentar o que os educadores denominam problemas de aprendizagem atrelados a problemas de atitudes em sala de aula (26%), ou somente problemas de aprendizagem (24%) ou ainda apenas problemas de atitudes (19%). Ou seja, a soma dos motivos de encaminhamento mostra que 69% das crianças apresentam problemas na aprendizagem ou apresentam atitudes consideradas inadequadas em sala de aula. A principal queixa das crianças ingressantes recai em problemas de aprendizagem; nas séries subseqüentes começam a aparecer como motivo de encaminhamento também os problemas de atitudes inadequadas. Uma boa parcela dos encaminhamentos é feita por profissionais da área da saúde, 19%, e apenas 13% são trazidos pelos pais. Um outro grupo de encaminhamentos provém de outras áreas, como, por exemplo, da Vara da Infância e da Adolescência, totalizando 6% dos encaminhamentos.

A análise da amostra aponta também para o fato de que os meninos e as meninas são encaminhados por motivos diferentes: as meninas são menos encaminhadas por atitudes consideradas indesejáveis que os meninos, numa freqüência de 18% contra 20%. Os meninos, por sua vez, são menos encaminhados por dificuldades no processo de aprendizagem, 23% contra 29%.

Ao relacionarmos a série com o motivo de encaminhamento observamos que o motivo de encaminhamento mais freqüente para uma criança que cursa a primeira série é o de problema de aprendizagem (34%), seguido de processo de aprendizagem e atitudes (23%). O motivo de encaminhamento que soma duas categorias, a saber, problemas de aprendizagem e atitudes, tem uma distribuição semelhante entre as crianças que cursam as segundas, terceiras e quartas séries.

 

ATENDIMENTO PSICOLÓGICO OFERECIDO

Quando chegam à clínica-escola, esses clientes passam pelo processo de triagem, e é feito o "primeiro encaminhamento". Das crianças que chegam para atendimento, 50% são encaminhadas para psicodiagnóstico, e, embora a queixa seja escolar, apenas 8% delas são diretamente encaminhadas para um atendimento "psicopedagógico ou de distúrbios de aprendizagem". Um destaque é feito para o fato de que as crianças que apresentam queixa de "problemas de aprendizagem" foram mais encaminhadas para tratamento "psicopedagógico" e atendimento em "distúrbios de aprendizagem", num primeiro encaminhamento que as demais queixas. A freqüência de desistência entre a entrevista de triagem e o processo psicodiagnóstico é de 38% dos clientes.

Durante o processo psicodiagnóstico, o principal instrumento utilizado foi o teste psicológico, cuja freqüência de aplicação chegou a 140 vezes. Ou seja, cada caso teve em média 2,2 testes aplicados. O teste mais aplicado foi o HTP (House, Tree, Person), 27 vezes, seguido pelo CAT (Teste de Apercepção Temática, versão Infantil), 20 vezes, e o WISC (Escala Wechsler de Inteligência para Crianças) e o Bender, 15 vezes cada um.

Outro dado obtido refere-se ao encaminhamento realizado após o psicodiagnóstico, em que 22% dos casos são encaminhados para psicoterapia (os pais) e 22% para ludoterapia (crianças). Os encaminhamentos para as classes especiais correspondem a 11% dos casos atendidos e somente 4% dos encaminhamentos são feitos para atendimento específico em "distúrbios de aprendizagem".

 

DEFININDO OS TERMOS "PROBLEMAS DE APRENDIZAGEM E DE COMPORTAMENTO"

Quais são os chamados problemas de aprendizagem? Quais são as atitudes da criança em sala de aula que são motivos de encaminhamento psicológico? Como são qualificados pelos educadores?

A leitura dos prontuários foi feita procurando identificar os episódios, as descrições que traduzissem o sentido das categoria denominadas como "problemas de aprendizagem" e "problemas de comportamento". Assim sendo, os chamados "problemas de aprendizagem" são descritos da seguinte maneira: "troca de letras", "dificuldade em ler as palavras", "não consegue ler e escreve tudo amontoado", "ainda está na fase dos rabiscos", "não consegue copiar da lousa", "dificuldade na coordenação motora fina", "troca letras, não acentua palavras e não sabe quando tem que escrever uma letra maiúscula", "não sabe ler e escrever, somente copia, ... só conhece a letra A", "omite palavras, sílabas e letras em ditados e cópias e comete erros gramaticais", "não acerta as contas", "vai mal em matemática", "baixo rendimento escolar", "é lento", "não está acompanhando o ritmo das outras crianças", "repetiu duas vezes a primeira série em função de disritmia", "é distraído", "tem dificuldade em fazer a lição de casa".

Com relação aos chamados "problemas de comportamento" ou de "atitudes", são descritos, entre outros, os seguintes problemas: "não responde às chamadas e às perguntas", "sai da classe várias vezes", "recusa-se a realizar tarefas determinadas, como leitura, por exemplo", "compreende, mas não obedece a instruções", "esquece as regras e fala baixo", "não apresenta ordem em seu caderno", "não conseguia ficar sentado assistindo às aulas", "é muito agressivo", "briga e faz bagunça", "é insuportável na escola: pegou um estilete para abordar as meninas, para aprontar", "é calado", "não fala com a professora, não conversa com os outros, não pede para ir ao banheiro", "é facilmente enganado pelas outras crianças", "não se interessa pela escola", "só quer saber de brincar na escola", "a professora falou que qualquer coisa ele chora", "não presta atenção ao que a professora fala", "não tem interesse por nada na escola", "muito nervoso, não aceita aprender por medo de errar", "sempre foi o primeiro da classe, brigou com a professora de matemática e tirou nota vermelha", "não teve integração com os professores", "professora não consegue colocar limites".

 

CONSIDERAÇÕES A PARTIR DOS MOTIVOS DE ENCAMINHAMENTO APRESENTADOS

As descrições de queixas escolares apresentadas acima nos dão um razoável conjunto das principais razões pelas quais as crianças são encaminhadas para atendimento psicológico. O nosso olhar para esses "motivos de encaminhamento" não se centrará nas crianças, conforme sugere a leitura dos prontuários, enquanto um reflexo de explicações que comumente nos conduzem aos chamados "problemas de aprendizagem". Mas partimos da concepção de que tais encaminhamentos nos revelam o dia-a-dia da escola, os principais conflitos que professores e alunos deparam e que de alguma forma tentam resolver, ou seja, "os pedidos de ajuda da escola".

Nossa análise das queixas apresentadas parte do conjunto de relações que são tecidas no processo de escolarização de que participam professores, alunos, pais, mecanismos institucionais de funcionamento, estrutura estatal, relações atravessadas por preconceitos e estereótipos em relação às crianças pobres e suas famílias, por uma realidade educacional de grande precariedade no funcionamento da escola pública. Ou seja, as considerações que faremos sobre os motivos de encaminhamento partem do nosso olhar para uma escola em sua "positividade" (Ezpeleta & Rockwell, 1986).

As afirmações presentes levaram-nos a considerar que as queixas, em sua grande maioria, são atribuídas às crianças. São elas que trocam letras, não aprendem, brigam com os colegas, desobedecem às regras estabelecidas, são nervosas ou choram muito, não sabem se defender ou se defendem até demais.

As queixas acima revelam-nos um processo de escolarização em que o educador tem muita dificuldade em ensinar essa criança, não sabe como lidar pedagogicamente com questões ligadas ao processo de alfabetização, principalmente das crianças ingressantes, com muitas expectativas em relação ao ler e ao escrever. As histórias de repetência confirmam essa dificuldade em ensinar, produzindo uma criança desinteressada, distraída, agressiva.

As queixas também revelam-nos dificuldades escolares no sentido de estabelecer regras que possam ser obedecidas pelas crianças bem como a existência de crianças que discordam dessas regras das mais diversas maneiras: da apatia à agressividade. As queixas escolares expõem o não saber dos adultos em lidar com crianças que não conseguem cumprir os "combinados", que não sabemos até que ponto são de fato explicitados em sala de aula, ou se encontram implícitos nas ações pedagógicas do professor.

As queixas mostram-nos uma dificuldade muito grande na relação entre escola e pais. Uma relação quase litigiosa, em que vários pais se dizem obrigados a vir ao psicólogo para que seu filho não seja penalizado na escola. Uma relação coercitiva, impositiva, de desconsideração aos argumentos dos pais a respeito de seus filhos, em que a ordem pedagógica transforma-se em lei e determina o encaminhamento psicológico.

Outro aspecto presente nas queixas é a verdadeira peregrinação dos pais de um profissional a outro em busca "do que meu filho tem, pois não vai bem na escola". A medicalização do processo de escolarização fortemente marcada pelos muitos encaminhamentos pelos quais muitas crianças passaram até chegar ao "pior deles": a comprovação da deficiência mental.

 

AS QUESTÕES REFERENTES AOS PROBLEMAS DE APRENDIZAGEM

Com relação aos problemas de aprendizagem, um dos principais motivos de encaminhamento refere-se ao fato de as crianças apresentarem dificuldades de leitura e de escrita. Na descrição dessas dificuldades, os educadores ressaltaram como mais comuns a troca de letras, a omissão de letras nas palavras, os erros ortográficos e de acentuação, o fato de a criança escrever conforme fala e, portanto, escrever palavras erradas, escrever sem separar as palavras (escrever tudo amontoado), somente copiar sem entender o que está escrevendo, não diferenciar quando se usa a letra maiúscula e a minúscula. Outras queixas relacionam-se ao traçado da escrita, como apresentar uma letra feia ou ter uma coordenação motora "ruim".

Os motivos que levaram professores e pais a encaminharem alunos das primeiras séries do Ensino Fundamental para atendimento psicológico são, na maior parte, os que se referem ao processo de aprendizagem da língua escrita e da leitura.

As descrições mais detalhadas sobre os problemas de leitura e escrita nos fazem pensar que uma grande parcela dos professores está realizando seu trabalho de alfabetização a partir da concepção de que tudo que se desvia do padrão estabelecido é patológico e portanto passível de atendimento psicológico. Essa concepção de alfabetização é datada ao final dos anos 60, e dá grande importância aos chamados "distúrbios de aprendizagem". Ou seja, a forma da letra distoante (disgrafia), a dificuldade na leitura-escrita (dislexia), não escrever ortograficamente (disortografia), não pronunciar corretamente os fonemas (dislalia), ser agitado em sala de aula (hiperatividade), cada uma das diferenças que uma criança apresentava diante de seu grupo recebia um diagnóstico específico.

Embora amplamente questionada pelas ciências sociais, observamos, de tempos em tempos, o ressurgimento da concepção heredológica ou orgânica para explicar fatos sociais, principalmente na área educacional. Questionando essa concepção, apresenta-se o trabalho de Moysés e Collares (1992). Segundo as autoras, o modelo que norteia a explicação médica para os problemas educacionais parte da infectologia: "Se A causa B, B só pode ser causado por A, onde A é um agente biológico bem determinado e externo ao homem". Aplicando-se essa lógica à aprendizagem, temos "se uma doença neurológica pode comprometer o domínio da linguagem escrita, será que a criança que não aprende a ler e escrever não teria uma doença neurológica?"

A principal crítica a essa explicação está em aplicar aos fenômenos sociais modelos biológicos, desconsiderando, no caso da aprendizagem, todo o conjunto de trabalhos que retratam a complexidade do fenômeno da escolarização, reduzindo-o a simples falhas no sistema nervoso central. Em geral, tais médicos procuram as causas dos problemas de aprendizagem em exames anátomo-patológicos dos cérebros de pacientes que apresentam tais comportamentos ou em exames sofisticados de "ressonância magnética", no caso da dislexia, sem sucesso: nenhuma lesão cerebral foi encontrada até o momento em crianças que são encaminhadas pelas escolas para o atendimento psicológico por problemas de aprendizagem.

Em uma perspectiva interacionista, as situações apresentadas como "problemas" pelos professores não passam de etapas que atravessam aqueles que se encontram no início do processo de alfabetização. Essa relação fica mais evidente quando se verifica a idade da criança encaminhada. As crianças ingressantes, portanto por volta de 7 anos, são as mais encaminhadas por problemas de aprendizagem, principalmente de leitura e de escrita.

As pesquisas desenvolvidas na perspectiva psicogenética por Ferreiro (1982, 1983, 1985) consideram que as queixas apresentadas, tais como troca de letras, erros ortográficos, "escrita amontoada", dúvida na utilização de letras maiúsculas e minúsculas, escrever como se fala, omissão de letras ou sílabas das palavras em ditados e cópias, cometer erros gramaticais, apenas copiar sem entender o conteúdo, ler sem obedecer aos sinais de pontuação, não passam de aspectos ligados à natureza do processo de aprendizagem da língua escrita.

Tais pesquisas, ao reconstruírem historicamente o percurso da humanidade em busca da comunicação pela língua escrita e ao acompanhar o processo de aquisição da escrita em crianças a partir das concepções que elas têm sobre tal sistema, questionam as afirmações até então vigentes e explicam os conteúdos subjacentes aos chamados "erros" ou "problemas de alfabetização", mencionados nos prontuários consultados.

Vários procedimentos descritos acima e realizados pelas crianças não são patológicos, como se acreditava em uma concepção associacionista de alfabetização, mas sim são momentos do processo de aquisição da estrutura e dos mecanismos de uma língua. A criança ao escrever uma palavra omitindo letras não está errando, mas sim demonstrando como naquele momento pensa a respeito da escrita de determinada palavra. Ferreiro e tantos outros pesquisadores demonstram que, ao proceder dessa maneira, a criança tem hipóteses sobre o sistema da escrita que sustentam um esquema interpretativo.

As descrições dos professores e os relatos dos pais presentes nos prontuários dos clientes atendidos levam-nos a crer que há uma tendência desses educadores a apresentar uma concepção idealizada a respeito das crianças ingressantes, esperando que tenham uma letra legível, uma coordenação motora perfeita, escrevam sem pressionar muito o lápis ou ainda que já estejam em estágios avançados no processo de alfabetização de maneira que um pequeno contato com as informações da professora seja suficiente para escreverem e lerem corretamente.

Ao afirmar que seu aluno só conhece a letra A, o professor demonstra que não houve um processo de ensino-aprendizagem, pois não conhecer o alfabeto, não o memorizar e nem sequer saber como utilizá-lo só acontece com crianças que tenham um quadro de deficiência mental acentuado ou um quadro psicótico a partir dos primeiros anos de vida.

Essa dificuldade em relação à leitura e à escrita se dá, nesse momento, no bojo do Projeto Ciclo Básico, pois grande parte das crianças encaminhadas estuda em escolas públicas das redes estadual e municipal. Pesquisas recentes a respeito do Ciclo Básico (Cruz, 1994) analisam as dificuldades pelas quais passa o sistema de ciclos, algumas delas referentes à compreensão do projeto pedagógico por uma categoria de professores que, há anos, vem recebendo uma série de "pacotes pedagógicos" de diferentes linhas teóricas, por meio de ações estatais que desconsideram o saber docente.

O despreparo do professor para os enormes desafios que a tarefa pedagógica exige é apontado pela pesquisadora como fruto de uma política educacional que não dá a devida atenção a essa formação. As formas como os conteúdos das novas propostas teóricas e metodológicas que chegam aos professores muitas vezes contradizem os seus pressupostos teóricos. Na discussão de seu trabalho, Cruz afirma que, embora o construtivismo seja a concepção hegemônica implantada pelos órgãos diretores do projeto educacional no estado de São Paulo, a metodologia utilizada na formação dos professores para utilizá-lo não inclui os princípios que essa proposta defende na própria relação de aprendizagem do professor.

As práticas pedagógicas também são objeto de preocupação: os remanejamentos constantes de crianças entre as classes em busca de uma homogeneidade de trabalho que não existe, a permanência de mais de cinco horas em sala de aula, diariamente, a má utilização de espaços pedagógicos que seriam fundamentais para o processo de aprendizagem, como as aulas de educação artística e educação física.

Muitas das mudanças a serem realizadas na relação ensino-aprendizagem partem da necessidade de o professor acreditar na capacidade de pensar de seu aluno, para que dessa forma possa estruturar mais claramente as tarefas a serem realizadas em sala de aula. As pesquisas com professores bem-sucedidos (Kramer & André, 1984; Souza, 1991) mostram muito claramente que o professor dessas salas tem a crença na capacidade de seu aluno, portanto ensina o conteúdo para a sua série, organiza a tarefa de sala de aula, explicita os combinados, podendo até revê-los à medida que a classe for respondendo às necessidades mínimas de manutenção da organização para a realização de tarefas.

 

COM RELAÇÃO AO PROBLEMA DE ATITUDES

Outro grande grupo de queixas refere-se às atitudes apresentadas pela criança na escola. Segundo os motivos de encaminhamentos analisados, parcela significativa de crianças que não obedece às regras estabelecidas pelo professor na sala de aula acaba sendo encaminhada para atendimento psicológico. Atitudes como conversar muito, esquecer as regras estabelecidas, não apresentar um caderno organizado, não obedecer quando solicitado, recusar-se a fazer algo são os principais motivos pelos quais as crianças são conduzidas aos consultórios psicológicos.

Analisando as queixas apresentadas, podemos observar que há um conjunto de regras estabelecidas pelo professor em sala de aula às quais as crianças devem adaptar-se e/ou submeter-se. Os prontuários das crianças não descrevem as situações em que essas regras são seguidas ou mesmo desobedecidas. Não se constataram nos prontuários as circunstâncias em que tais ações da criança aconteceram, desconhecendo-se até mesmo as alternativas que porventura tenham sido tentadas pelo professor no sentido de reverter essa situação.

Das atitudes citadas pelos professores, a agressividade é a mais freqüente. Nos poucos prontuários em que essa agressividade é descrita, em geral, relaciona-se a brigas com os colegas, provocações, fazer bagunça, atrapalhar a aula, rabiscar a lição do outro, empurrar ou bater em um colega, agredir verbalmente, gritar muito, entre outras. Não consta no prontuário o momento em que a atitude "agressiva" aconteceu, ou seja, deu-se num momento em que pegaram o seu material escolar sem pedir, ou se havia competição entre duas ou mais crianças constantemente na sala, gerando essa inimizade, enfim, não havia perguntas do psicólogo que possibilitassem aos pais darem mais dados sobre o contexto em que a atitude da criança aconteceu.

Em outro extremo, as crianças são encaminhadas porque consideradas "tímidas". As crianças são descritas apresentando as seguintes atitudes: não conversarem na escola, serem caladas, não falarem com a professora, não conversarem com os colegas, apanharem sem revidar, serem inseguras e não gostarem que se repare nelas.

A alta freqüência de encaminhamentos por timidez versus agressividade faz-nos pensar que, no âmbito educacional, exista, tacitamente, um conjunto de atitudes consideradas adequadas ou desejáveis na escola. A imagem que nos vem é a de um "aluno-padrão", cujas atitudes não deveriam "pender" nem para aquele que briga, nem para uma criança calada, que não reage aos colegas. Qualquer criança que se afaste do eixo da "normalidade" é considerada um problema que merece tratamento.

Embora discutido por muitos autores em psicologia, o conceito de "normalidade" ainda norteia as práticas disciplinares pedagógicas. Costa (1984) analisa a tendência a um "tipo psicológico ordinário", típico das sociedades disciplinares como a nossa e, por que não dizer?, da nossa educação escolar disciplinar. A concepção de normalidade é uma tendência constante nas queixas apresentadas pelos pais e professores. Além da agressividade e da timidez, chorar muito ou ainda apresentar comportamentos considerados como "infantis", como correr no pátio, também encontram-se no conjunto daqueles que estão no desvio do tipo psicológico ordinário.

Em relação à categoria atitudes, o que encontramos nos prontuários são afirmações com base em características que parecem intrínsecas à criança encaminhada, tais como "é agitada", "é nervosa", "é agressiva", "é desinteressada". As perguntas referentes aos fatos escolares não aparecem nos relatos, o que nos faz crer que a principal hipótese que norteia a entrevista baseia-se em explicações calcadas na criança, em sua estrutura de personalidade, e não na dinâmica de suas relações.

Na apresentação das queixas escolares, não se fazem presentes tentativas que tenham sido feitas na escola para resolvê-las. Uma hipótese que levantamos em relação à ausência de informações mais detalhadas sobre a escolarização, no caso da queixa escolar, está relacionada à concepção de entendimento dessa queixa. Pois a concepção subjacente ao atendimento psicológico estaria mais próxima ao que se relaciona com o mundo interno dessa criança, aos seus medos e fantasias, e à sua relação com seus pais e familiares. O psicólogo, partindo de uma hipótese que busca na criança a causa das dificuldades escolares, centra suas perguntas em aspectos a ela relacionados. Não considerar, no processo inicial de investigação psicológica, o contexto em que as "atitudes agressivas" ou quaisquer outras se apresentem revela que a concepção psicológica baseia-se muito mais no conceito de estrutura de personalidade do que em considerar a sua dinâmica. Investiga-se, dessa forma, "o ser agressivo", e não a manifestação de sua agressividade em uma determinada situação e/ou relação.

Um caso que ilustra os erros cometidos pelos adultos ao interpretar as ações das crianças a partir de seus estereótipos e preconceitos é analisada por Patto (1990). Ângela, uma criança de 8 anos, passou a freqüentar a classe dos lentos em sua escola, porque levava uma bolsinha e uma boneca para brincar no colégio. Esse comportamento foi considerado pelos professores, coordenação e direção da escola uma atitude imatura de Ângela. Ao conhecer mais de perto essa criança, convivendo em vários de seus espaços diários, a pesquisadora e suas colaboradoras conheceram a outra face da questão: essa criança assumia em casa inúmeras tarefas domésticas, o que tomava praticamente todo o seu tempo, e assim ela não conseguia sequer brincar. A escola foi então o espaço no qual Ângela considerou que o lúdico poderia se fazer presente. Ao contrário do que pensavam as professoras, o excesso de "maturidade" dessa aluna é que a leva a brincar na escola.

As queixas de desatenção e distração estão em segundo lugar nos encaminhamentos realizados pelas escolas. Chamam-nos a atenção as categorias distração e desatenção como freqüentemente presentes nos encaminhamentos psicológicos com queixa escolar. A precariedade da escola oferecida a essas crianças leva-nos a questionar esses comportamentos, pensando naquilo que podem estar revelando sobre a escola: uma escola pouco interessante, com muito tempo de permanência em sala, realizando atividades muitas vezes com pouco sentido, repleta de tarefas mecânicas. Pesquisas vêm mostrando que é comum a prática de extensas cópias e a utilização da lousa como o centro do processo de alfabetização. Para muitos educadores, as crianças só aprendem por meio da repetição, quer oral, quer escrita, criando práticas enfadonhas e valorizando a memorização em vez da significação dos conteúdos ensinados.

Esses aspectos ficam mais evidentes quando observamos a memorização e o ritmo como categorias freqüentes na análise da produção das crianças, o que demonstra serem aspectos muito valorizados pelos professores. A crença em que memorização, ritmo e coordenação motora sejam o cerne do aprendizado da leitura e da escrita protagonizam metodologias de ensino que desprezam a curiosidade, o interesse e o questionamento infantis, enfatizando o aprendizado da língua escrita como algo mecânico, pouco reflexivo.

 

OS PROBLEMAS DE RELACIONAMENTO

Com relação aos problemas de relacionamento, chamou-nos a atenção a quase inexistência de dificuldades nessa área. Ou seja, embora a literatura pedagógica, informada pela psicologia interacionista, se faça presente nas redes de ensino, o tema de que a relação pedagógica é realizada por aquele que ensina e aquele que aprende ainda não é uma realidade na sala de aula. De 268 prontuários lidos, apenas um se refere ao fato de uma professora não conseguir estabelecer limites a seu aluno. Ou seja, em um prontuário apenas dessa amostra a professora se inclui na relação pedagógica.

 

OUTROS ENCAMINHAMENTOS RELACIONADOS COM A APRENDIZAGEM

Nesse grupo de prontuários pesquisado observamos a forte presença dos profissionais de saúde como a porta de entrada do atendimento à criança com problemas escolares. Esses encaminhamentos referem-se ao fato de o psicólogo ser o profissional habilitado a realizar avaliações psicodiagnósticas, principalmente no que se refere aos níveis de desenvolvimento infantil. Ou seja, o motivo do encaminhamento é a suspeita de que há deficiência mental acoplada a problemas diagnosticados anteriormente por esses profissionais, tais como deficiência auditiva e síndrome de Down, principalmente. Ou até mesmo por problemas que não encontraram na criança, esgotando a sua possibilidade de avaliação em relação à queixa escolar.

Outro motivo constante de encaminhamento é a solicitação de avaliação para freqüência às Classes Especiais para Deficientes Mentais. Chama-nos a atenção o grande percentual de encaminhamento (11% da amostra), indicando a suspeita de "deficiência mental leve".

Outro grupo de encaminhamentos identificado refere-se ao fato de os pais desconhecerem o que se passa com seu filho na escola, mas receberem a ordem de realizarem o psicodiagnóstico. Vários pais afirmam não saber os motivos pelos quais seus filhos estão sendo encaminhados e não concordam com o encaminhamento. Fazem-no para atender as ameaças feitas pela direção das escolas. O caso mais extremo encontrado é o da diretora de uma escola pública que entrega à mãe uma carta lacrada para que seja entregue ao psicólogo, sem adiantar-lhe o que continha como informação. Atrelada a este fato, veio a ameaça da perda da vaga, caso a avaliação psicológica não fosse realizada com urgência. Sintetizando, a maneira como os encaminhamentos chegam até as clínicas-escola é reveladora de relações de desrespeito vividas pelas famílias e pelas crianças em escolas públicas e privadas.

 

O ATENDIMENTO À QUEIXA ESCOLAR

O trajeto feito por metade dos casos de queixa escolar atendidos é o psicodiagnóstico clínico. O psicodiagnóstico referente à queixa escolar tem como centro do processo a utilização dos testes psicológicos e, em geral, com um encontro de "sessão lúdica". Mesmo as clínicas-escola que fazem atendimentos com psicodiagnósticos interventivos e atendimento a pais em grupo apresentam o mesmo processo no que se refere à aplicação de testes psicológicos. Os dados quantitativos demonstram que a tríade inteligência, percepção visual- motora e aspectos emocionais continua sendo a base do raciocínio clínico-psicológico, medida por meio dos testes. Os testes mais utilizados são os de maior rigor na padronização quantitativa, e, embora tenham a análise qualitativa como recurso, esta última praticamente inexiste na leitura dos relatórios dos clientes das clínicas-escola pesquisadas.

Os instrumentos gráficos de avaliação com objetivo mais expressivo, como os de "desenhos-estórias" de Trinca ou ainda a "técnica de rabiscos" de Winnicott, ou são muito menos utilizados, como no caso dos primeiros, ou inexistem como alternativa diagnostica, como no caso da segunda.

Outro aspecto importante referente aos dados dos prontuários refere-se ao "encaminhamento após psicodiagnóstico". A um atendimento clássico (modelo psicodiagnóstico utilizado para qualquer atendimento) segue-se um "encaminhamento clássico": os pais para psicoterapia e a criança para ludoterapia. O contato com a escola é feito por meio da visita escolar realizada em duas das clínicas-escola pesquisadas. O objetivo da visita está em levantar dados escolares da criança com o professor da classe. O que podemos observar é que, no conjunto dos dados, o encontro com o professor parece não modificar o resultado final dos encaminhamentos após psicodiagnóstico.

Em apenas um dos serviços de atendimento o processo psicodiagnóstico não utiliza testes de medida: é realizado em grupos de pais e de crianças e centrado na queixa escolar. Esta queixa é compreendida como um "problema de aprendizagem". O aspecto central do atendimento na fase diagnostica é o processo de aprendizagem, incluindo informações escolares escritas pelo professor. O encaminhamento é a continuidade do atendimento de crianças e pais em grupos nessa mesma clínica. Nesse procedimento, a escola participa como informante do que se passa no processo escolar e ao final da avaliação psicológica é encaminhado um relato do processo, propondo-se alternativas de trabalho para o professor.

Outro aspecto interessante observado por meio do levantamento de dados de prontuários de atendimento é a tendência a encaminhar os casos que apresentam apenas problemas de aprendizagem para atendimentos específicos em "psicopedagogia". Esses encaminhamentos começam a acontecer mais significativamente a partir da entrevista de triagem. Esse dado pode indicar o início de mudança no olhar para a queixa escolar, no sentido de considerar sua origem educacional e por isso ser encaminhada para profissionais cuja concepção inclui a influência dos aspectos educacionais na queixa. Esse encaminhamento, por sua vez, não modifica necessariamente considerar o processo de escolarização ou ainda que os psicólogos levem em conta alternativas de inclusão da escola no processo de atendimento à queixa. Essas mudanças só são possíveis a partir de uma mudança da concepção na queixa escolar: da origem familiar para o processo de escolarização.

 

REFLEXÕES FINAIS

A análise dos prontuários de atendimento e encaminhamento de crianças e adolescentes preenchidos pelos psicólogos permite considerar que as queixas são, em sua maioria, provenientes das escolas; os problemas de aprendizagem são atribuídos às crianças, não se considerando que o processo de aprendizagem ocorre em uma relação pedagógica; as queixas revelam as dificuldades dos educadores em relação ao claro estabelecimento de regras na estruturação do trabalho pedagógico; as concepções de aprendizagem dos educadores baseiam-se em pressupostos inatistas ou medicalizantes; os relatos dos pais revelam dificuldades de relacionamento entre escola e pais.

A respeito da formação de psicólogos, os atendimentos revelam: a ausência de articulação entre as áreas de atuação da psicologia no que se refere à queixa escolar; o desconhecimento dos psicólogos clínicos a respeito das pesquisas educacionais que mostram aspectos importantes do dia-a-dia escolar; o desconhecimento dos psicólogos quanto aos direitos à escolarização; o pressuposto de que o encaminhamento inclui necessariamente um problema emocional, o que os leva a deixar de pesquisar aspectos relativos ao processo de escolarização da criança.

Embora cada um dos referenciais teóricos utilizados pela psicologia para explicar os "problemas de aprendizagem" (ambientalista, interacionista, behaviorista) pudesse avançar na explicação do fracasso escolar, os psicólogos que atendem queixas escolares mantiveram como eixo de análise ora os aspectos referentes ao psiquismo e ao desenvolvimento do indivíduo, ora os aspectos meramente pedagógicos.

Consideramos que a ruptura com essa análise só aconteça mais recentemente a partir da utilização de referencial teórico que articule níveis de análise tradicionalmente abordados separadamente, a saber, as esferas individual (subjetividade) e social (realidade social), inclua a complexidade dos processos de escolarização numa sociedade de classes, na qual crianças são tratadas desigualmente em função do grupo social a que pertencem.

A concepção teórica que nos permite analisar o processo de escolarização, e não os problemas de aprendizagem, desloca o eixo da análise do indivíduo para a escola e o conjunto de relações institucionais, históricas, psicológicas, pedagógicas que se fazem presentes e constituem o dia-a-dia escolar. Ou seja, os aspectos psicológicos são parte do complexo universo da escola, encontrando-se imbricados nas múltiplas relações que se estabelecem no processo pedagógico e institucional nela presentes. Tal concepção rompe com as explicações anteriores sobre o fracasso escolar mudando o foco do olhar de aspectos apenas psicológicos para a análise do indivíduo e suas relações institucionais.

Não se trata, portanto, de uma ampliação do contexto que observamos com autores que buscam relações entre psicanálise e materialismo histórico, ou ainda com a psicogênese, mas sim de ruptura com uma leitura que desconsidera a escola enquanto positividade e que analisa as dificuldades no processo de escolarização como problemas de aprendizagem e estes como sintoma de questões emocionais profundas.

A perspectiva que considera o processo de escolarização enfatiza que a escola é o espaço em que relações sociais e individuais articulam-se em uma rede de relações complexas e que precisam ser analisadas como tal. Ou seja, quando o psicólogo recebe uma queixa escolar, esta constitui fragmento de uma complexa rede de relações sociais que a priori esse profissional desconhece, em função da complexidade do fenômeno e da formação restrita e fragmentada que recebe.

O psiquismo é um dos aspectos constitutivos do processo de escolarização, e, ao elegê-lo como o aspecto central de sua análise, o psicólogo incorre no erro de desprezar inúmeras outras situações que, segundo apresentam várias pesquisas na área educacional, são constitutivas de ações realizadas pelas crianças e de reações a determinados contextos extremamente hostis. E, além do mais, isso explicita o fato de que o profissional psicólogo desconhece o que se passa na escola, não tendo a dimensão de que o fracasso ou o sucesso no processo de aprendizagem escolar é muito menos determinado por questões individuais do que por mecanismos institucionais e políticos.

A concepção teórica que parte da consciência política da exclusão de parcelas significativas da população do processo de escolarização, ao se apropriar de determinadas metodologias de pesquisa, vem procurando dar conta da complexidade do processo de escolarização. Amplia-se a concepção de que a educação escolar não deve ser vista apenas em função da socialização. Mas recupera-se o papel político do processo educacional escolar: a escola tem um papel fundamental na democratização do Estado, "é por excelência um centro de formação de cidadania", como afirma Weffort (1995).

No Brasil, a crítica teórica presente em A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia traz para o centro da pesquisa educacional a questão das raízes do fracasso escolar das escolas públicas brasileiras. Ao analisar o percurso histórico do pensamento educacional brasileiro, a autora põe-nos frente a frente com constatações que mudam o rumo da compreensão dos chamados problemas de aprendizagem, rompendo com explicações tradicionais até então presentes na literatura psicológica e pedagógica em nosso país (Patto, 1990).

Os principais argumentos desse trabalho estão, em primeiro lugar, no fato de que os problemas de aprendizagem incidem maciçamente sobre as crianças das classes populares e é sobre elas que durante décadas recaem as explicações a respeito dos chamados problemas de aprendizagem: ou porque apresentam problemas psicológicos, ou biológicos ou, mais recentemente, culturais; bem como analisando o caráter ideológico e repleto de equívocos presente nessas explicações, resultado de concepções preconceituosas a respeito do pobre e da pobreza no Brasil.

E, em segundo lugar, ao conviver durante um longo período numa escola pública e analisar os processos que constituem o cotidiano escolar, a autora pôde demonstrar que existe um complexo universo de questões institucionais, políticas, individuais, estruturais e de funcionamento presentes na vida diária da escola que conduzem ao seu fracasso, mantendo os altos índices de exclusão, principalmente das crianças e adolescentes das camadas mais pobres de nossa sociedade.

O argumento de que o fracasso escolar é produto da escola resgata pelo menos duas grandes questões para o psicólogo e para a formação profissional: a primeira referente ao posicionamento político de compromisso com o excluído, principalmente com as crianças e adolescentes, e a segunda, não menos importante, relativa ao papel desempenhado pela psicologia na produção da exclusão por meio de suas concepções medicalizantes a respeito da queixa escolar.

A apropriação do referencial teórico crítico, oriundo da sociologia, tendo como principais teóricos Antonio Gramsci (1984, 1991), enquanto "teórico das superestruturas", e Agnes Heller (1972, 1987), por meio da sociologia da vida cotidiana, somada às metodologias de pesquisa qualitativas, provenientes de perspectivas antropológicas para a análise do processo de escolarização (com especial destaque para a perspectiva etnográfica), aponta para a complexidade desse processo, rompendo com explicações que consideram os problemas no processo de escolarização uma questão individual, familiar, meramente pedagógica, ou ainda como uma relação inadequada entre professores e alunos.

Na vida cotidiana o homem objetiva-se em numerosas formas e ao formar seu mundo se forma também. Esse processo pode ser visto na educação. O processo educativo na vida cotidiana não se expressa somente no modo pelo qual eu aprendi de meus pais certas regras de vida fundamentais, mas também no modo em que eu as transmito para meu filho. No meu educar repercutirão também minhas experiências pessoais: quando comunico meu mundo, expresso também estas experiências; quando "transmito" meu mundo, contemporaneamente me objetivo enquanto alguém que já se apropriou deste mundo.

Pensar a vida cotidiana na escola é pensar o conjunto de atividades caracteristicamente heterogêneo empreendido e articulado por sujeitos particulares. As atividades observadas na escola ou em qualquer contexto podem ser entendidas como cotidianas somente em referência a esses sujeitos. Para esse sujeito, o pequeno mundo cotidiano contém sua vida e nela seu trabalho, suas múltiplas atividades, os vários sentidos que tem cada situação particular. Assim sendo, reconstruir a vida cotidiana da escola tem como referentes necessários os sujeitos que a constituem: professores, alunos e pais, principalmente (Ezpeleta & Rockwell, 1986).

Os protagonistas da escola em condições sociais, culturais e materiais específicas realizam a existência cotidiana da escola singular e, ao fazê-lo, refletem todos os elementos formais e não formais do sistema fusionados com os de seu contexto social. Na experiência cotidiana dos sujeitos, transpor as portas da escola constitui ao mesmo tempo uma continuidade - pois apenas desloca âmbitos sociais contíguos e mantém sua própria identidade - e uma ruptura diante das diversas exigências institucionais e sociais e das adaptações aos papéis propostos pela escola.

Que conseqüências essa abordagem traz para a intervenção do psicólogo? Nessa perspectiva, ao recebermos o encaminhamento de uma criança multirrepetente ou com dificuldades no processo de escolarização, não vamos analisá-lo do ponto de vista daquilo que o aluno não conseguiu atingir cognitivamente ou a partir de sua rede de relações com seu professor e colegas, ou analisar as dificuldades familiares advindas de relações traumáticas ou ainda que esta criança pertence a um grupo de risco.

Um dos nossos objetivos, enquanto psicólogos, reside em desvelar os processos de escolarização que produzem essa criança que tem na apatia uma forma de comunicação, ou na agressividade sua maneira de se defender de práticas pedagógicas produzidas em uma escola cujas relações são atravessadas por preconceitos e estereótipos em relação à criança pobre e sua família. Ou seja, a existência de mecanismos institucionais e de ações cristalizadas produzem na criança e no professor a impossibilidade de pensar a sua própria condição de submissão e de exclusão no processo educacional. A intervenção vem no sentido de possibilitar o pensar com a criança e com o professor essa relação estereotipada e produtora da repetência, da repetição de práticas que estigmatizam, excluem, oprimem e rotulam.

Faz-se urgente pensar uma formação do psicólogo que articule o conhecimento crítico acumulado, rompendo com a fragmentação do indivíduo por meio de práticas profissionais que, em nome de determinados princípios ditos científicos, transformam a complexidade humana em números e rótulos, crianças inteligentes e capazes em seres doentes e desadaptados. A psicologia não tem acompanhado, na sua prática de formação, os avanços sociais e institucionais no que se refere aos direitos da criança e do adolescente no Brasil. Como fazê-lo? Eis o nosso desafio enquanto participantes do processo de formação de psicólogos.

 

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Recebido em outubro/2000