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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.6 no.10 São Paulo  2001

 

DOSSIÊ

 

A inclusão do estranho

 

The integration of uncanny

 

 

Sílvia de Paula Gorzoni

Estagiária do curso de especialização da Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida e psicóloga coordenadora do Serviço de Psicologia do Programa de Saúde Escolar da Prefeitura Municipal de São Caetano do Sul (SP)

 

 


RESUMO

Este artigo apresenta um caso em tratamento na Lugar de Vida e mostra o percurso desse paciente, do interesse pela escrita para a inclusão efetiva na escola comum. Ele pretende discutir sobre a possibilidade de uma criança com diagnóstico de psicose ter a condição de freqüentar a escola. A clínica e a escola podem beneficiar uma criança com Distúrbio Global do Desenvolvimento, preservando cada uma a sua especificidade.

Psicose; Nome-do-Pai; escrita; escola


ABSTRACT

This article discusses some aspects regarding the educational process of a child in treatment at Lugar de Vida and shows the way of this patient from his self-interest of writing to the effective inclusion in public school. It reports to board about the possibility of a child with diagnostic of psychosis to attend a class. The therapy and the school can improve a child, each one mantaining its characteristics.

Psychosis; Nom-du-Père; writing; school


 

 

Esta é a história de um tratamento que começou na Lugar de Vida em março de 1998 e continua seu curso. Ao longo de quase três anos, muitos aspectos desse caso poderiam ser discutidos. Todavia, neste artigo faz-se fundamental ressaltar o percurso escolar dessa criança, como uma história bem-sucedida de inclusão. O caminho percorrido para sua escolarização contou com a colaboração de alguns profissionais das escolas mencionadas. Partindo da singularidade deste caso, é possível crer em transformações na escola que, em paralelo ao tratamento, permitam a inclusão de uma criança com Distúrbio Global do Desenvolvimento. O tratamento não prescinde da escola na função educativa, e a educação, por sua vez, não pode intervir nas questões do sujeito do inconsciente. Estes lugares são diferenciados, e não excludentes.

 

A ESCOLA

Richard1 inicia o tratamento aos 9 anos de idade, com um histórico de fracasso na adaptação escolar e dificuldades na aprendizagem. Ele "não é aceito na sala de aula porque não pára", é o que sua família diz. Freqüentava a Sala de Atendimento aos Portadores de Necessidades Especiais (Sapne), três vezes na semana, durante uma hora.

Em fevereiro de 1999, após aproximadamente um ano de tratamento, Richard foi transferido para outra escola com o objetivo de efetivar sua inclusão. A psicopedagoga da Sapne já havia tentado sua inclusão, sem sucesso, pois nessa escola ficara marcado como aluno problemático, precisando iniciar vida nova em outro lugar (segundo suas palavras). Manteve o acompanhamento psicopedagógico nessa escola e iniciou estudos em outra escola, regularmente matriculado na segunda série do Ciclo Básico. Na nova instituição, a estratégia estabelecida entre a professora, a coordenadora pedagógica e psicopedagoga foi de promover aos poucos sua permanência em sala de aula. Inicialmente, ficava em sala por um período de duas horas; ao fim deste mesmo ano letivo, já permanecia todo o período da manhã (quatro horas diárias).

Atualmente, Richard está concluindo a terceira série, com domínio de leitura e escrita e principalmente participando da vida escolar.

O que foi construído até o momento pode nos ajudar a compreender as mudanças de ampliação em sua linguagem como determinantes para sua inclusão.

Foram feitos alguns recortes de sessões desse tempo de tratamento para a abordagem de aspectos fundamentais da teoria psicanalítica.

 

O TRATAMENTO

A família de Richard veio à Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida encaminhada pelo Instituto da Criança/Hospital das Clínicas com diagnóstico de psicose. Referiam importante passagem em Hospital-Dia durante três anos. Preocupavam-se com suas atitudes provocativas, como, por exemplo, ligar o gás da cozinha, jogar objetos dentro da máquina de lavar. A mãe o considerava muito teimoso, agitado e com alguns "tiques", comportamentos para os quais não via explicação.

Richard foi adotado por Marta. Sua mãe biológica o deixou na casa de Marta, aos 5 meses de vida, por aproximadamente um mês com a justificativa de providenciar seu registro. Durante este período, deixava-o pela manhã e o buscava à noite. O tempo de permanência foi se ampliando aos poucos, e na última vez que veio buscá-lo era meia-noite. A partir daí, ele passou para os cuidados de Marta definitivamente (sic).

Nos primeiros meses de tratamento, Richard fazia menção a alguns terapeutas que o haviam atendido anteriormente: "Cadê o R... e a F...?" Ele apresentava recursos de fala, porém evitava o contato comigo; não me direcionava o olhar, priorizando a manipulação de objetos e uma movimentação incessante: rodopiar pela sala, ligar e desligar o ventilador, dar descargas.

As sessões aconteciam a sua escolha fora da sala de atendimento. Quando ali permanecia, às vezes, ele jogava objetos pela janela ou corria para entrar em outras salas.

Sua postura diante do espelho modificou-se durante esse tempo de tratamento. A princípio, ele jogava objetos para quebrá-los e cuspia em sua imagem. Atualmente, ele pode observar sua imagem enquanto conversa comigo. Esta mudança de atitude possibilitou também a sustentação do olhar para o outro e a sustentação do diálogo.

Em seus desenhos apareciam "estrela maluca", "menino com defeito", o balão, o elevador, o sol. Em uma das sessões, Richard desenhou duas figuras: uma na cor cinza e a outra na cor preta, me informando que "a mãe cinza está passeando no campo, e a mãe preta não conhece".

Houve crescente interesse pela escrita, acompanhada pela eleição de alguns significantes: bóia, balão, Monalisa, elevador, baby e sol.

Durante meses fez-se hábito ele me perguntar, logo ao iniciar a sessão, sobre a bóia, que após algumas sessões esclareceu ter ganho em Santos, mas "murchou".

Fez vários desenhos com motivo de balão com fogo ou fumaça, muitas vezes "batizado" por Marta Bocuda, Iara; sempre nomes de mulheres.

Pediu-me uma revista e recortou a foto da Monalisa e de um elevador, levando-os para sua casa. Não os trouxe mais ao atendimento, e me perguntava: "Onde está a Monalisa? E uma mulher bonita, minha namorada". Após algum tempo, eu perguntei novamente: "Quem é a Monalisa?" Ele me disse: "E a F..." (nome da psicóloga do HC). Explicou-me que "era atendido no prédio cinza, alto, onde tem elevador".

Elegeu brincadeiras, como se esconder e me olhar para verificar se eu continuava na sala; jogar e puxar o rolo de barbante.

Numa das sessões disse que não me conhecia: "Não conheço quem desaparece; quem desaparece não existe".

Qualquer alteração na rotina dos atendimentos provocava em Richard reações inesperadas, e as finalizações das sessões tornavam-se difíceis. Ao ser informado sobre as primeiras férias do tratamento, ele afirmou: "Não existo, e você não existe... vou virar estrela... estou morto". Quando ele passou a vir ao atendimento uma vez na semana, e não mais duas vezes, ao término da sessão, ele se despediu: "Se não acreditar na palavra da gente, vou ficar sozinho". Ao final de outra sessão, ele me disse: "Se você não me segurar, eu vou embora!"

Confeccionamos calendários para situar datas das sessões, férias, suas atividades na semana. Ele propôs um encontro das canetinhas no papel. Preocupou-se em pintar todos os espaços em branco. Construiu um avião de papel que voava no céu e fazia o trajeto entre a USP, seu bairro e o aeroporto. Richard passou a se orientar a partir dos referenciais do tempo, e brincava com isso, ao nomear: "Texta na Cuspe", "Encontramos na USP", "Domingão do Faustão", "Maio no sítio", "Até sexta!", "Vai terminar a sessão?"

Essa fase do tratamento lhe fez uma série de questões: "As pessoas descem pela porta do elevador, e a porta fica?", "Por que os objetos caem no chão? Por que a bola cai?", "Por que existe elevador?", "Você vai crescer mais?", "Qual a cor da sua mãe?", "Para onde vai o sol... para onde vai o sol quando desaparece?", "Por que o sol aparece depois do nublado?", "Por que não fico na USP o dia inteiro?"

Surgiram muitas outras perguntas depois, e também teorias para explicá-las, oferecer algumas respostas: "Todo o mundo morre. Papai do céu vai me salvar", "Alguém foi embora ... não voltou", "Nasci da barriga de outra mãe, não conhece", "A lua aparece de noite e desaparece de dia, é Deus que faz isso", "Fui para o HD porque era malcriado", "O sol aparece depois da madrugada", "Fui criado por Deus que é todo-poderoso e vê a tudo e todos", "Nunca mais encontramos Monalisa... é bom encontrar!", "Você viu o Jaspion? Tinha esse boneco. Quebrou. Tem o Fofão, está lá em casa!", "O tempo não espera ninguém!"

Depois de duas sessões de ausência, ao retornar Richard entrou na sala e desenhou o sol: "Olha! O sol apareceu! Não aparecia o sol e hoje ele está forte!" Pegou uma pecinha redonda e a rodou pela sala num movimento de ida e volta, dizendo ser o baby: "O Baby é o sol porque o baby nasce e o sol quando sobe, ele nasceu".

Após as férias de janeiro deste ano, Richard contou-me que havia assistido ao filme Rei Leão, mostrando várias vezes com as mãos, o tamanho do sol: "O sol afasta os personagens! Tudo o que o sol toca é o nosso rei!" É comum me perguntar qual é a posição do sol, afirmando que as horas estão passando, o dia passou, "existe passado, presente e futuro". Ele situa pessoas de seu passado, como os colegas do HD, e conta situações do seu cotidiano, construindo, assim a memória narrativa de sua história.

Termino aqui o relato do caso para acentuar que Richard parece estar no caminho da construção de uma metáfora delirante como suplência à estabilização da estrutura.

Diante da ausência do simbólico e para dar conta da angústia e do vazio de significação, ele faz a tentativa de ordenação do real, construindo para si uma organização no tempo que lhe fornece a possibilidade de uma história, identidade e destino.

 

O NOME-DO-PAI

Em De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose, Lacan (1957-8, p. 563) estabeleceu a fórmula da metáfora paterna da seguinte maneira:

A instituição da metáfora paterna ocorre quando um significante primordial opera a substituição do significante do desejo da mãe pelo significante do Nome-do-Pai. O Nome-do-Pai é posto em substituição ao lugar primeiramente simbolizado pela operação de ausência da mãe. Por meio da palavra da mãe, a criança saberá algo do Nome-do-Pai, ou seja, "do lugar que ela reserva ao Nome-do-Pai na promoção da lei" (Lacan, 1957-8, p. 585).

Entretanto, na psicose o que se verifica é a insuficiência de efeito metafórico, que corresponde a um buraco na significação fálica. Bouquier (1983-8), ao citar Lacan (1959), afirma que a mediação do Outro entre o filho e a mãe, que seria garantida pela função paterna, está ausente, e isto faz com que a criança realize a presença do objeto a do fantasma materno.

Segundo Bernardino (2000), o psicótico ficaria na primeira apreensão de Das Ding, sem que a Bejahung seja completada pela Verneinung, condição esta que seria fundamental para incluí-lo num primeiro deslizamento simbólico. A psicose pressupõe que algo de primordial ao ser do sujeito não entrou na simbolização, nem tampouco foi recalcado, mas foi rejeitado (Verwerfung primitiva). O desencadeamento da psicose se daria pelo retorno, de fora, do que ficou preso na Verwerfung, ou seja, o que foi posto fora da simbolização geral que estrutura o sujeito. A partir daí, há reação em cadeia no nível do imaginário.

Para Lacan (1955-6), citado por Bernardino (2000, p. 77), haveria a "impossibilidade do apagamento do signo, pela ausência do recalque; ou, em outras palavras, à holófrase constituída pela não separação entre S1 e S2, que mantém alguns significantes no registro do real, não remetendo a nenhuma possibilidade simbolizadora, mas, pelo contrário, a um buraco, desencadeador da psicose". O Outro deixa de ser o lugar de inversão da mensagem, e o sujeito depara com uma significação que lhe é dirigida, mas que não se remete a nenhuma outra significação, revelando-se incompreensível, estranha. Essa significação, por não se concluir, aparece na realidade de maneira que se repete incessantemente. Então, teria havido, no jogo do Fort! Da!, uma falha nesta simbolização primordial e forclusão do Nome-do-Pai no lugar do Outro pelo fracasso da metáfora paterna. Esta idéia é muito pertinente ao caso em questão, pois o discurso de Richard evidencia a falha justamente no momento de separação sujeito/objeto e no acesso à linguagem.

 

DA LETRA AO SIGNIFICANCE

Essa falha primordial no registro do simbólico leva ao fracasso na simbolização do objeto e na cobertura imaginária do real. Há a impressão de que, até o início do tratamento, Richard apresentava um discurso predominantemente metonímico, pela negação da dialética, e por isso a impossibilidade de enxergar os vários aspectos do objeto, ao mesmo tempo.

O jogo do Fort! Da! permitiu a Richard a utilização de um objeto concreto como suporte imaginário do objeto a, que oferecesse sustento ao significante. As brincadeiras e os brinquedos em formato circular são utilizados com propriedade dialética de deslizamento: aproximar/afastar, ir/voltar, aparecer/desaparecer. Esta repetição da ação é movida pelo gozo que se realiza no significante. O jogo propõe a descontinuidade, e é o convite à erotização, à pulsionalização do campo (referente ao seminário proferido por Alfredo Jerusalinsky na Lugar de Vida, na USP, em 1999).

O tratamento tem favorecido a aproximação do significante, promo- vendo ligações numa rede de significações (significação múltipla dos signos). Richard se posicionou ativamente para poder simbolizar a falta. É a condição que permite antecipar as ações, a evolução da escritura pela característica própria de substituição e a revisão de sua posição especular, colocando-se como objeto ao olhar do outro.

O reconhecimento no espelho está condicionado à inscrição de Richard no campo do Outro. Podemos pensar que para ele existe o Outro para o qual dirige suas demandas. Para Lacan (1964), citado por Bernardino (2000), quando o sujeito faz uma demanda ao Outro, ele se revela como faltante, confrontando-se com o enigma deste desejo: "Ele me diz isso, mas o que ele quer? (chè vuoi?)" Ao decifrar o enigma oferecendo-se como resposta, ele antecipa sua própria falta e se pergunta: "Pode ele me perder?"

Seu corpo passou a ter uma posição significante, a qual faz questão sobre o que pode significar para o outro; o desejo do sujeito como desejo do Outro enquanto referência a partir da qual pode se olhar para moldar seu eu ideal. As distorções em sua imagem corporal (corpo em pedaços) acompanham as distorções na sua maneira de representar a realidade. As mudanças na representação do espaço da realidade alteraram sua forma de representar o corpo. A separação entre gozo e campo do Outro instaurou um sujeito dividido e um corpo desejante.

O sujeito advém da operação de corte na língua materna, que responde à suplência da falta de harmonia, ou seja, à ausência de relação. Portanto, ele nasce da falta constituída pela ausência. A simbolização implica, necessariamente, o sacrifício, a morte da Coisa (Das Ding), para assim o sujeito poder desejar.

Lefort (1983-8) propõe como função do Nome-do-Pai a possibilidade de ter um corpo pelo Outro no significante. A forclusão do Nome-do-Pai implicaria a separação entre o real do corpo e o significante do Outro. Haveria passagem do gozo enquanto única relação com o corpo para sua interdição pela palavra.

Apesar dos evidentes recursos de fala, o discurso de Richard não se apresentava encadeado, mas desligado de sentido. A passagem da letra ao significante, ou seja, o progresso da simbolização implicou a revisão da posição especular, fundando um não-saber e um sujeito desejante em busca do saber. É um novo caminho a sua constituição como sujeito, afastando-se do gozo do Outro. A letra perdeu a consistência imaginária, e a língua ganhou em extensão simbólica. Agora, a letra serve de suporte para o seu dizer (referente ao seminário proferido por Alfredo Jerusalinsky, na USP, em 2000). Os efeitos desta mudança aparecem no deslocamento da hipercinese para o enriquecimento do discurso, ou seja, o deslocamento da posição de gozo para a posição de letra, o que o leva a "brincar" com ela, modificando sua significação e sentido, num jogo da substituição e de deslizamento da cadeia como organizador de significantes, abrindo espaço para o jogo das metáforas e metonímias.

Podemos afirmar que, para Richard, a escritura ofereceu suporte ao pensamento e estabilização entre significado e significante. Os registros do real e simbólico encontraram suporte na escrita e na palavra, como função de amarração.

Segundo Bernardino (2000, pp. 70-1), "Lacan descreve a trajetória de uma escrição diante do Real a partir de um gesto que se impõe como traços do Outro - para uma inscrição -então significante, simbólica - do que resultaria uma escrita. São descritos aí 2 tempos: um primeiro, real, em que o sujeito, num processo de antecipação imaginária, será levado ao simbólico. Na borda do simbólico, está a letra já como 'efeito de um discurso'. O segundo tempo é, então, propriamente simbólico, em que da junção da letra com o significante haveria um suporte material para este último, tomado já da linguagem. É neste momento que o significante se dobra às leis da linguagem: castração, pois. Haveria, então, uma escrita lógica, impossível de ser traduzida, porque primeira. A inscrição do sujeito na linguagem dar-se-ia neste trajeto do impossível do gozo implicado nesta escrição, sofreria a operação de castração, para chegar a uma significação possível. Assim, entre o gozo e o saber a letra faria o litoral".

O desejo de saber parte da demanda de Richard em saber sobre sua origem, e as brincadeiras presentificam sua fantasmática, marcada por elementos de filiação, sexuação e identificação. É no trajeto deste tratamento, por meio da transferência, que ele tem atribuído sentido às marcas da sua história. Kupfer deixa isso muito claro quando afirma que, "se alguém deseja saber sobre o desejo do Outro, é porque pensa, de modo imaginário, lá encontrar a chave que abre as portas do desejo e do saber inconscientes do próprio sujeito em questão". E acrescenta que "um conteúdo aprendido só fará sentido para alguém caso esse conteúdo se relacione, remeta, conjugue-se, com sua verdade inconsciente (...) Seria necessário que aquele conteúdo aprendido lembrasse o objeto perdido, estivesse em uma relação metonímica com ele" (1990, pp. 112 e 187).

 

A ESCOLA E O SABER

As intervenções clínicas criaram as condições para que Richard pudesse se beneficiar da convivência escolar, mas a inclusão efetiva permitiu a ele a possibilidade de maior circulação social, pautando sua ação em busca do reconhecimento no Outro, assim compartilhando o discurso social. A Escola surge como alternativa às suas questões, apresentadas em outro contexto.

A conquista da escrita carrega consigo a propriedade de chamá-lo a responder ao ideal e à lei, num lugar de reconhecimento social, como é a Escola. As normas estabelecidas por ela dizem respeito ao que é convencional e reconhecido socialmente, sobre as diferenças e regras de uma instituição. O educador pode ajudá-lo a constituir novas metáforas, oferecendo sentido aos seus enunciados. Ao mesmo tempo, supor-lhe um saber para que ele possa se apropriar do saber do outro.

A inclusão de Richard também promoveu efeitos de mudança, provavelmente porque as outras crianças ofereceram oportunidades, "às vezes pela via do mimetismo, às vezes pela via da identificação, de tomar alguns traços circulantes no discurso grupai para articular formas de simboliza-ção, metáforas não paternas, que lhe permitam participar da vida social de um modo um pouco mais plástico. Embora as significações possam continuar determinadas pela forclusão, esse contato com um mundo significante que funciona na referência a um pai (seja lá qual for) parece funcionar, nas crianças psicóticas, como uma janela de luz aberta nessas trevas exteriores em que foi lançado aquele significante primordial que fora rechaçado" (referente ao seminário proferido por Alfredo Jerusalinsky, na USP, 1996).

É curioso perceber, nesse caso, o que Lacan (1956) pôde confirmar em seus estudos sobre o inconsciente como o discurso do Outro e o auto-matismo de repetição. O discurso repete o que o sintoma repete conforme o momento da cadeia significante que percorre os sujeitos. No caso em questão, Marta ocupou o lugar da mãe biológica ao deixá-lo em adaptação durante o processo de inclusão na nova/outra escola, assim como a psicopedagoga também ocupou este lugar ao acompanhá-lo na transição para o novo lugar, e desligá-lo do ambiente conhecido. O lugar de Richard se revelou como o lugar do estrangeiro; um "estranho no ninho" para a família e para a escola.

 

CRUZANDO RAIOS2

Orlando Moraes/Toni Costa

"Estrelas vão fugindo
Entre os faróis e o mar
Neste azul
Que azul
Nosso amor sumindo
Entre partir
Ficar
Entre o Norte e o Sul
Cruzando sobre os raios
Antenas de TV
Por que você me olha
Se você não me vê
Sobre os oceanos
Em doces guerras frias
Não deixa anoitecer
Não deixa escurecer o nosso dia"

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Bernardino, L. M. F. (2000). O diagnóstico e o tratamento das psicoses não decididas: um estudo psicanalítico. Tese de Doutorado, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP.         [ Links ]

Bouquier, J. J. (1983-8). O trajeto de Aureliano na estrutura. In Miller, J. (org.). A criança no discurso analítico (pp. 102-9). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar, 1991.         [ Links ]

Freud, S. (1919). O estranho. In Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad.) (Vol. 17, pp. 273-318). Rio de Janeiro, RJ: Imago, 1976.         [ Links ]

Kupfer, M. C. M. (1990). Desejo de saber. Um estudo psicanalítico para educadores. Tese de Doutorado, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP.         [ Links ]

Lacan, J. (1949). O estádio do espelho como formador da função do Eu. In Escritos (V. Ribeiro, trad.) (Cap. 2, pp. 96-103). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar, 1998.         [ Links ]

______ (1956). O seminário sobre "A carta roubada". In Escritos (Cap. 1, pp. 13-66). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar, 1998.         [ Links ]

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Lefort, R. (1983-8). Um "passo a mais" entre a criança e o adulto: a estrutura do corpo. In Miller, J. (org.). A criança no discurso analítico (pp. 17-21). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar, 1991.         [ Links ]

Rodulfo, R. (1990). O brincar e o significante: um estudo psicanalítico sobre a constituição precoce (F. F. Settineri, trad.). Porto Alegre, RS: Artes Médicas.         [ Links ]

 

 

Recebido em outubro/2000

 

 

NOTAS

1 Os nomes foram alterados. Foi preservada a característica do nome em inglês para o paciente, conforme original.
2 Não deixa anoitecer Não deixa escurecer o nosso dia" (trecho da música cantada por Richard numa sessão).